sábado, 16 de março de 2013

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte X – Para Vingar

O Satanás vivia infeliz nas suas pesquisas para descobrir o paradeiro de Branca. Por mais que se fizesse a sombra de d. Pedro, por mais que o seguisse em todas as costumeiras migrações noturnas, por mais que se lhe pusesse debruçado sobre o espírito a acompanhar-lhe a sucessiva eclosão de idéias, não conseguira nunca descortinar um bocadinho desse mistério, que ficava para além sepulto no abismo apavorante dos segredos.

Vinham-lhe por vezes dúvidas, suspeitas de que d. Bias tivesse mentido, vontade de sujeitá-lo a um novo inquérito, planos de prendê-lo e de arrancar-lhe a verdade até mesmo pela tortura.

Mas d. Bias desaparecera. Ninguém mais o encontrava, nem lá na bodega do Trancoso, nem pelos outros lugares por onde ele gostava antigamente de passear a sua longa durindana ferrugenta. Fizera-se caseiro. E, ali nos fundos do convento do Carmo, enlevava-se todo no amor da sua encarcerada, contente da vida, porque a Domitila nada resolvia sobre a infeliz louca, porque davam-lhe bom repasto, e porque estava a seguro de um encontro com o escultor.

Falto dessas informações, desse caminho único para a descoberta da verdade, o Satanás tinha também, por vezes, ímpetos de interpelar o príncipe, de ir diretamente a ele para a luta suprema das vinganças paternas. Aproveitaria o ensejo de uma alta noite, naquela hora em que os dous costumavam estar sozinhos, e em que o vinho e a mulher fazem a palavra expansiva e franca, volutuosamente escorregando pela língua para o diálogo amigável das confissões. E então seria brutal, violento como um pai ultrajado que se arma com a plenitude dos seus direitos e com o instinto das suas obrigações.

Oh! ele bem saberia ritmar a grande vibração sonora das suas reclamações e dos seus discursos, ele bem saberia como falar com a voz repassada de confrangimento, pontuada de gritos e de imprecações. Para isso bastava que deixasse transbordar toda inteira a dor sofrida que lhe ia na alma.

Mas não convinha. D. Pedro não se sujeitaria a ouvi-lo, e nem tinha remédios para curar-lhe o sofrimento, porque não há bálsamo que chegue para suavizar a ferida feita nesse amor de pai, imaculado e puro, divinal e casto.

Por isso, ele, Satanás, queria a vingança.

Os sucessos políticos, cuja confidência lhe era diariamente feita e em que andava completamente envolvido, vinham servir-lhe, a mais não ser, nessa obra sinistra de vinditas que estava longamente planejando. Eles eram a apoteose do príncipe que o povo aclamava; podiam tornar-se a derrota do seu orgulho e a morte para sempre da sua individualidade sepultada nas trevas de um cárcere.

E o Satanás sonhou primeiro com a reação portuguesa. As tropas lusitanas ainda estavam aqui, luzidias e valentes, bem afamadas na disciplina e respeitadas pelo povo.

Bem certo que Jorge de Avilez quietava-se irresoluto, não sabendo que partido eleger, receoso de optar entre as cortes e o príncipe herdeiro de Bragança. Para determiná-lo a uma reação pronta e imediata, o Pallingrini teve então uma dessas idéias diabólicas, que só a ele podiam acorrer. E numa carta incisiva que dirigiu ao general português, narrou a história de uns amores de d. Pedro, que tinha penetrado até a câmara nupcial do tíbio comandante lusitano.

Este, ferido em seus brios e em sua honra, louco de dores, preparou-se então para reagir. Mas abortou logo em princípio o movimento que projetara. A milícia, principalmente a milícia de Niterói, cercou a divisão lusa e obrigou-a a capitular e ir aquartelar-se na Armação, até que se aprestassem vapores para recambiá-la para a Europa.

O Satanás tratou então de aproveitar os elementos nacionais que se congregavam em torno da Sociedade Tenebrosa do Apostolado, e que desde o começo fundamentara o dogma do nativismo.

Aí iniciado, ele tornou-se um dos maiores propugnadores da idéia, tratando de aliciar adeptos e enredando o Rio de Janeiro numa vasta conspiração, a que faltava apenas um chefe, com coragem e audácia para fazer a Independência de uma só vez e completamente.

O seu principal trabalho, porém, trabalho surdo de alcoviteiro que intriga e sabe o segredo amoroso da alma humana, foi a rivalidade que estabeleceu entre a Domitila e a irmã. Dessa luta de mulheres que lutavam dentro do coração do príncipe, devia necessariamente resultar a devastação do campo de batalha.

E era isso o que ele queria, isso o que esperava como primeiro suplício na senda tormentosa de desgraças que estava preparando ao régio boêmio de Bragança.

D. Pedro era o Archonte Rei do Apostolado. Chefe supremo da poderosa sociedade, fora nela que encontrara o mais sólido apoio para as suas ambiciosas pretensões. E mal podia ele imaginar que dali mesmo partiria o primeiro golpe contra o seu poder.

Foi a própria Domitila quem o preveniu do perigo. D. Bias, que, temendo o Satanás, o considerava inimigo, começou também a freqüentar as sessões da Sociedade Tenebrosa e chegou ao conhecimento da trama que se urdia. A Domitila, possuidora do segredo, não hesitou: mais do que o seu despeito de amante enganada pôde o seu amor e pôde a sua ambição. Contou tudo ao príncipe.

Dai a dous dias, o Apostolado devia reunir-se em sessão magna.
O príncipe dispôs-se a golpear de morte nesse dia a instituição que o queria prender.

Foi numa segunda-feira. As sete horas da noite, ninguém diria, ao passar pelo velho quartel da Guarda Velha, que havia ali uma reunião de mais de quinhentas pessoas das mais altamente colocadas da política, do exército e do povo. A casa estava às escuras, com todas as janelas fechadas.

De quando em quando, um vulto chegava, embuçado, e batia três pancadas à porta. A porta abria-se, e o vulto entrava, perdendo-se no corredor escuro, depois das palavras sacramentais do santo e da senha.

- S. Pedro!

- Amor e Fidelidade!

A sala de sessão ficava ao fundo da casa. Chegava-se lá depois de percorrer três longos corredores, através do quartel.

Era uma enorme sala, toda forrada de tapeçaria negra e iluminada apenas por um enorme lustre negro que pendia do teto, e onde ardiam dezenas de velas. Ao fundo erguia-se um estrado, onde duas largas cadeiras e uma pequena mesa esperavam o Archonte Rei e o acólito. Sobre o estrado, no fundo negro da parede, destacava-se, bordado a vermelho, o símbolo da sociedade: um triângulo, cercado por uma facha, onde se lia - Soc. Ten. do Apos. - e em cujo centro ocultava o desenho de uma espada e de um machado, cruzando-se.

As cadeiras dos camaradas estendiam-se em quatro grandes semicírculos, pela sala negra, abafada, onde a voz ecoava longamente, não achando por onde sair. E reinava em tudo aquilo um pavor, que pesava na alma...

Já quase todas as cadeiras estavam ocupadas. Todos os camaradas vestiam túnica negra, com o símbolo vermelho ao peito.

Quando o Satanás entrou, a primeira pessoa que viu, foi d. Bias.

O fidalgo espanhol era a figura mais sinistra de toda a sala. Estava a um canto, encarapitado na cadeira, com os joelhos pontudos e salientando-se na túnica, e com um eterno movimento de queixos, como se estivesse murmurando uma oração. Quem o via, pensava que d. Bias estava rezando. Engano: d. Bias estava comendo biscoitos.

O Satanás parou e deixou cair pesadamente a mão sobre o ombro do carcereiro de Branca. D. Bias ficou pálido como um cadáver, batendo os dentes e unindo as mãos, num gesto de súplica. Mas, o Satanás fez-lhe um sinal de ameaça e foi sentar-se no seu lugar.

Ah! não tardava muito, não tardava muito! Em breve a porta se abriria, e ele apareceria, confiado e calmo, sem esperar que daquela casa partisse a sentença da sua condenação. E quando d. Pedro - o poderoso - se visse diante daquele oceano de quinhentas cabeças, todas agitadas de ódios, todas regularmente e implacavelmente sacudidas numa negação absoluta de apoio, ele, Satanás, o fraco, o vencido, o cão rafeiro, exultaria na sua fraqueza e na sua pequenez...

Mas a hora aproximava-se. O acólito - Máximo Régulo - fora tomar o seu lugar no estrado. Um sino vibrou três pancadas, agudas e rápidas. Todos se levantaram. Um grande silêncio pesou na sala. A porta abriu-se de par em par. E, só, vestido como os outros, na túnica negra e simples de camarada, d. Pedro entrou serenamente empunhando a sua insígnia de Archonte Rei - um bastão de marfim, marchetado de ouro. A fisionomia do príncipe não revelava a menor agitação interior. Caminhou até à mesa.

- Deus te guarde, camarada! elevou-se a voz do acólito.

- Leve-te o diabo, traidor ! - soou no grande silêncio da sala apavorada a voz soturna do príncipe.

E, antes que alguém tivesse tempo de voltar a si da surpresa, d. Pedro abriu a pasta que se achava sobre a mesa revolveu os papéis, guardou-os consigo.

E, erguendo o bastão, gritou:

- Saiam!
–––––––––––
continua

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