domingo, 17 de março de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 22. Delicadeza

Testemunhei uma cena desagradável, que infelizmente não teve piores conseqüências.

Ia perto de mim um cidadão muito gordo. Luxuosamente gordo. Parecia carregar as banhas com a recolhida empáfia de um grão-sacerdote afogado em deslumbrantes vestes talares. Refestelava-se no banco, firmado nas enxúndrias das nádegas, como uma pesada bóia flutuante indiferente ao balanço das ondas. Exibia o ventre, que lembrava o hemisfério de um grande globo, como se de propósito desejasse que toda a gente lhe pudesse admirar aquela prenda. Aquilo era o seu precioso berloque de novo rico.

A certo ponto da viagem, surgiu do outro lado do hemisfério um moço magro e sutil, que procurava passar pela frente do obeso, mas hesitava ante a impassibilidade ou distração deste. Afinal, tocando no chapéu, perguntou-lhe, alto, com verrumante delicadeza: -"Cavalheiro, não lhe seria muito incômodo ceder-me um corredorzinho para eu passar?" O gordo zangou-se. Encolheu como pôde o fardo abdominal e, sacudindo a papada, os olhos arregalados: "Passe!"

O moço magro, atônito por um momento, depois inclinado a reagir, sorriu-se afinal, e disse entre dentes, relanceando um olho escarninho pela venerável barriga: -"Bolas! não estou disposto a brigar com meio mundo." E o gordo a resmungar: "O calcinhas! Esta sucia..."

A princípio não compreendi por que seria que o pançudo tanto se irritara. É que sou por
natureza tardo de compreensão. Nada mais fácil de ver que o homem sentira espicaçado justamente por aquele excesso de delicadeza. Se o moço, passando, lhe tivesse empurrado de leve os joelhos, dizendo um seco e rápido "com licença!", e fosse tocando para diante, nada teria acontecido. O gordo levaria isso à conta de uma pequenina e desculpável grosseria sem endereço especial. Não já, assim a frase e o gesto do mancebo, que lhe bateram no toutiço como farpazinha particularmente preparada para sua pessoa. Ninguém gosta de se ver assim pessoalmente visado e distinguido nos seus pequenos tortos, que são mais ou menos os de toda a gente e devem passar sem exame e sem reparo.

Há uma causa mais geral, e é que o excesso de delicadeza leva uma dose de ironia, e a ironia ofende e revolta mais do que a rudeza. Não, como geralmente se julga, por penetrar mais fundo na derme do alvejado, mas pela desigualdade de armas. O homem desprevenido e "natural" não tem, nos seus encontros e lidas cotidianas, mais do que as armas de ataque e defesa que a natureza lhe deu, e delas se socorre como pode. O irônico é um mal intencionado, que carrega armas artificiais no meio de uma população policiada e pacífica. Viola a convenção em que a generalidade repousa. Quebra a regra consuetudinária do jogo da convivência. Onde outros se limitariam a usar das mãos e dos cotovelos, ele saca de um pequenino punhal e põe-se a esgrimi-lo com a destreza de um especialista de má-fé e de maus bofes. O adversário sente-se apanhado à traição, exaspera-se e, às vezes explode.

O sujeito extremamente delicado é, no fundo, um indivíduo que faz o pior juízo acerca dos seus dissemelhantes, e os trata com infinitos cuidados, como se lidasse com cavalos passarinheiros ou cachorros agressivos. Ou isso, ou então é que gosta de lançar engodos às almas incautas, para que se lhes abram e se lhes ofereçam em espetáculo. Todos os seus gestos estão impregnados de ironia, de uma ironia que nada tem com a dos homens compreensivos e sensíveis que já viveram muito, mas uma ironia feita de vaidade, de caborteirice e de secura de coração. Ele é o "homem de escol", "a criatura de exceção", fina, distinta, lixada, repolida, cheia de bicos e rendas, desgraçadamente obrigada a viver no meio de uma canalha tosca e molesta!

A antipatia instintiva que provoca é uma reação da vis medicatie social.

O que mostra mais uma vez como os movimentos instintivos podem eqüivaler a longas reflexões, e como a mentalidade coletiva pode chegar, sem raciocínio, aos mesmos resultados das lentas análises do psicólogo e do moralista., -De onde, também, o erro dos paradoxófilos, quando partem do pressuposto de que, para bem pensar, é preciso pensar contra os sentimentos do maior número.

Fonte:
Domínio Público

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