sábado, 14 de março de 2009

Caldeirão Poético de Todos os Brasis




ACRE

Jorge Tufic
A ORIGEM DA NOITE

A Noite era um fantasma que se repartia
entre a luz e a escuridão.

Um lado desse fantasma era escuro e feio.
O outro lado era claro e bonito.

Nãmi, era como se chamava o dono da Noite.

Os grilos teciam as folhagens do sono
enquanto o pássaro japu tratava de afastar,
com seu bico,
as cortinas da madrugada.

Antes de dar a Noite a seus netos,
Nãmi comeu ipadu e fumou olé-o (cigarro).

O resto dessa estória ninguém sabe,
porque uma parte dela ficou com a Gente da Noite
e a outra parte ficou com a Gente do Dia.
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ALAGOAS

Lêdo Ivo
O PASSARINHO MORTO

A santidade do mundo me aparece
sob a forma assustada de um esquilo
que me contempla entre arbustos.
Devo esta aparição ao deus que me criou
e me faz notar o miúdo e o insólito.
A poeira na asa da borboleta
E a chuva radiosa.
Abaixo-me e agarro o passarinho morto
que nem a neve soube guardar.
Por que o mataste, ó deus do frio
que, na noite de Nova Iorque, une a homem e mulher.
Como uma formiga, espero que o comboio passe
para atravessar
os trilhos sangrados pela ferrugem.
E, cristaleiro, amo o que o tempo fez
sem que fosse preciso ferir ou insultar:
vaga na prancha podre de um navio
ou o fulgir de um diamante.
A essa forma de perfeição, luminosa e fria,
é que aspiro às vezes quando, no banco de um parque,
vejo o passarinho morto
ou, homem, sou o esquilo que os esquilos
vêm olhar com surpresa.
Aos céus que guardam o granizo e a saraiva,
peço isenção de selo funerário.
Mas como esse deus mouco me ouviria?
Com seus olhos vazados, de que modo
me enxergaria? E as folhas caem, desbotadas, e o outono
é vento e podridão.
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AMAPÁ

Paulo Tarso Barros
MEUS OLHOS FALAM TÃO POUCO

Às vezes,
por corpo eu tenho o Universo
e o meu coração
torna-se uma estrela.
Por isso
não decifro as sombras
ocultas pelas coisas;
Por isso sou triste
e os meus olhos falam tão pouco
a linguagem do silêncio.
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AMAZONAS

Anibal Beça
ESPELHO

Para fechar sem chave a minha sina
Clara inversão da jaula das palavras
As vestes da sintaxe que componho
De baixo para cima é que renovo.

Escancarando um solo transmutado
Para o sol da surpresa nas janelas
Ao mesmo pouso de ave renascida
Do fim regresso fera não domada.

Na duração que escorre nessa arena
Lambendo vem a pressa em que me aposto>
Nessa voragem, vaga um mar de calma

Que me alimenta os ossos da memória.
Sobrada sobra, cinza dos minutos,
O que sobrou de mim são essas sombras.
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BAHIA

Rui Mascarenhas
DEVER DE CASA

À Marilena

Eles me ensinaram o que sentir e como sentir!
Me ensinaram o que pensar e como pensar!
Ensinaram o que dizer e como dizer!
O que fazer e como fazer!

...me ensinaram tudo errado!
De modos que eu me tornei parvo e preguiçoso
Me calaram aos poucos
E assim que fiquei mudo,
Me tomaram o corpo!
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CEARÁ

Nilto Maciel
SE ME CHAMARES FOGO

Se me chamares fogo
eu te labaredas.

Se me quiseres água
eu te correntezas.

Se me julgares vento
eu te tempestades.

Se me disseres pedra
eu te porcelanas.

Se me chamares chão
eu te profundezas.

Se me quiseres noite
eu te estrela Vésper.

Se me julgares pássaro
eu te vendavais.

Se me disseres corvo
eu te Allan Poe.

Se me chamares serpe
eu te paraíso.

Se me quiseres corda
eu te Tiradentes.

Se me julgares diabo
eu te tentações.

Se me disseres anjo
eu te candelabros.

Se me chamares deus
eu te eternidade.

Se me quiseres louco
eu te poesia.

Se me julgares santo
eu te crucifixos.

Se me disseres vida
eu te funerais.

Se me chamares mito
eu te tecelões.

Se me quiseres pródigo
eu te ancestrais.

Se me julgares hoje
eu te amanhã.

Se me disseres sempre
eu te nunca mais.

Se me chamares vem
eu te seguirei.
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DISTRITO FEDERAL

Pedro Gontijo
AINDA QUE QUEIRA PERDER-ME

Faça com a clareza dum beijo
que não mente, atrasa ou faz-de-conta
e só compraz a que apronta a alma

Perca-me baixinho, melhor, em silêncio
De beijo calado
Não faça lampejo, não dê volta e meia
Tome o ensejo firme e perene
obstinada

A nada permita que não me faça perder
Decidida, fatalmente perca-me
Invariável, eternamente perca-me
Faça-me perder, num repente, sem que eu perceba
e me arrependa.
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ESPÍRITO SANTO

Geir Campos
INVENTÁRIO

Esta epiderme há muitos muitos anos
me cobre: guarda algumas cicatrizes,
outras não lembra mais, e até mistura
uns caminhos da infância a outros de agora.

As unhas não direi que são as mesmas
com que o seio nutriz terei vincado:
são mais duras, mais feias e mais sujas
— pois nem sempre de amor e entrega foi
o chão em que plantei, colhi nem sempre.

Se os dentes não gastei, gastei meus olhos
entrevendo paisagens, vendo coisas,
cegando-me ante sésamos de sombra.

A alma apanhou demais e vai pejada,
mas vão leves as mãos cheias de nada
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GOIÁS

Cora Coralina
SOU RAIZ

Sou raiz, e vou caminhando
sobre as minhas raízes tribais.

Velhas jardineiras do passado ...
Condutores e cobradores, vós me levastes de mistura
com os pequenos e iletrados, pobres e remendados ...
Destes-me o nível dos humildes em tantas lições de vida.
Passante das estradas rodageiras, boiadeiros e comissários,
aqui fala a velha rapsodia.
Escuto na distância o sonido augusto do berrante que marca
o compasso das manadas que vão pelas estradas.
O mugido, o berro, o chamado da querência, a aguada,
o barreiro salitrado, a solta, o curral, a porteira,
a tronqueira, o cocho, o moirão, a salga, o ferro de marcar,
rubro, esbraseado. A castração impiedosa.
Eu sou a gleba e nada mais pretendo ser.
Mulher primária, roceira, operária, afeita à cozinha,
ao curral, ao coalho, ao barreleiro, ao tacho.
Seguro sempre nas mãos cansadas a velha candeia
de azeite veletudinária e vitalícia do passado.

Viajei nas velhas e valentes jardineiras
do interior roceiro, suas estradas de terra,
lameiros e atoleiros, seus heróicos e anônimos condutores
e cobradores, práticos, sabidos daqueles motores desgastados,
molas e lataria rangentes.
Santos milagreiros eram eles. Onde estarão?
Viajei de par com os humildes que tanto me ensinaram.

Viajantes das velhas jardineiras, meus vizinhos
das estradas viaje iras ...
Meus trabalhadores: Manoel Rosa, José Dias, Paulo, Manoel,
João, Mato Grosso, plantadores e enxadeiros, meus vizinhos sitiantes,
onde andarão eles?
Andradina, Castilho, J aboticabal, comissários e boiadeiros, tangerinos,
esta página é toda de vocês.
Fala de longe a velha rapsodia.
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MARANHÃO

Antonio Miranda
O JOVEM NA LIVRARIA
(um memorial)

De pé, lendo na livraria.
Nas proximidades, os bondes
confluindo no Tabuleiro da Baiana;
marmiteiros na direção de grotões
com valões a céu aberto;
trens trepidando e perdendo-se
nas penumbras ignotas e tristes
de um desterro suburbano.

De pé, lendo na livraria.
La fora, analfabetos e letrados
revezando-se no espaço
sem solução à vista:
Brasil, país do futuro!
(Escuro, muro, desconjuro.)
Transeuntes, ambulantes
e uma elite na livraria.

Senhores nos botecos, goles
de café, “lotações”; ainda havia
batedores de carteira, malandros,
funcionários públicos (barnabés)
pelos institutos de previdência.
O garoto, de pé, na livraria
lendo Drummond, Bandeira,
vindo do bairro mais distante.

Brasil, afinal, Campeão do Mundo!
Sorrisos sem dentes, salário mínimo,
programas de auditório, carnaval.
Mundo mundo, vasto mundo, eu não
me chamo Raimundo, mas Antonio,
flébil, esguio, com dinheiro apenas
para o pastel e o ônibus; os livros
eram leitura de livraria, de pé.

O pai, barnabé; a mãe, costureira.
De pé, lendo na livraria: Drummond,
Cabral, Bertrand Russell, e algo mais.
Um fragmento de Baudelaire, um pedaço
de Aimé Cesaire, frase de Nietzsche.
“-Que livros você quer levar, meu jovem?”
Pensou: “nenhum”. Gostaria, mas não podia.
Lá fora, tantos outros como ele.

Personagens sem olhos, sem boca.
Massas humanas movendo-se
anônimas; bacharéis luzindo anéis.
“A vida como ela é”, do Nelson Rodrigues.
Vedetes de teatro de revista, Ibrahim Sued.
Miss Brasil não falava inglês
e já imitavam jazz e rock
e a bossa-nova queria ganhar o mundo!

E o garoto, de pé, na livraria.
“Pode levar os livros que quiser, sem pagar”.
(...) “Sim, isso mesmo, jovem, os livros
que quiser: dois, dez, à vontade”.
Quis correr, encabulado, assustado.
“Uma pessoa viu-o lendo, e emocionou-se:
(...) Um magistrado, um homem abastado.”
(...) Deixou crédito aberto a seu favor...”

“Machado de Assis? Jorge Amado?
Menotti del Picchia? Sartre? Camus?”
“O que quiser, o que consiga levar!”
(...) Na estante de casa havia livros
emprestados da biblioteca pública.
Sorte que havia bibliotecas públicas!!!
Levou para casa o J. C. de Melo Neto
e a filosofia difusa de Lin Yutang.
.......................................................
Outros livros seguiu adquirindo
por conta própria: tantos, tantos!
E ali está, de pé, na livraria,
outro jovem suburbano lendo um livro!!!
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MATO GROSSO

Ronaldo de Castro
A ÁGUA

A água corre
a distância cilíndrica
e num jato frio morre
na boca nívea da pia

A esponja mineral
do canteiro chupa a água
O esgoto é sepultura
das águas desta cidade
que lavam ruas e sexos
e a sede matam também

Pluvial ou água clorada
a água líquida informe
são as formas diluídas
de sorrisos naufragados

Quando o gelo é água dura
engarrafada é pileque
no rio é casa de peixe
no céu é nuvem eqüestre
no mar pode ser salitre

Água água sempre água
deslizante fugidia
água benta batizando
água suja intoxicando
água quente e água fria

Já que a seca é falta d´água
matando plantas e bichos
a humanidade é pau-d´água

Água água sempre água
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MATO GROSSO DO SUL

Keila Mattiole Sousa
INTENÇÕES

Lá adiante um pé de bocaiúva
junta seu cacho baixinho com guavira.
E onde céu tem precedência,
água branca de mata arroja ímpeto
e desce como assobio de saci.
Maritaca sossobra de asa e grito
como criança mijada.
Tudo combina de cor e entre-cor
graça e abandono de mato
como beleza bondade e mistério
de mulher apaixonada.
Zoró de tudo, vento brinca
de esconde-esconde com século.
No aroma dos longes,
criatura-homem se apequena.
Não sabe se ser de bem com coisa feita.
E sofre com dor-de-mágoa quando pasma.
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MINAS GERAIS

Bruno Grossi
DESILUSÃO

Os ventos da era doce sagrada
Trazem lembranças do fastio.
Os sinos tocam às seis da tarde
E eu me deito no jazigo.
As cores do meu corpo,
Os brilhos dos meus olhos
São cartas que se despedem
Do revoar da vida,
Como um velho suicídio
Ou um corpo iluminado.
Um sonho transfigurado
Com um cheiro podre.
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PARÁ

Olga Savary
UMA CENA

Vês acordada como em sonho
o sonho mau tal fosse belo
— o belo horror do real
que nem consciência nítida
ou lúcida, clara, exata,
não como é visto sol a pino
ou através da água,
como quem vê dentro do mar
ou através de um vidro fosco,
mais, no fundo de um espelho,
não o que mostra a imagem
mas aquele que a deforma
inteiro fora de foco.

OUTRA CENA

Sentada estavas quando ele entrou
seguido de uma princesa ou uma serpente.
Só sabes que teu rosto não mudou
mas em turvo mudou-se o transparente
riso de antes, pesados os gestos.
Viraste uma mulher que acordada
e de frente vê um sonho mau
se sonho e distante já nem sente
e que já não amando é como se amasse
e, perdido o amor, é como se o tecesse.
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PARAÍBA

Celso Japiassu
AURORA

Dormi entre assassinos,
juntei minha voz ao coro dos mendigos.
Ouvi o agouro das aves
prenunciando a náusea.

Em pleno verão, entoei a musica do inverno
e mergulhei no assombro.
Nenhum disfarce encobriu a voz
que anunciava o grito.

Aurora lancinante aspergia a escuridão
de uma noite eterna, absoluta.
Pássaros grasnaram o anúncio
de horror e fome.

Nossos estigmas traduziam
a face da doença - a dor
de sonhos massacrados -
a dor.
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PARANÁ

Emiliano Perneta
VENCIDOS

Nós ficaremos, como os menestréis da rua,
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?

Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland? ... E, mortos pela injúria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?

Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço ....
Hão de os grandes rolar dos palácios infetos!
E gloria à fome dos vermes concupiscentes!

Embora, nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!
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PERNAMBUCO

Solano Trindade
TEM GENTE COM FOME

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
pra dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiii

estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio do ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuu
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PIAUÍ

Alvaro Pacheco
PRECISADOS

precisamos desses tóxicos
desse som dessa fumaça
desse medo intemporal
integrado no artifício
de nosso contentamento:

precisamos desse tempo
diluído em nossa alma:
precisamos esquecer.

precisamos nos matar
nessa mesma ecologia
de uma alma poluída
e da carne imergida
em abstrusa euforia.

precisamos desse sonho
circulando em nossos nervos
precisamos desse sangue
encobrindo nossos olhos
precisamos da sentença
e de como evitá-la:
precisamos desses fatos
para neles sancionar
todo o tempo improrrogável.
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RIO DE JANEIRO

Affonso Romano de Sant' Anna
EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX

1.
Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.
2.
Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.
3.
Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux vômica.
4.
Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado,empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.
5.
Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.
6.
Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.
7.
Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas,sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.
8.
Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.
9.
Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.
10.
Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para o lugar nenhum.
11.
Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos nos julgais
da confortável galáxia
em que irônico estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tende piedade como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram. Piedade
dos que viveram neste século
per seculae seculorum.
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RIO GRANDE DO NORTE

Lisbeth Lima de Oliveira
POUSIO

Meu corpo repousa
assim como a terra arada,
desenhada para o plantio.

Entre uma safra e outra,
meu corpo repousa e te espera paciente,
enquanto escolhes as sementes.

Quando vens, é sol.
Mas a terra fica molhada.
E quando tudo parece árido
me encantas outra vez.

E meu corpo se acostuma
com chuvas de verão.
com temperamento sazonal.
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RIO GRANDE DO SUL

Carlos Nejar
CONTATO

Não contratei com a vida.
O que ela me liga
é uma conquista de viver,
é uma fúria aprendida,
mas que gosta de ventar em mim.

Nunca segui cláusulas,
normas de existir.
Deixo que outros as cumpram
ou descumpram,
em artigo de morte ou vício.
Deixo que os contratantes
tentem apanhar a vida
em desídia;
ou busquem leva-la
aos ombros, na garupa
dos próprios escombros.

Não contratei com a vida.
Se ela me deu temores, desespero,
não me queixo, nem combato.
Não uso a legítima defesa
para impedir seu parto;
que ela nasça em mim,
cresça e se desfaça

Culpa não tenho
deste amor em desgraça,
deste amor sem casamento,
padrinhos, festas oficiais
e oferendas.

Não contratei;
o estado de graça
é castigá-la
com merecimento,
desamarrá-la das horas,
matá-la em nós.
E continuar vivendo.
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RONDONIA

José Valdir Pereira
ENQUANTO...SE...

Enquanto os meus olhos não enxergarem o meu próximo e a beleza da natureza;
enquanto o meu coração estiver fechado à ternura e à singeleza de uma amizade sincera e duradoura;
enquanto as minhas mãos ficarem encolhidas;
enquanto as minhas palavras não levarem alegria e felicidade por onde eu estiver ou andar;
enquanto a minha riqueza significar a pobreza de outrem;
enquanto os meus passos espelharem o medo à verdade, à angustia da solidão, à fuga do passado, à insegurança no presente e à incerteza do futuro,
não me permitam a que eu continue habitando este inferno existencial.
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SANTA CATARINA

Fátima Venutti
INCÓGNITA

Incógnita esta tua chegada
De repente, fez-se o azul.
A clarear meus dias nublados
A emoldurar-me nas noites abissais
A degustar de mim
O resgate dos versos derramados
Na soleira do meu tempo

Incógnito desejo
Que embora distante estejas
Íntimo almejado são teus beijos madrigais
Na ânsia deste novo que principia
Respiro e navego no teu aroma,
Êxtase guardado sob o véu da tua ternura

Calada e distante, confesso
Meu vislumbre por sobre a tua vinda
A rechear-me os dias, já azulados,
Com outra incógnita:
O germinar deste amor
Que agora respira em mim.
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SÃO PAULO

Eunice Arruda
AS PRAIAS

As praias brancas
desertas
cansaram-se dos beijos do mar
Elas
estendem-se agora
preguiçosas
lânguidas
perdidas na rotina branca
das areias
As praias estão exaustas
dos afagos
do mar
Por isso elas são frias
e fazem castelos
em suas areias:

para o tempo passar
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SERGIPE

Gizelda Santana de Morais
PELA RUA

Caminho pela rua...
quantos destinos cruzam-se comigo,
quantas vidas diferentes de outras vidas,
quantas faces diferentes de outras faces...

Vou passando por muitos
(enquanto eles também passam por mim)
e perscruto seus gestos, seus modos, seus olhares.

Vejo gente sorrindo,
vejo gente cansada,
gente altiva, gente humilde, gente triste...
não vejo alguém chorando,
mas, quanta gente choraria o pranto
guardado, se não fosse a vergonha
de chorar pela rua.

Na rua passa tudo, passam todos
passa a noite, o silêncio, o barulho,
até os mortos passam pela rua.
E suas casas, suas luzes, suas pedras
também olham, perscrutam e testemunham
a tudo e todos que passam
pela rua.
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TOCANTINS

Pedro Tierra
A HORA DOS FERREIROS

Quando o sol ferir
com punhais de fogo
e forja
a exata hora dos ferreiros,
varrei o pó da oficina
e a mansidão dos terreiros,
libertai a alma dos bronzes
e dos meninos
desatada em som
e nessa aguda solidão
que em ondas se apazigua
— ponta de espinho antigo —
na carne
do coração.

Convocai enxadas,
foices, forcados, facões,
grades, cutelos, machados,
a pesada procissão dos ferros
afeitos ao rigor da terra
e da procura
e, por fim, as mãos,
resignadas,
multiplicadas no cereal maduro.

Mãos talhadas em silêncio
e ternura,
que plantam a cada dia
sementes de liberdade
e colhem ao fim da tarde
celeiros de escravidão.

Esgotou-se o tempo de semear
e inventou-se a hora do martelo.
Retorcei na bigorna outros anelos
e a força incandescente deste mar
de ferros levantados.

Esgotou-se o tempo de consentir
e pôs-se a andar
a multidão dos saqueados
contra os cercados do medo.

Homens de terra
e relâmpago!
Convertei em fuzis vossos arados,
armai com farpas e pontas
a paz de vossas espigas!

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/
http://alcinea-cavalcante.blogspot.com/

Um comentário:

Fátima Venutti disse...

Caríssimos,

Fiquei emocionada ao ver meu poema "Incógnita" representando o Estado de Santa catarina, entre tantos e tantos escritores e poetas de qualidade.
Obrigada pelo carinho.

Contatos: venuttiana@hotmail.com

Beijo a todos