Primeiro livro de ficção do escritor irlandês, reúne 15 contos escritos quanto ele tinha 23 anos. O próprio Joyce dividiu as histórias em quatro temas: infância, adolescência, vida madura e vida pública. Os contos acabam formando uma espécie de história moral da Irlanda, como definiu o escritor. O estilo dos textos é naturalista, com clara influência de Flaubert, de Tchecov e de Maupassant.
Síntese
Estes quinze contos que compõem Dublinenses são sem dúvida a melhor porta de entrada para o conhecimento da obra do mais radical inovador da literatura do século 20.
Em narrativas curtas, o jovem irlandês James Joyce (1882-1941) presta aqui o seu tributo à grande tradição realista do século 19, sobretudo a Flaubert e Tchecov. Mas, como não poderia deixar de ser, o realismo de seus precursores é sutilmente subvertido nos pequenos retratos "fora de foco" de sua Dublin natal.
A trama dos contos pode ser vista como uma série de variações sobre temas irlandeses: o catolicismo rígido, a severa educação escolar, as relações familiares pautadas pela autoridade e a violência, o alcoolismo, a vida cinzenta da classe média, o nacionalismo diante da poderosa Inglaterra.
Vistas em conjunto, essas ficções dão forma ao que o próprio escritor definiu como "uma história moral da Irlanda".
História pública, mas vista predominantemente a partir de um ângulo privado: o escritório, a casa, o Irish pub. Sem chegar ao monólogo interior que marcaria as obras da maturidade, Joyce devassa os movimentos íntimos de suas personagens, confundindo o dentro e o fora, a impressão subjetiva e as miudezas cotidianas. Enfim: todos os elementos que seriam expandidos até a explosão em suas obras maiores, Ulisses e Finnegans Wake.
Em 1987, o cineasta norte-americano John Huston fez o último filme de sua carreira baseado no conto mais extenso e mais famoso de Dublinenses: "Os Mortos", incluído em incontáveis antologias dos maiores contos em língua inglesa de todos os tempos.
Trechos do livro Dublinenses
Síntese
Estes quinze contos que compõem Dublinenses são sem dúvida a melhor porta de entrada para o conhecimento da obra do mais radical inovador da literatura do século 20.
Em narrativas curtas, o jovem irlandês James Joyce (1882-1941) presta aqui o seu tributo à grande tradição realista do século 19, sobretudo a Flaubert e Tchecov. Mas, como não poderia deixar de ser, o realismo de seus precursores é sutilmente subvertido nos pequenos retratos "fora de foco" de sua Dublin natal.
A trama dos contos pode ser vista como uma série de variações sobre temas irlandeses: o catolicismo rígido, a severa educação escolar, as relações familiares pautadas pela autoridade e a violência, o alcoolismo, a vida cinzenta da classe média, o nacionalismo diante da poderosa Inglaterra.
Vistas em conjunto, essas ficções dão forma ao que o próprio escritor definiu como "uma história moral da Irlanda".
História pública, mas vista predominantemente a partir de um ângulo privado: o escritório, a casa, o Irish pub. Sem chegar ao monólogo interior que marcaria as obras da maturidade, Joyce devassa os movimentos íntimos de suas personagens, confundindo o dentro e o fora, a impressão subjetiva e as miudezas cotidianas. Enfim: todos os elementos que seriam expandidos até a explosão em suas obras maiores, Ulisses e Finnegans Wake.
Em 1987, o cineasta norte-americano John Huston fez o último filme de sua carreira baseado no conto mais extenso e mais famoso de Dublinenses: "Os Mortos", incluído em incontáveis antologias dos maiores contos em língua inglesa de todos os tempos.
Trechos do livro Dublinenses
As irmãs
Desta vez não havia esperança para ele: fora o terceiro ataque. Noite após noite, ao passar diante da casa (era tempo de férias), observava o retângulo iluminado da janela e, todas as noites, encontrava-o com a mesma luz pálida e uniforme. Se estivesse morto, pensava, eu veria o reflexo das velas nas cortinas escuras, pois sabia que duas velas devem ser colocadas à cabeceira de um defunto. Dissera-me várias vezes "não ficarei muito tempo neste mundo" e eu julgara vãs suas palavras. Sabia agora que eram verdadeiras. Toda noite, ao olhar a janela, murmurava comigo a palavra paralisia. Ela sempre soara estranha aos meus ouvidos, como a palavra gnômon em Euclides e simonia no catecismo. Agora, porém, soava como o nome de um ente maléfico e pecaminoso. Enchia-me de terror, mas ainda assim ansiava contemplar de perto seu trabalho implacável.
Quando desci para o jantar, o velho Cotter estava sentado junto à lareira, fumando. Enquanto minha tia preparava-me um prato de aveia, ele disse, como retomando uma observação anterior:
- Não, não afirmaria que era exatamente... mas havia nele algo de excêntrico... de misterioso. Em minha opinião...
Começou a tirar baforadas do cachimbo, por certo ganhando tempo para forjar a tal opinião. Velho enfadonho, tolo! No princípio, quando o conhecemos, costumava ser interessante com suas conversas sobre vermes e desmaios, mas logo cansara-me dele e de suas intermináveis histórias a respeito da destilaria.
- Tenho minha teoria sobre isso - prosseguiu. - Penso que se trata de um desses... casos peculiares... Mas é difícil afirmar...
Voltou a aspirar o cachimbo, sem nos expor a teoria. Vendo-me de olhar atento, meu tio dirigiu-se a mim:
- Bem, seu amigo morreu. É uma notícia triste para você.
- Quem?
- O padre Flynn.
- Está morto?
- O senhor Cotter acaba de nos contar. Passou há pouco diante da casa...
Sabia que me observavam e continuei a comer como se o fato não tivesse interesse para mim. Meu tio explicou ao velho Cotter:
- O garoto e ele eram grandes amigos. O velhote ensinou-lhe muitas coisas, compreende? Dizem que o queria muito bem.
- Deus tenha misericórdia de sua alma - murmurou, em tom piedoso, minha tia.
O velho Cotter fitou-me um instante. Senti seus olhos pequenos e negros, redondos como duas contas, examinarem-me. Mas não lhe daria o prazer de desviar meus olhos do prato. Ele retornou ao cachimbo e, passado algum tempo, cuspiu grosseiramente na lareira.
- Não gostaria que um filho meu - recomeçou - tivesse muito a falar com um homem desse tipo. - Que pretende dizer com isso, senhor Cotter? - perguntou minha tia.
- Que não é nada bom para uma criança. Minha opinião é a seguinte: rapazes devem andar e se divertir com rapazes da mesma idade e não... Estou certo, Jack?
- Também penso assim - concordou meu tio. - Ele que aprenda a se defender. Estou sempre dizendo a esse rosa-cruz aí: faça exercícios. Quando eu era rapazote, tomava toda manhã, fosse inverno ou verão, uma ducha fria. É o que me conserva firme até hoje. Cultura é coisa muito boa, mas... Voltou-se para minha tia:
- ... creio que o senhor Cotter apreciaria uma fatiazinha desse carneiro.
- Não, não. Para mim não - recusou o velho Cotter.
Minha tia trouxe a travessa do guarda-comida e colocou-a na mesa:
- Mas por que não é bom para as crianças, senhor Cotter? - insistiu ela.
- Porque são muito impressionáveis. Quando vêem coisas como essas, a senhora sabe, isso tem um efeito...
Enchi a boca de aveia, temendo que minha raiva me traísse. Velho narigudo, enfadonho, imbecil!
Era bem tarde quando adormeci. Embora irritado com o velho Cotter, que me tratara como criança, esforçava-me em compreender o sentido de suas frases inacabadas. Na escuridão do quarto, imaginei estar vendo o rosto severo e grisalho do paralítico. Puxei as cobertas sobre a cabeça e procurei pensar no Natal, mas o rosto continuou a perseguir-me. O espectro movia os lábios e compreendi que desejava confessar-me alguma coisa. Senti a alma retroceder para uma região agradável e corrupta e, também lá, encontrei-o esperando por mim. Começou a confessar-se numa voz murmurada e eu me indagava por que razão ele não parava de sorrir e por que seus lábios estavam tão úmidos de saliva. Recordei-me então que morrera de paralisia e percebi que eu também sorria delicadamente, como para absolvê-lo da simonia do seu pecado.
Na manhã seguinte, após o café, desci para observar a pequena casa da rua Great Britain. Era uma loja modesta, designada pelo vago nome de Armarinhos. Seus artigos consistiam, principalmente, em guarda-chuvas e botas para crianças. Em dias normais, havia uma tabuleta pendurada na vitrina: Recobrem-se guarda-chuvas. Não se via a tabuleta agora, pois as cortinas estavam fechadas. Uma coroa de crepe estava presa à maçaneta por uma fita. Duas mulheres pobres e um garoto entregador de telegramas liam o cartão espetado na coroa:
1.° de julho de 1895
Reverendo James Flynn (outrora da Igreja de Santa Catarina, rua Meath), com a idade de sessenta e cinco anos.
R. I. P.
O cartão convenceu-me de que estava morto e a comprovação perturbou-me. Se estivesse vivo, eu entraria no quarto pequeno e escuro nos fundos da loja, onde o encontraria na poltrona junto à lareira, sumido quase dentro do seu casaco. Titia talvez lhe tivesse mandado um pacotinho de High Toast e esse presente arrancá-lo-ia do entorpecimento. Era sempre eu quem esvaziava o pacote na caixinha, pois suas mãos, trêmulas demais, não permitiriam que ele próprio o fizesse sem derramar metade no chão. Mesmo quando levava o rapé ao nariz, com a mão larga e incerta, minúsculas nuvens de fumo escapavam-lhe por entre os dedos sobre o casaco. Essa constante chuva de tabaco era talvez responsável pela cor verde e surrada de seus paramentos eclesiásticos, pois o lenço vermelho, quase sempre sujo de uma semana, com que tentava remover as migalhas de fumo, mostrava-se de todo ineficaz.
Quis entrar para vê-lo, mas faltou-me coragem de bater à porta. Afastei-me devagar e, enquanto caminhava pela parte ensolarada da rua, ia lendo os anúncios de teatro nas vitrinas das lojas.
Surpreendia-me que nem eu, nem o dia, aparentasse tristeza e fiquei realmente aborrecido ao descobrir em mim uma sensação de alívio, como se sua morte me houvesse de alguma forma libertado. Espantava-me porque, como dissera meu tio na noite anterior, o velho padre instruíra-me muito. Havia cursado o colégio irlandês de Roma e ensinara-me a pronunciar corretamente o latim. Contara-me histórias acerca das catacumbas e de Napoleão Bonaparte; explicara-me o significado das diversas cerimônias da missa e das diferentes vestes usadas pelo sacerdote. Às vezes, divertia-se fazendo-me perguntas difíceis. Perguntava-me o que uma pessoa deveria fazer em determinada circunstância, se este ou aquele pecado era venial, mortal ou apenas imperfeição.
Suas inquirições mostravam-me como eram complexas e misteriosas certas normas da Igreja, que eu sempre tivera como atos muito simples. Os deveres do sacerdote para com a Eucaristia e o sigilo do confessionário pareceram-me tão graves que me admirava ter alguém suficiente coragem para assumi-los. E não me surpreendi ao ouvi-lo dizer que, elucidando aquelas complicadas questões, os padres haviam escrito livros tão grossos como o Anuário do Correio e em letra tão miúda como a das notas jurídicas dos jornais. Eu geralmente não sabia responder ou o fazia de forma tímida e hesitante, diante do que ele balançava a cabeça e sorria. Mandava-me às vezes dizer as réplicas da missa, que me fizera decorar. Enquanto eu tagarelava, ele sorria pensativamente, movendo a cabeça e aspirando, de tempo em tempo, grandes pitadas de rapé numa e noutra narina, alternadamente. Ao sorrir, mostrava grandes dentes enegrecidos e sua língua pendia sobre o lábio inferior - hábito que me causara má impressão no início de nossa amizade, quando ainda não o conhecia bem.
Caminhando pelo sol, recordei-me das palavras do velho Cotter e tentei lembrar a seqüência do sonho. Recordei-me de ter visto longas cortinas de veludo e uma lâmpada antiga oscilando suspensa. Tinha a sensação de haver estado muito longe - na Pérsia, pensei -, mas não pude reconstituir o final do sonho.
À tardinha, titia levou-me com ela para a visita de pêsames. Era quase noite, mas as janelas das casas voltadas para o ocaso refletiam o ouro fulvo de um aglomerado de nuvens. Nannie recebeu-nos no vestíbulo e como se fosse indelicado dirigir-lhe a palavra, titia limitou-se a apertar-lhe a mão. A idosa mulher apontou para cima interrogativamente e, ao assentimento de minha tia, adiantou-se a nós e subiu com esforço a escada estreita, arqueando a cabeça quase ao nível do corrimão. Parou no primeiro patamar e indicou-nos a porta aberta da câmara mortuária. Minha tia entrou. Vendo que eu hesitava, a mulher encorajou-me com repetidos acenos.
Entrei na ponta dos pés. Através das cortinas uma luz fosca e dourada invadia o quarto, empalidecendo a chama das velas. Ele estava no caixão. Nannie fez um sinal e nós três nos ajoelhamos ao pé da cama. Fingi estar rezando, mas não conseguia ordenar meus pensamentos, pois os murmúrios da velha distraíam-me. Reparava na forma grosseira com que sua saia estava presa às costas por um alfinete e nos saltos de suas botas de pano, gastos de um lado só. Ocorreu-me então a idéia de que o velho sorria deitado no caixão.
Mas não. Quando nos levantamos e fomos à cabeceira do leito, vi que não estava sorrindo. Jazia ali, imenso, solene, vestido como para a missa, as mãos segurando molemente um cálice. Na verdade seu rosto, circundado por escassa penugem branca, era truculento, escuro e maciço, com narinas negras e cavernosas. Um odor pesado no quarto: as flores.
Persignamo-nos e saímos. Na saleta, embaixo, encontramos Eliza dignamente sentada na poltrona que pertencera ao morto. Com timidez, dirigi-me à cadeira de costume, no canto, enquanto Nannie apanhava uma garrafa de xerez e alguns cálices no guarda-louças. Colocou-os na mesa e convidou-nos a tomar um pouco de vinho. A um sinal da irmã, serviu o xerez e passou-nos os cálices.
Insistiu para que eu aceitasse alguns biscoitos, mas recusei achando que iria fazer muito barulho mastigando-os. Pareceu um tanto desapontada com minha recusa e, em silêncio, foi sentar-se no sofá, atrás da irmã. Ninguém falava: olhávamos todos para a lareira apagada. Minha tia esperou que Eliza suspirasse e disse:
- Bem, foi para um mundo melhor.
Eliza tornou a suspirar e balançou a cabeça, concordando. Titia bateu com o dedo na haste do cálice, antes de provar um minúsculo gole.
- ... foi... tranqüila? - perguntou ela.
- Oh, muito tranqüila, madame - respondeu Eliza. - Nem se percebeu quando a respiração cessou. Teve uma bela morte, louvado seja Deus!
- E tudo?...
- Padre O'Rourke esteve com ele na terça-feira. Deu-lhe a extrema-unção e preparou-o.
- Então ele sabia?
- Estava totalmente conformado.
- Seu rosto mostra isso - comentou minha tia.
- Foi o que disse a mulher que veio lavá-lo: "Parece estar dormindo, tão resignada e serena é sua expressão." Ninguém podia imaginar que daria um defunto tão bonito.
- É verdade - concordou titia.
Bebeu outro pequeno gole e prosseguiu:
- Bem, senhorita Flynn, de qualquer maneira deve ser um grande consolo para vocês saber que fizeram tudo o que podiam. Foram muito devotadas a ele.
Eliza pôs as mãos nos joelhos, alisando o vestido:
- Ah! Pobre James! - exclamou. - Deus sabe que apesar de nossa pobreza fizemos o que estava ao nosso alcance. Não lhe deixaríamos faltar nada enquanto vivesse.
Nannie reclinara-se na almofada do sofá e parecia prestes a adormecer.
- Veja a pobre Nannie - disse Eliza, fitando-a. - Está esgotada. O trabalho que tivemos, procurando a mulher para lavá-lo, vestindo-o, colocando-o no caixão, cuidando dos preparativos para a missa na capela. Sem o padre O'Rourke, não sei o que seria de nós. Foi ele quem trouxe todas essas flores e os dois castiçais da capela. Escreveu também a nota para o Freeman's General, cuidou de todos os papéis para o enterro e do seguro do pobre James.
- Muita bondade dele, não acha? - disse titia.
Eliza fechou os olhos e balançou a cabeça, lentamente:
- Nas horas difíceis o que vale são os velhos amigos. Amigos em que se pode confiar.
- É bem verdade - aprovou minha tia. - Estou certa de que agora, na vida eterna para onde foi, ele não se esquecerá de vocês e de toda sua dedicação.
- Ah! Pobre James! - lamentou Eliza novamente. - Não nos dava muito trabalho. Não se notava sua presença na casa mais do que agora. No entanto, sei que morreu e...
- Quando tudo terminar é que sentirão sua falta - observou titia.
- Sei disso. Nunca mais lhe trarei a sopa de carne, nem a senhora, madame, o presenteará com o rapé. Oh, pobre James!
Ficou um instante em silêncio, a comungar com o passado, e acrescentou com expressão sagaz: - Sabe, notei que algo estranho lhe ocorria ultimamente. Sempre que lhe trazia a sopa, encontrava-o inerte na poltrona, a boca aberta, o breviário caído no chão.
Pôs um dedo sobre o nariz e franziu a testa:
- Mesmo assim, continuava a dizer que qualquer dia, antes do verão terminar, iria visitar nossa velha casa em Iristown e nos levaria com ele. Se pudesse alugar no Johnny Rush aqui perto, ao menos por um dia - afirmava ele - uma dessas carruagens modernas e silenciosas, com rodas macias para pessoas reumáticas, de que lhe falara padre O'Rourke, então sairíamos os três numa tarde de domingo... Era uma idéia fixa... Pobre James!
- Deus tenha misericórdia de sua alma! - rogou minha tia.
Eliza tirou o lenço e enxugou os olhos. Tornou a guardá-lo no bolso e fitou por um momento a lareira apagada, sem nada dizer.
- Foi sempre tão escrupuloso - recomeçou. - Os deveres do sacerdócio foram pesados demais para ele e sua vida foi, pode-se dizer, frustrada.
- Sim - disse minha tia. - Era um homem desiludido. Percebia-se isso.
Aproveitando o silêncio que se apossou da sala, fui até a mesa, provei meu vinho e retornei silenciosamente à minha cadeira. Eliza parecia ter mergulhado em profundo devaneio.
Respeitosamente, esperamos que ela rompesse o silêncio. Após longa pausa, ela disse lentamente:
- Aquele cálice que ele quebrou... Foi o começo de tudo. Disseram, é claro, que não tinha importância, o cálice estava vazio, creio eu. Mesmo assim... Disseram-lhe também que a culpa fora do coroinha, mas o pobre James era tão nervoso! Que Deus tenha piedade dele!
- Então foi isso? - perguntou minha tia. - Ouvi dizer que...
Eliza balançou a cabeça:
- Isso perturbou-lhe a mente. Depois do acidente, ficou desorientado. Divagava, não falava com ninguém. Certa noite, procuraram-no para atender a um chamado e não o encontraram em lugar nenhum. O sacristão sugeriu que tentassem a capela. Ele, padre O'Rourke e mais outro sacerdote que lá estava apanharam as chaves e levaram uma lanterna para procurá-lo. Imagine que ele estava sentado no confessionário, sozinho, olhos arregalados e rindo consigo mesmo.
Calou-se bruscamente como para ouvir alguma coisa. Também prestei atenção, mas não havia na casa o mínimo rumor e eu sabia que o velho sacerdote continuava no caixão, tal como o havíamos visto, solene e truculento na morte, um cálice inútil sobre o peito.
Eliza recomeçou:
- Os olhos arregalados e rindo sozinho... Naturalmente, ao verem isso, pensaram logo que alguma coisa não andava bem com ele...
Fontes:
http://vestibular.uol.com.br/ultnot/livrosresumos/
Imagem = http://wwwrenatacordeiro.blogspot.com
Desta vez não havia esperança para ele: fora o terceiro ataque. Noite após noite, ao passar diante da casa (era tempo de férias), observava o retângulo iluminado da janela e, todas as noites, encontrava-o com a mesma luz pálida e uniforme. Se estivesse morto, pensava, eu veria o reflexo das velas nas cortinas escuras, pois sabia que duas velas devem ser colocadas à cabeceira de um defunto. Dissera-me várias vezes "não ficarei muito tempo neste mundo" e eu julgara vãs suas palavras. Sabia agora que eram verdadeiras. Toda noite, ao olhar a janela, murmurava comigo a palavra paralisia. Ela sempre soara estranha aos meus ouvidos, como a palavra gnômon em Euclides e simonia no catecismo. Agora, porém, soava como o nome de um ente maléfico e pecaminoso. Enchia-me de terror, mas ainda assim ansiava contemplar de perto seu trabalho implacável.
Quando desci para o jantar, o velho Cotter estava sentado junto à lareira, fumando. Enquanto minha tia preparava-me um prato de aveia, ele disse, como retomando uma observação anterior:
- Não, não afirmaria que era exatamente... mas havia nele algo de excêntrico... de misterioso. Em minha opinião...
Começou a tirar baforadas do cachimbo, por certo ganhando tempo para forjar a tal opinião. Velho enfadonho, tolo! No princípio, quando o conhecemos, costumava ser interessante com suas conversas sobre vermes e desmaios, mas logo cansara-me dele e de suas intermináveis histórias a respeito da destilaria.
- Tenho minha teoria sobre isso - prosseguiu. - Penso que se trata de um desses... casos peculiares... Mas é difícil afirmar...
Voltou a aspirar o cachimbo, sem nos expor a teoria. Vendo-me de olhar atento, meu tio dirigiu-se a mim:
- Bem, seu amigo morreu. É uma notícia triste para você.
- Quem?
- O padre Flynn.
- Está morto?
- O senhor Cotter acaba de nos contar. Passou há pouco diante da casa...
Sabia que me observavam e continuei a comer como se o fato não tivesse interesse para mim. Meu tio explicou ao velho Cotter:
- O garoto e ele eram grandes amigos. O velhote ensinou-lhe muitas coisas, compreende? Dizem que o queria muito bem.
- Deus tenha misericórdia de sua alma - murmurou, em tom piedoso, minha tia.
O velho Cotter fitou-me um instante. Senti seus olhos pequenos e negros, redondos como duas contas, examinarem-me. Mas não lhe daria o prazer de desviar meus olhos do prato. Ele retornou ao cachimbo e, passado algum tempo, cuspiu grosseiramente na lareira.
- Não gostaria que um filho meu - recomeçou - tivesse muito a falar com um homem desse tipo. - Que pretende dizer com isso, senhor Cotter? - perguntou minha tia.
- Que não é nada bom para uma criança. Minha opinião é a seguinte: rapazes devem andar e se divertir com rapazes da mesma idade e não... Estou certo, Jack?
- Também penso assim - concordou meu tio. - Ele que aprenda a se defender. Estou sempre dizendo a esse rosa-cruz aí: faça exercícios. Quando eu era rapazote, tomava toda manhã, fosse inverno ou verão, uma ducha fria. É o que me conserva firme até hoje. Cultura é coisa muito boa, mas... Voltou-se para minha tia:
- ... creio que o senhor Cotter apreciaria uma fatiazinha desse carneiro.
- Não, não. Para mim não - recusou o velho Cotter.
Minha tia trouxe a travessa do guarda-comida e colocou-a na mesa:
- Mas por que não é bom para as crianças, senhor Cotter? - insistiu ela.
- Porque são muito impressionáveis. Quando vêem coisas como essas, a senhora sabe, isso tem um efeito...
Enchi a boca de aveia, temendo que minha raiva me traísse. Velho narigudo, enfadonho, imbecil!
Era bem tarde quando adormeci. Embora irritado com o velho Cotter, que me tratara como criança, esforçava-me em compreender o sentido de suas frases inacabadas. Na escuridão do quarto, imaginei estar vendo o rosto severo e grisalho do paralítico. Puxei as cobertas sobre a cabeça e procurei pensar no Natal, mas o rosto continuou a perseguir-me. O espectro movia os lábios e compreendi que desejava confessar-me alguma coisa. Senti a alma retroceder para uma região agradável e corrupta e, também lá, encontrei-o esperando por mim. Começou a confessar-se numa voz murmurada e eu me indagava por que razão ele não parava de sorrir e por que seus lábios estavam tão úmidos de saliva. Recordei-me então que morrera de paralisia e percebi que eu também sorria delicadamente, como para absolvê-lo da simonia do seu pecado.
Na manhã seguinte, após o café, desci para observar a pequena casa da rua Great Britain. Era uma loja modesta, designada pelo vago nome de Armarinhos. Seus artigos consistiam, principalmente, em guarda-chuvas e botas para crianças. Em dias normais, havia uma tabuleta pendurada na vitrina: Recobrem-se guarda-chuvas. Não se via a tabuleta agora, pois as cortinas estavam fechadas. Uma coroa de crepe estava presa à maçaneta por uma fita. Duas mulheres pobres e um garoto entregador de telegramas liam o cartão espetado na coroa:
1.° de julho de 1895
Reverendo James Flynn (outrora da Igreja de Santa Catarina, rua Meath), com a idade de sessenta e cinco anos.
R. I. P.
O cartão convenceu-me de que estava morto e a comprovação perturbou-me. Se estivesse vivo, eu entraria no quarto pequeno e escuro nos fundos da loja, onde o encontraria na poltrona junto à lareira, sumido quase dentro do seu casaco. Titia talvez lhe tivesse mandado um pacotinho de High Toast e esse presente arrancá-lo-ia do entorpecimento. Era sempre eu quem esvaziava o pacote na caixinha, pois suas mãos, trêmulas demais, não permitiriam que ele próprio o fizesse sem derramar metade no chão. Mesmo quando levava o rapé ao nariz, com a mão larga e incerta, minúsculas nuvens de fumo escapavam-lhe por entre os dedos sobre o casaco. Essa constante chuva de tabaco era talvez responsável pela cor verde e surrada de seus paramentos eclesiásticos, pois o lenço vermelho, quase sempre sujo de uma semana, com que tentava remover as migalhas de fumo, mostrava-se de todo ineficaz.
Quis entrar para vê-lo, mas faltou-me coragem de bater à porta. Afastei-me devagar e, enquanto caminhava pela parte ensolarada da rua, ia lendo os anúncios de teatro nas vitrinas das lojas.
Surpreendia-me que nem eu, nem o dia, aparentasse tristeza e fiquei realmente aborrecido ao descobrir em mim uma sensação de alívio, como se sua morte me houvesse de alguma forma libertado. Espantava-me porque, como dissera meu tio na noite anterior, o velho padre instruíra-me muito. Havia cursado o colégio irlandês de Roma e ensinara-me a pronunciar corretamente o latim. Contara-me histórias acerca das catacumbas e de Napoleão Bonaparte; explicara-me o significado das diversas cerimônias da missa e das diferentes vestes usadas pelo sacerdote. Às vezes, divertia-se fazendo-me perguntas difíceis. Perguntava-me o que uma pessoa deveria fazer em determinada circunstância, se este ou aquele pecado era venial, mortal ou apenas imperfeição.
Suas inquirições mostravam-me como eram complexas e misteriosas certas normas da Igreja, que eu sempre tivera como atos muito simples. Os deveres do sacerdote para com a Eucaristia e o sigilo do confessionário pareceram-me tão graves que me admirava ter alguém suficiente coragem para assumi-los. E não me surpreendi ao ouvi-lo dizer que, elucidando aquelas complicadas questões, os padres haviam escrito livros tão grossos como o Anuário do Correio e em letra tão miúda como a das notas jurídicas dos jornais. Eu geralmente não sabia responder ou o fazia de forma tímida e hesitante, diante do que ele balançava a cabeça e sorria. Mandava-me às vezes dizer as réplicas da missa, que me fizera decorar. Enquanto eu tagarelava, ele sorria pensativamente, movendo a cabeça e aspirando, de tempo em tempo, grandes pitadas de rapé numa e noutra narina, alternadamente. Ao sorrir, mostrava grandes dentes enegrecidos e sua língua pendia sobre o lábio inferior - hábito que me causara má impressão no início de nossa amizade, quando ainda não o conhecia bem.
Caminhando pelo sol, recordei-me das palavras do velho Cotter e tentei lembrar a seqüência do sonho. Recordei-me de ter visto longas cortinas de veludo e uma lâmpada antiga oscilando suspensa. Tinha a sensação de haver estado muito longe - na Pérsia, pensei -, mas não pude reconstituir o final do sonho.
À tardinha, titia levou-me com ela para a visita de pêsames. Era quase noite, mas as janelas das casas voltadas para o ocaso refletiam o ouro fulvo de um aglomerado de nuvens. Nannie recebeu-nos no vestíbulo e como se fosse indelicado dirigir-lhe a palavra, titia limitou-se a apertar-lhe a mão. A idosa mulher apontou para cima interrogativamente e, ao assentimento de minha tia, adiantou-se a nós e subiu com esforço a escada estreita, arqueando a cabeça quase ao nível do corrimão. Parou no primeiro patamar e indicou-nos a porta aberta da câmara mortuária. Minha tia entrou. Vendo que eu hesitava, a mulher encorajou-me com repetidos acenos.
Entrei na ponta dos pés. Através das cortinas uma luz fosca e dourada invadia o quarto, empalidecendo a chama das velas. Ele estava no caixão. Nannie fez um sinal e nós três nos ajoelhamos ao pé da cama. Fingi estar rezando, mas não conseguia ordenar meus pensamentos, pois os murmúrios da velha distraíam-me. Reparava na forma grosseira com que sua saia estava presa às costas por um alfinete e nos saltos de suas botas de pano, gastos de um lado só. Ocorreu-me então a idéia de que o velho sorria deitado no caixão.
Mas não. Quando nos levantamos e fomos à cabeceira do leito, vi que não estava sorrindo. Jazia ali, imenso, solene, vestido como para a missa, as mãos segurando molemente um cálice. Na verdade seu rosto, circundado por escassa penugem branca, era truculento, escuro e maciço, com narinas negras e cavernosas. Um odor pesado no quarto: as flores.
Persignamo-nos e saímos. Na saleta, embaixo, encontramos Eliza dignamente sentada na poltrona que pertencera ao morto. Com timidez, dirigi-me à cadeira de costume, no canto, enquanto Nannie apanhava uma garrafa de xerez e alguns cálices no guarda-louças. Colocou-os na mesa e convidou-nos a tomar um pouco de vinho. A um sinal da irmã, serviu o xerez e passou-nos os cálices.
Insistiu para que eu aceitasse alguns biscoitos, mas recusei achando que iria fazer muito barulho mastigando-os. Pareceu um tanto desapontada com minha recusa e, em silêncio, foi sentar-se no sofá, atrás da irmã. Ninguém falava: olhávamos todos para a lareira apagada. Minha tia esperou que Eliza suspirasse e disse:
- Bem, foi para um mundo melhor.
Eliza tornou a suspirar e balançou a cabeça, concordando. Titia bateu com o dedo na haste do cálice, antes de provar um minúsculo gole.
- ... foi... tranqüila? - perguntou ela.
- Oh, muito tranqüila, madame - respondeu Eliza. - Nem se percebeu quando a respiração cessou. Teve uma bela morte, louvado seja Deus!
- E tudo?...
- Padre O'Rourke esteve com ele na terça-feira. Deu-lhe a extrema-unção e preparou-o.
- Então ele sabia?
- Estava totalmente conformado.
- Seu rosto mostra isso - comentou minha tia.
- Foi o que disse a mulher que veio lavá-lo: "Parece estar dormindo, tão resignada e serena é sua expressão." Ninguém podia imaginar que daria um defunto tão bonito.
- É verdade - concordou titia.
Bebeu outro pequeno gole e prosseguiu:
- Bem, senhorita Flynn, de qualquer maneira deve ser um grande consolo para vocês saber que fizeram tudo o que podiam. Foram muito devotadas a ele.
Eliza pôs as mãos nos joelhos, alisando o vestido:
- Ah! Pobre James! - exclamou. - Deus sabe que apesar de nossa pobreza fizemos o que estava ao nosso alcance. Não lhe deixaríamos faltar nada enquanto vivesse.
Nannie reclinara-se na almofada do sofá e parecia prestes a adormecer.
- Veja a pobre Nannie - disse Eliza, fitando-a. - Está esgotada. O trabalho que tivemos, procurando a mulher para lavá-lo, vestindo-o, colocando-o no caixão, cuidando dos preparativos para a missa na capela. Sem o padre O'Rourke, não sei o que seria de nós. Foi ele quem trouxe todas essas flores e os dois castiçais da capela. Escreveu também a nota para o Freeman's General, cuidou de todos os papéis para o enterro e do seguro do pobre James.
- Muita bondade dele, não acha? - disse titia.
Eliza fechou os olhos e balançou a cabeça, lentamente:
- Nas horas difíceis o que vale são os velhos amigos. Amigos em que se pode confiar.
- É bem verdade - aprovou minha tia. - Estou certa de que agora, na vida eterna para onde foi, ele não se esquecerá de vocês e de toda sua dedicação.
- Ah! Pobre James! - lamentou Eliza novamente. - Não nos dava muito trabalho. Não se notava sua presença na casa mais do que agora. No entanto, sei que morreu e...
- Quando tudo terminar é que sentirão sua falta - observou titia.
- Sei disso. Nunca mais lhe trarei a sopa de carne, nem a senhora, madame, o presenteará com o rapé. Oh, pobre James!
Ficou um instante em silêncio, a comungar com o passado, e acrescentou com expressão sagaz: - Sabe, notei que algo estranho lhe ocorria ultimamente. Sempre que lhe trazia a sopa, encontrava-o inerte na poltrona, a boca aberta, o breviário caído no chão.
Pôs um dedo sobre o nariz e franziu a testa:
- Mesmo assim, continuava a dizer que qualquer dia, antes do verão terminar, iria visitar nossa velha casa em Iristown e nos levaria com ele. Se pudesse alugar no Johnny Rush aqui perto, ao menos por um dia - afirmava ele - uma dessas carruagens modernas e silenciosas, com rodas macias para pessoas reumáticas, de que lhe falara padre O'Rourke, então sairíamos os três numa tarde de domingo... Era uma idéia fixa... Pobre James!
- Deus tenha misericórdia de sua alma! - rogou minha tia.
Eliza tirou o lenço e enxugou os olhos. Tornou a guardá-lo no bolso e fitou por um momento a lareira apagada, sem nada dizer.
- Foi sempre tão escrupuloso - recomeçou. - Os deveres do sacerdócio foram pesados demais para ele e sua vida foi, pode-se dizer, frustrada.
- Sim - disse minha tia. - Era um homem desiludido. Percebia-se isso.
Aproveitando o silêncio que se apossou da sala, fui até a mesa, provei meu vinho e retornei silenciosamente à minha cadeira. Eliza parecia ter mergulhado em profundo devaneio.
Respeitosamente, esperamos que ela rompesse o silêncio. Após longa pausa, ela disse lentamente:
- Aquele cálice que ele quebrou... Foi o começo de tudo. Disseram, é claro, que não tinha importância, o cálice estava vazio, creio eu. Mesmo assim... Disseram-lhe também que a culpa fora do coroinha, mas o pobre James era tão nervoso! Que Deus tenha piedade dele!
- Então foi isso? - perguntou minha tia. - Ouvi dizer que...
Eliza balançou a cabeça:
- Isso perturbou-lhe a mente. Depois do acidente, ficou desorientado. Divagava, não falava com ninguém. Certa noite, procuraram-no para atender a um chamado e não o encontraram em lugar nenhum. O sacristão sugeriu que tentassem a capela. Ele, padre O'Rourke e mais outro sacerdote que lá estava apanharam as chaves e levaram uma lanterna para procurá-lo. Imagine que ele estava sentado no confessionário, sozinho, olhos arregalados e rindo consigo mesmo.
Calou-se bruscamente como para ouvir alguma coisa. Também prestei atenção, mas não havia na casa o mínimo rumor e eu sabia que o velho sacerdote continuava no caixão, tal como o havíamos visto, solene e truculento na morte, um cálice inútil sobre o peito.
Eliza recomeçou:
- Os olhos arregalados e rindo sozinho... Naturalmente, ao verem isso, pensaram logo que alguma coisa não andava bem com ele...
Fontes:
http://vestibular.uol.com.br/ultnot/livrosresumos/
Imagem = http://wwwrenatacordeiro.blogspot.com
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