sábado, 21 de agosto de 2010

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 5


4 — A comunidade absorve o grupo

O terceiro momento que pretendemos fixar situa-se na passagem do século XIX: entre 1890 e 1910, digamos sem maior preocupação cronológica.

A cidade é outra. Tem setenta mil habitantes naquela data; duzentos e quarenta mil nesta. É um importante centro ferroviário, comercial, político, onde a indústria se esboça. A população mudou radicalmente. Não há mais escravos, os caipiras vão sumindo, chegaram magotes de italianos, espanhóis, portugueses, alemães. Há uma diferenciação social muito mais acentuada, quer no sentido horizontal do aparecimento de novos grupos, e alargamento dos que havia, quer no vertical, em que as camadas se superpõem de modo diverso, recompostas quanto ao número, à composição, aos padrões de comportamento. A Faculdade de Direito é importante, mas já surgiram ou vão surgir outros institutos de ensino superior, e o novo perfil da estrutura social e demográfica não favorece mais a sua posição excepcional. É um segmento integrado, ao lado de outros. A literatura já não depende mais dos estudantes para sobreviver, nem eles precisam mais da literatura como expressão sua, para equilibrar-se na sociedade. No lapso corrido desde o decênio transformador de 1870, deu-se um processo decisivo: a literatura é absorvida pela comunidade — antes impermeável a ela — e deixa de ser manifestação encerrada no âmbito de um grupo multifuncional, ao mesmo tempo produtor e consumidor. Formou-se um público, e se não a profissão de escritor (cuja primeira associação se esboça aqui pouco antes de 1890), certamente uma atividade literária que não mais depende de um só grupo, recrutando os seus membros em vários deles.

Deixando de ser manifestação grupai, ela vai tornar-se manifestação de uma classe — a nova burguesia, recém-formada, que refinava os costumes segundo o modelo europeu, envernizada de academismo, decadentismo e art-nouveau.

Nesse terceiro momento a literatura se torna acentuadamente social, no sentido mundano da palavra. Manifesta-se na atividade dos profissionais liberais, nas revistas, nos jornais, nos salões que então aparecem. E por uma conjunção verdadeiramente providencial, é o momento do Parnasianismo e do Naturalismo.

Com efeito, assim como as tendências românticas prestaram-se à definição de uma literatura de grupo, oposta de certo modo à comunidade tacanha, pelo coeficiente de isolamento e antagonismo que trazia, o Parnasianismo e o Naturalismo se ajustaram com vantagem a essa difusão da literatura na comunidade em mudança, pelos seus cânones de comunicabilidade e consciência formal. Expressão clara, embora elaborada; sentimentos naturais; conformidade ao bom senso e à realidade como ela é; comunicabilidade, porém definida segundo os padrões da gente culta, incorporada à classe dominante e dispersando-se a partir dela pela população.

Daí um certo aristocratismo intelectual, certo refinamento de superfície, tão do agrado da burguesia, que nele encontra atmosfera confortável e lisonjeira. Não é de estranhar, portanto, que as concepções literárias de então se hajam enraizado em São Paulo, a ponto de até hoje formarem a base do gosto médio, que parou em Vicente de Carvalho e Martins Fontes. Os oradores, os jornalistas, os homens públicos ainda se reportam automaticamente a elas, quando elaboram a sua expressão, e os poetas modernos mais queridos são os que a elas mais se prendem: Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia.

Grande significado social, como se vê, tem este processo por meio do qual a produção literária se transferiu do grupo fechado de estudantes para a comunidade, organizando-se de acordo com padrões definidos pelos da elite social. Processo que serviu à própria poesia romântica — ao alargar o âmbito dos seus consumidores, dando-lhes difusão que antes não possuía. E ao fazê-lo, recalcou as tendências satânicas tão características do meado do século, selecionando as do sentimentalismo e do nacionalismo, mais comunicáveis, e de fato incorporados pela musa parnasiana. Resultado: talvez nunca tenha havido em São Paulo uma coincidência tão grande entre a inspiração dos criadores, o gosto do público, a aprovação das elites. Contos e romances reais ("a gente parece ver"; "parece que aconteceu com a gente"); poemas sonoros, límpidos, fáceis de decorar e recitar, mas ao mesmo tempo corretos, de acordo com as normas da língua — cujo cultivo encontra então o seu apogeu. Não é por mera coincidência que dois dos poetas mais característicos da época sejam professores: Francisca Júlia e Sílvio de Almeida — este, bom conhecedor do idioma. Nem que o mais famoso romancista, dentre os que viviam em São Paulo, fosse Júlio Ribeiro, gramático eminente. "Língua", "linguagem", "apuro", "estilo terso", "escoimado de erros", "vernáculo"; "decoro", "lapidar", "escorreito", "nitidamente desenhado", "fino lavor", "opulento", "riqueza de vocabulário"; "real", "traçado ao vivo", "tirado da vida", "só falta falar", — eis um ramalhete da crítica do tempo, mais eloquente do que tudo que pudéssemos dizer.

Compreensível, portanto, que ocorresse então o beneplácito dos poderes à literatura. Literatura na política, na administração. Literatura como degrau de ascensão social. Solenidades públicas. Academias literárias — não mais de mocinhos imberbes, cedo dispersados pela vida, mas de respeitáveis senhores, com posição na sociedade. Salons em vez de repúblicas; em vez das sessões de grêmio, a acolhida ampla de um público já constituído, com interesses norteados pela burguesia semiletrada.

No entanto, a herança dos mocinhos parece qualitativamente mais sólida, — pois de todo esse período, tão cheio de talentos estimáveis e de um real fervor pelas coisas do espírito, apenas nos fere a sensibilidade, hoje em dia, Vicente de Carvalho. Olhando-o em bloco, vemos que a sua função foi sobretudo social: a incorporação efetiva da literatura à vida da comunidade paulistana, por meio dos padrões de suas classes dominantes.
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continua……………
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

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