quarta-feira, 25 de março de 2009

Vera Lins (Novalis, Negatividade e Utopia)

Leanne Greb (O Eu Fragmentado)
Poetar é gerar

OS FRAGMENTOS DE NOVALIS, reunidos em Pólen, podem ser considerados o manifesto do primeiro romantismo alemão. Publicados pela primeira vez, em 1798, na revista Athenaeum, neles se condensam as propostas do grupo de Iena de revolução pela poesia, i.e, transformação do mundo pela imaginação produtora: “Estamos numa missão. Para a formação da Terra fomos chamados”, diz Novalis.

A Revolução Francesa inflamava esses românticos, críticos da Aufklärung, que, no entanto, viviam sob o estado prussiano. Mas sua revolução se baseava numa mudança epistemológica. Para Schlegel “A Revolução francesa, a filosofia de Fichte, e o Meister de Goethe são as grandes tendências da época [...]”.

Insatisfeitos com os novos tempos eram críticos do projeto moderno: “Outrora era tudo aparição de espíritos. Agora não vemos nada, senão morta repetição, que não entendemos. A significação do hieróglifo falta. Vivemos ainda do fruto de tempos melhores.” Convencidos do progresso humano como seus predecessores iluministas, acreditavam que o modo de pensar transcendental ou romântico, tornado possível por Fichte e Kant, era central, historicamente, como a revolução mesma. Novalis diz em Pólen:

O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário. Romantizar nada é senão uma pontenciação qualitativa. O si mesmo inferior é identificado com um si mesmo melhor nessa operação. Assim como nós mesmos somos uma tal série potencial qualitativa. Essa operação é ainda totalmente desconhecida, na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilho infinito, eu o romantizo.

Romantizar seria uma outra forma de pensar, com a razão auto-reflexiva que inclui a imaginação, e assim se emancipa da argumentação lógica, própria da razão instrumental capitalista. Romantizar é pensar poeticamente, e os fragmentos são experiências de pensamento.

Os primeiros românticos viam a subjetividade, condição para uma razão auto-reflexiva, problemática, no processo social de modernização através da dominação da sociedade pelo valor de troca. Não consideravam mais legítima a relação sujeito contraposto ao objeto como no modelo da epistemologia positivista. Do entendimento do outro faz parte o auto-entendimento. Em Pólen: “Como pode um ser humano ter sentido para algo, se não tem o germe dele dentro de si. O que devo entender tem de desenvolver- se em mim organicamente – e aquilo que pareço aprender é apenas alimento do organismo”.

Perguntavam pela liberdade de constituição da subjetividade. A vida está para ser criada assim como o sujeito, que vai ser para eles pura atividade da imaginação. O eu é tanto atividade como produto dessa atividade: “Eu é escolha e realização da esfera de liberdade individual, ou auto-atividade. Fichte se pôs em obra, como Brown – só que ainda mais universal e absolutamente.” Mas a auto-representação do eu, embora imperativa, é impossível, o que leva o eu à atividade constante. Novalis nos define como projeto: “Para o mundo procuramos o projeto – esse projeto somos nós mesmos. O que somos? Pontos onipotentes personificados. A execução, enquanto imagem do projeto, tem, porém de lhe ser igual na livre-atividade e auto-referência – e inversamente.

Apenas o eu prático pode ser apreendido: “A compreender-nos totalmente, nós não chegaremos nunca, mas podemo-nos, e iremos, muito mais que compreender”. Na verdade, o termo imaginação é um outro nome para o eu que é pura atividade, produtividade: “Tornar-se humano é uma arte.” E ainda: “cada ser humano é uma pequena sociedade.”

Para Seyhan, Novalis não vê a identidade como um princípio primordial que engendra uma divisão sujeito-objeto:

Ela é agora a atividade conjunta de companheiros num empreendimento comunicativo. Ainda mais, nos escritos de Novalis o eu fichteano é transformado num corpo social. Os espaços entre o sujeito e o mundo, eu e tu e objetos e representações passam do domínio teórico ao prático, informado por uma realidade textual e dialógica. Não há mais como escapar da linguagem; estamos dentro de uma teia de palavras que definem nosso ser.

O objetivo do projeto romântico era destruir o poder de uma razão “petrificadora e petrificada” – de forma que uma subjetividade livre pudessse se constituir. Aqui entra a imaginação, para Kant, faculdade produtiva de cognição.

Com ela, libertavam-se da lógica. Para os românticos, atos desconstrutivos e anárquicos da imaginação na relação do poeta com a linguagem eram a condição básica para a recuperação da subjetividade, levavam a uma emancipação fundamental da instrumentalidade: “O poeta conclui assim que começa o traço. Se o filósofo apenas ordena tudo, coloca tudo, o poeta dissolveria todos os elos. Suas palavras não são signos universais – são sons – palavras mágicas que movem belos grupos em torno de si.” A imaginação tem papel central no pensamento de Novalis, para quem a razão prática é pura imaginação.

Afirmavam liberdade quanto à representação, através da consciência de que é impossível representar o absoluto. Seu conceito de representação aponta para a ausência do que é representado, e a palavra Darstellung se distingue como apresentação. A poesia manifesta no mundo sensível o que está fora dele, a flor ausente de todos os buquês de Mallarmé. Essa apresentação é uma livre atividade criadora, que não se situa nem no sujeito nem no objeto. Acontece na linguagem:
Mas, e se eu fosse obrigado a falar? E esse impulso a falar fosse o sinal da instigação da linguagem, da eficácia da linguagem em mim? E minha vontade só quisesse também tudo a que eu fosse obrigado, então isto, no fim, sem meu querer e crer, poderia sim ser poesia e tornar inteligível um mistério da linguagem? E então seria eu um escritor por vocação, pois um escritor é bem, somente, um arrebatado da linguagem?

Liberdade e infinito são conceitos necessários para o jogo livre da apresentação pela imaginação produtora. O fragmento nega o postulado de uma representação contínua e introduz quebras no fundamento da idéia. Na poesia o resultado do livre jogo da imaginação é o arabesco, o verso que Hugo Friedrich encontra em Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. A crítica é um diálogo com o original, poesia e crítica têm que partilhar a mesma linguagem. Com isso rompem barreiras entre diferentes formas de conhecimento, filosofia, crítica, ciência e religião: “O melhor nas ciências é seu ingrediente filosófico – como a vida no corpo orgânico. Desfilosofem-se as ciências – o que resta – terra, ar e água.” Transformam o mundo num livro a ser decifrado, lido e escrito.

Novalis tinha o projeto de uma enciclopédia, cujo rascunho foi seu Das allgemeine Brouillon. Uma enciclopédia é um livro infinito. Há um livro de Werner Vortriede que mostra a relação dos simbolistas franceses com Novalis e o primeiro romantismo alemão. No Brasil, o crítico simbolista Nestor Vítor escreve sobre Os discípulos de Saïs e os Fragmentos, em 1889, e descobre no poeta alemão a genealogia de Mallarmé. Mas se o perigo da estetização ronda alguns simbolistas, nos primeiros românticos dominaria a criticidade de sua produção.

Poesia vai ser para eles reconhecer um objeto como referente não somente a si mesmo, mas ao solo de referência do eu, reconhecendo-o não somente como objeto mas como um objeto para a consciência. A realidade do mundo como se apresenta a nós é assim uma realidade significativa. O mundo é real, mas sua realidade fala a linguagem prescrita pela consciência. Por isso falam de uma poetização da natureza. Tudo está a ser produzido: “A vida não é um romance dado a nós, mas um romance feito por nós.”

Para Novalis, o momento objetivo da consciência não acontece sem um momento subjetivo. No fragmento 26 de Pólen, afirma:

[...]O primeiro passo vem a ser olhar para dentro – contemplação isolante de nosso eu – Quem se detém aqui só logra metade. O segundo passo tem de ser eficaz olhar para fora – observação auto-ativa, contida, do mundo exterior.

Para Molnár, cujo livro sobre Novalis ajuda a compreender a singularidade de seu pensamento, essa primazia da autoconsciência não implica que tudo foi levado para o interior do indivíduo e houve uma retirada para o solipsismo. A filosofia transcendental permite uma perspectiva que dá conta do que é conscientemente real e da realidade referida. O eu está continuamente afetado pela experiência, assim em constante mudança – aquilo a que a afetação é atribuída constitui o mundo em que se vive –, o mundo é o que afeta o sujeito, assim consciência do mundo é consciência do eu, que, por sua vez, é produtividade, um centro produtivo, atividade. Tudo é essencialmente um produto da atividade do eu.

Apenas o pré-requisito de se dirigir para dentro tem sido geralmente reconhecido como a direção típica do idealismo alemão. No entanto o oposto é o verdadeiro. O indivíduo precisa olhar para fora e ter experiências no mundo para realizar o potencial inato do eu em toda a sua extensão. Esse processo pode ser visto como uma viagem, de um começo indefinido a um objetivo também indefinido e esse é o desenvolvimento e a formação dos quais o Wilhelm Meister de Goethe é o paradigma. O caminho místico na direção de uma reunião com a realidade se transforma num processo de auto-realização em que ser humano significa ser um indivíduo com a obriga ção de transformar a existência casual em uma vida por escolha e desígnio. Diz o fragmento de Pólen:

Todos os acasos de nossa vida são materiais, a partir dos quais podemos fazer o que quisermos. Quem tem muito espírito faz muito de sua vida – todo encontro, toda ocorrência seria, para quem é inteiramente espiritual – primeiro termo de uma série infinita – começo de um romance infinito.

Espírito para os primeiros românticos significa imaginação. E liberdade significa determinar sua esfera própria, sair de si. No estado não-livre a esfera objetiva é experimentada como determinando o eu, que funciona apenas como um ponto de impacto para uma sucessão de eventos incompreensíveis. Para ser livre o eu precisa ser ativo e quando se age moralmente, se age livremente. E o caminho moral é uma via negativa, como o caminho místico, pois nega tudo o que possa exercer poder sobre o eu. Mas, ao contrário do místico, essa negação não é conseguida por meio de uma retirada ascética, mas através de um contínuo engajamento ativo no mundo. No entanto, a ação moral consiste em um duplo movimento: por um lado é um desengajamento do mundo até que o eu esteja sozinho, livre para decidir, e, por outro lado, um reengajamento, no qual o mundo não pode servir como fim, mas apenas como meio que leva da pura subjetividade de um agente livre para a sua validade geral. No modelo de Novalis, a ética é complementada por amor e atividade. Desse movimento fala o fragmento 51 de Pólen:

O interessante é aquilo que me põe em movimento, não em vista de Mim Mesmo, mas apenas como meio, como membro. O clássico não me perturba – afeta-me apenas indiretamente, através de mim mesmo – Não está aí para mim como clássico, se eu não o ponho como um tal, que não me afetaria se eu não me determinasse – me tocasse – eu mesmo à produção dele para mim, se eu não destacasse um pedaço de mim mesmo e deixasse desenvolver- se esse germe de um modo peculiar perante meus olhos – um desenvolvimento que freqüentemente só precisa de um momento – e coincide com a percepção sensorial do objeto – de modo que vejo perante a mim um objeto, no qual o objeto comum e o ideal, mutuamente interpenetrados, formam um único prodigioso indivíduo.

Molnár vê Novalis expandindo a visão de Fichte, avançando além da doutrina da ciência, ao armar um “esquema básico” em que o eu é igual ao mundo e o mundo, igual ao eu. Esse esquema sustenta seus trabalhos poéticos.

Além da filosofia de Fichte, com que trabalha nos Fichte-Studien, Platão e Hemsterhuis são suas referências filosóficas. A relação com Sofia, a mulher amada, enquanto viva e depois de sua perda, é um processo formativo que muda a relação de Novalis com o mundo e permite uma visão poética, uma visão em que objetos e acontecimentos atingem um sentido que não pode ser reduzido a preocupações pragmáticas.

Para Novalis, o poeta tem que passar por um processo formativo, através do qual atinge um nível de humanidade superior, em que encontra a visão poética – uma autoformação do eu. O artista é transcendental no sentido do que diz o fragmento:

A suprema tarefa da formação é – apoderar-se de seu si-mesmo transcendental – ser ao mesmo tempo o eu de seu eu. Tanto menos estranhável é a falta de sentido e entendimento completos para outros. Sem auto entendimento perfeito e acabado nunca se aprenderá a entender verdadeiramente a outros.

É esse processo formativo o que acontece em Heinrich von Ofterdingen, um romance sobre a poesia, que conta a formação de um poeta. Como diz Novalis num outro fragmento:

Anos de aprendizado são para o novato poético – anos acadêmicos para o filosófico. [...] Anos de aprendizado no sentido eminente são os anos de aprendizado de viver. Através de ensaios planejadamente ordenados aprende-se a conhecer os princípios dessa arte e adquire-se a destreza de proceder segundo esses princípios ao bel-prazer.

A poesia é tanto uma questão de linguagem quanto de autonomia moral do poeta. Compreender isso, segundo Molnár, pode impedir que a leitura contemporânea de Novalis caia no que chama de “a prisão da linguagem”. O trabalho poético é o caminho de um desenvolvimento pelo qual o eu ganha consciência de uma liberdade inerente. Quando essa consciência cresce, os antagonismos entre eu e mundo, e entre espírito e natureza, diminuem, e sua identidade fundamental começa a se tornar aparente, o que constitui a visão poética. A poesia de Novalis é caracterizada por essas visões de identidade eu/mundo: em Os Discípulos de Saís, a natureza deixa cair o véu frente aos que seguem o verdadeiro caminho, nos Hinos à noite, o não do mundo, i.e., a certeza da morte, perde seu poder sobre os que são guiados pelo amor e em Ofterdingen a progressão ao encontro do mundo é também progressão ao encontro de si mesmo.

Molnár vai ver isto se dando no romance inacabado, escrito por Novalis aos 27 anos, dois anos antes de morrer em 1801, e cujo tema é a transformação interna pela qual o indivíduo precisa passar para pôr o mundo e o eu numa relação que não é congelada num estado de oposição permanente. Pode-se compará-lo ao Meister de Goethe, o Bildungsroman, que os primeiro românticos consideravam fundamental, mas também criticado por Novalis.

Novalis trabalha numa via negativa, próxima de uma teologia negativa vinda dos místicos alemães como Eckart e Böehme, que marcaram o idealismo alemão. Negação significa usar o que já se sabe para formular uma questão, o que é equivalente a nos fazer receptivos para uma eventual resposta. Sem essa atitude questionadora, essa prontidão para receber, poderíamos ser expostos a todos os tipos de experiência, mas seríamos incapazes de absorvê-las.

Como a trama do romance é a do desenvolvimento interno, ele não descreve os ambientes com detalhes realistas e seus personagens são descarnados, embora Ofterdingen e Klingsohr tenham existido como trovadores medievais. Novalis queria expor suas idéias, com isso o romance é uma interpolação de narrativa, “contos simbólicos”, diálogos e poemas, atualizando o que Klingsohr afirma da poesia, “em toda poesia é preciso que o caos transpareça sob o véu regular da ordem”. O romance contém sua própria teoria.

O percurso de Heinrich vai mostrar uma mudança de perspectiva: um mundo transformado a partir de uma relação transformada com ele. No início, vive com os pais e o mundo pragmático não lhe é suficiente. O pai diz que sonho é mentira e em vez de se tornar um artista como prometia na juventude (ele também sonhara com a flor azul), torna-se um artesão. No final da narrativa, Heinrich encontra o médico Silvestre, que tinha aparecido como mineiro e este lhe conta sobre seu pai:

Eu discernia nele os signos anunciadores do grande artista plástico. Seu olho estava todo animado do desejo de se tornar um olho verdadeiro, um instrumento de criação. Seu rosto exprimia a firmeza interior e a aplicação. Mas o mundo presente tinha já criado raízes profundas demais em sua alma. Ele não queria escutar o chamado de sua natureza mais íntima [...]. Ele se tornou um artesão hábil e o entusiasmo não era mais do que loucura a seus olhos.

Tudo começa para Heinrich com o sonho em que vê a flor azul. A partir dele e do encontro com comerciantes narradores decide partir de sua cidade. Assim, com a conscientização do desejo pela flor, muda sua relação com o mundo. Quando alcança o máximo de consciência, apenas vai ser possível comunicar sua situação singular tornando-se poeta. E a chegada a Augsburg vai ser decisiva nessa descoberta da poesia. Encontra Matilde, a filha do poeta Klingsohr, que vai amar e depois perder. Quando mais tarde, melancólico, abandonado e infeliz, tem uma visão em que ela lhe fala, então toma a lira e compõe.

O sonho tem um papel preponderante na história, no sentido de revelação de uma realidade mais verdadeira. Nele, as imagens, fruto de uma imagi nação livre, podem revelar o eu, sua natureza verdadeira, atualizando a revolução copernicana de Kant. Segundo Molnár:

O sonhador executa de novo a revolução copernicana de Kant, mostrando que não há objetos como coisas em si, às quais a realidade experimental se refere. Coisas não são em si, mas fenômenos, o que significa que a imediaticidade das imagens do sonho se referem à criatividade do eu em formá-las e não a uma imagem externa do dado; expressam a ação livre do eu dando forma ao mundo.

No final o sonhador se vê como uma força ativa, construindo o mundo, dentro do qual esse eu objetificado toma seu lugar como um objeto entre outros.

Enquanto o eu procura a realização da lei moral, o mundo pode manifestar a mesma lei, lhe apresentando uma face humana. Quando Heinrich encontra a flor azul, suas pétalas se mudam numa face que ele mais tarde vai reconhecer como a de sua amada. Eros forja o laço que une o eu ao mundo e o mundo ao eu. A lenda que conta o personagem Klingsohr, o mestre, é um comentário do poder liberador do espírito da poesia. Eros, ajudado por Fábula, o espírito da poesia, tem a tarefa de dispersar o gelo sobre o mundo estranho e revelar a identidade escondida do eu com o mundo. Quando Heinrich encontra Silvestre, no final, diz algo que lembra a declaração do poeta Paul Celan, na Carta a Hans Bender , de que poesia pode ser um aperto de mão, ligando assim poesia à experiência e ao gesto moralmente livre:

Pois o verdadeiro espírito da fábula é um amável disfarce do espírito da virtude, e o objeto verdadeiro da poesia que lhe é subordinado, é a atividade de nosso eu a mais alta e mais pessoal! Há uma espantosa identidade entre um canto sincero e uma nobre ação.

Heinrich segue um caminho exterior que tem sua contrapartida interior e cada avanço numa direção registra um progresso na outra. São vários encontros: com alguns comerciantes, com um eremita, com um mineiro, com uma mulher oriental, todos simbólicos de atitudes no mundo. E todos são narradores, contam histórias reveladoras para Heinrich. Assim, uma vez que o eu se conhece de um modo não baseado na oposição ao mundo, o mundo cessa de se opor a ele. A dicotomia entre eu e mundo entra em colapso quando o eu assume a perspectiva da liberdade que ocupa em todos os processos de conscientização. O mundo não é mais um fator de oposição, mas “o mundo se torna sonho e o sonho se torna mundo”. O mundo sensível é uma ilusão, o mundo real, uma feérie do espírito. Nesse sentido pode-se entender o fragmento de Pólen que diz depender de nossos órgãos não vermos o mundo feérico. Em cada ato moralmente livre, o princípio de oposição eu/mundo é suspenso. O poeta dá sentido ao mundo, ou descobre seu sentido. Na lenda que Klingsohr conta, a Atlântida permanece escondida sob a superfície do mundo, o véu do estranhamento nos impede de reconhecê-la no outro e no texto da natureza. A utopia de uma revolução por um novo modo de pensar aparece, sempre em diálogo, também nas palavras do personagem Silvestre:

– Quando, diz Heinrich, não haverá mais necessidade de terror, de sofrimentos, de angústia e de mal no universo?
– Quando não houver mais que uma só força, a força da consciência; quando a natureza for disciplinada e moralizada. Há apenas uma única causa do mal: a mediocridade universal e esta fraqueza não é outra coisa senão uma insuficiência de sensibilidade moral e a ausência do poder estimulante da liberdade.

Contra o perigo do esteticismo e de atribuição de valor aos objetos, ao desejo e ao orgulho, o desapego do eu torna possível uma relação poética com o mundo, i.e, uma relação produtora. O poeta fala a linguagem que ouve, a língua original da humanidade. O que lembra Vico. Essa consciência da língua original faz o poeta. O poeta não fala o mundo, mas ouve o mundo falar, fala a linguagem que ouve, essa língua original, uma dimensão não dita que está em toda linguagem. Molnár diz que o uso poético da linguagem para Novalis abre uma nova dimensão que supera a realidade da existência humana, mas é inclusiva dessa realidade. Aqui está a crítica ao esteticismo. No romance o personagem de uma das histórias contadas, o rei tende a ver a dimensão poética como uma dimensão exclusiva. No entanto

A linguagem poética faz o familiar parecer estranho para tornar o estranho familiar, não para absolutizar o momento esotérico e constituir uma esfera autônoma na qual a arte substitui o mundo, mas para revelar o fundamento comum de nossa identidade como seres humanos com referência ao qual o mundo assume realidade para nós e nós assumimos realidade nele.

Conhecimento, arte e princípio de valor moral se inter-relacionam. O cientista não é um cientista a não ser que também aprecie as artes poéticas e o amante da poesia ama apenas a si próprio no objeto de arte se não for capaz de identificar seu ser com todos os seres humanos. Em um momento Klingsohr, já na chegada a Augsburg, parte decisiva na descoberta da poesia, diz, identificando poesia a ficção, no sentido que Rancière a vê, como procedimento próprio do espírito humano:

É uma pena que a poesia tenha um nome particular e que os poetas formem uma corporação à parte. A poesia não é coisa à parte. Ela é o modo de atividade próprio ao espírito humano. Todo homem não está a cada minuto de sua vida a fabular e a inventar?

O personagem do mineiro, trazendo o ouro que está escondido no uso prosaico da linguagem, dá uma demonstração de como qualquer ofício deve ser conduzido. Todo empreendimento pragmático é prosaico, mas tem dimensões sociais comunitárias, que equivalem à liberdade moral e sua manifestação comunitária é poesia. Não só o verdadeiro cientista se torna poeta, mas o verdadeiro historiador também, ao ler e falar a linguagem original. A história pressupõe um contexto humano de interpretação. O historiador tem que ter o sentido poético da adivinhação. Diz o eremita:

Quando examino tudo isso atentamente me parece necessário que um historiador seja também poeta, pois só os poetas se entendem nessa arte de encadear os acontecimentos de modo satisfatório. Nas suas narrativas e fábulas observei com um prazer secreto o sentimento delicado que têm do misterioso princípio da vida. Há mais verdade nos seus contos do que nas crônicas eruditas.

Na caverna do eremita, Heinrich encontra o livro de sua vida escrito em provençal, a linguagem dos trovadores. Quando aprender a linguagem dos poetas, Heinrich vai ser capaz de ler o texto e se descobrir como seu autor.

O movimento que tentamos mostrar em Novalis de uma revolução no pensamento, é mostrado num ensaio de Karl Heinz Bohrer “Metáfora e heresia, a desfiguração romântica do espírito”, que discute o poema de Novalis, Os hinos à noite e a relação entre religião e estética, mostrando como os primeiros românticos estranham, desfiguram o mito cristão e o transformam. O poema enfatiza o não-profano, mas estranhando as categorias teológicas centrais. Novalis seria herético enquanto a heresia é irmã da imaginação. Bohrer procura entender o que diz Schlegel quando fala de criar uma nova mitologia, em Conversa sobre a poesia, como uma desestabilização heréticosubversiva da tradição.

Os Hinos à noite são – diferentemente dos Night thoughts de Edward Young (1742/ 43), como um todo, uma homenagem ao lado noturno e inconsciente dos homens e seus meios: erotismo, sono e morte. Essa homenagem vale como uma noite, que no modo do sono é caracterizada como “mensagem silente de segredos infinitos”.

Bohrer mostra como uma semântica subjetiva da imaginação dissolve os dados objetivos de um discurso teológico histórico-filosófico previamente dado na sua temática: a tentativa de ler os Hinos à noite como uma mística autobiográfica, inspirada pela morte de Sofia e seguidora da mística de Boehme, ou seja, como uma religião privada conduzida de forma pietista, oculta o que aqui acontece em cadeias de imagens metafóricas. Também o texto de Novalis está marcado pela filosofia, especialmente pela discussão concentrada sobre a doutrina da ciência de Fichte. A proeminência do ato transcendental, como o caracterizam os aforismos teórico-especulativos de Novalis, atravessa os Hinos à noite: com isso evita-se que surja um mito no sentido tradicional, o que seria possível por meio da idéia básica da dicotomia entre noite e dia, num sentido quase arcaico.
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*VERA LINS, Doutora em Letras pela UFRJ em 1995, é Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. É autora de Gonzaga Duque, a estratégia do franco-atirador (Tempo Brasileiro, 1991) e Novos Pierrôs, velhos saltimbancos (Secretaria de Cultura do Paraná, 1998).

Fontes:
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/
Pintura = http://www.portais.org

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