Assim muito aclamado pelas massas populares que lhe iam agradecer a carta de liberdade, d. Pedro desanuviou-se das tristezas que por alguns momentos o ensombraram com o caso de Branca.
De toda essa história tenebrosa que o fizera cruzar armas contra o Satanás não percebia grande cousa. Ficava-lhe apenas na memória o vago delineamento incerto de uma criança que ele supusera amante do escultor e que fora sua por uma noite sombria e treda como nas aventuras daquele tempo. E ficava-lhe principalmente nos quartos baixos do palácio o magro fidalgo das Espanhas que se aproveitava da ferida para prolongar o seu apetite e as suas bravatas.
D. Bias fortunava-se de fato um homem feliz. Servia-se do ferimento como indelével e irrecusável atestado de bravura inscrito no pergaminho da sua pele. E servia-se mais ainda do cozinheiro do Paço a quem estava constantemente pedindo bifes e bifes e outras esquisitas guloseimas.
Gesticulava, gritava e berrava.
Inimigo da solidão, rodeava-se dos criados a quem vivia contando as aventuras complicadas em que se metera. E tanta fertilidade tinha a sua irrequieta imaginação de espanhol, que conseguia sempre forjar mais um caso para o serão de cada noite, e mais um episódio para a conversa de cada dia.
E tantas fez que em torno dele formou-se uma reputação de espírito e bom humor.
D. Pedro quis vê-lo.
Entrou-lhe no aposento muito sério, com a compostura solene e grave de um imperador que também gosta da troça, mas deseja conservar a sua força moral.
Falou no ferimento, mostrando-se muito sentido com o acontecimento, lamentando-se do ocorrido, mas sem uma alusão ao Satanás.
- Ora senhor, ora senhor, isto não foi, não foi nada, explicou d. Bias. - O ferro entrou-me apenas dez polegadas no braço. Uma ninharia!
- Sim. Não foi nada, mas podia ser fatal.
D. Bias respondeu com um forte oscilar desprezível de ombros. Que não se importava. Que já estava acostumado àquelas cousas.
- Em todo caso posso garantir-te que não tinha vontade nenhuma de te matar.
- Ora senhor! Por quem é não falemos mais nisso. Eu até já vou me esquecendo de que fui ferido. A força do hábito, sabe, a força do hábito!
- Com que então tens sido ferido muitas vezes?
- Nem contas há que as possa enumerar.
E narrou:
- De uma, lá nas Espanhas, voltava eu muito sossegado de três duelozinhos pequeninos em que tinha morto os quatro adversários quando me saiu à frente um piquete de cavalaria comandado pelo irmão dos cinco rapazes que eu acabava de remeter para os infernos.
- E brigaste contra todo o piquete?
- Qual briguei! qual nada! Matei-os a todos sem exceção de um cavalo.
- Mas então não foste ferido!
- Fui, sim, senhor! Quando não havia mais adversários contra quem pelejar, caiu uma tempestade e veio um raio com tanta força que...
- Foste queimado?
- Qual queimado! Senhor! Feri-me eu mesmo com a minha espada indo a desviar-me do raio.
- E onde?
- Já não me recordo mais. Mas, caramba! que aquilo, sim, foi um golpe bem dado e de mão de mestre. Voou um braço para aqui, uma perna p'ra ali e a cabeça não sei para onde.
- Diabo! Pois tu te fizeste assim em pedaços?
- Qual eu! qual nada! Senhor. Foi o inimigo.
- Mas que inimigo?
- Ah! Eu não sei.
D. Pedro não pôde conter uma gargalhada e saiu.
Saiu, alegre da vida, cantarolando umas cantigas brejeiras. E teve uma idéia. A idéia de fazer uma caçoada com d. Bias, de pregar-lhe um bom susto. Deviam ser interessantes a cara e as falas do aventuroso cavaleiro das Espanhas, quando lhe aparecesse diante de si um fantasma ameaçador e tétrico que contra ele investisse numa encenação apavorante de tragédia. E, nas boas disposições de espírito em que estava, d. Pedro tratou logo de preparar a pilhéria.
Vieram-lhe a princípio dúvidas para escolha entre diversos projetos que se lhe apresentaram à imaginação. Mas, à noite, quando se despedia da cigana, lá no circo do Valongo, resolveu-se, enfim, e pediu ao Vampa que lhe vendesse um esqueleto articulado, que havia a um canto da parede e de que o saltimbanco se servia nas suas mágicas e pantomimas.
Trouxe-o, ruas afora por aquela noite escura, debaixo da capa, como um mistério, bem junto a si, como uma profanação.
E, quando entrou no Paço, antes de cear, foi logo ao quarto de d. Bias.
Segurando o esqueleto pela coluna vertebral, mal envolveu-o na capa, o bastante para esconder-se a si e para permitir que o descendente do soldado de Cid Campeador pudesse ver toda a horrível conformação espetral do fantasma.
D. Bias dormia.
Uns pratos vazios, muito lambidos e uma garrafa escorropichada, atestavam que o valente cavaleiro andante das aventuras contadas acabara de cear; lautamente, mais lautamente do que era permitido supor a quem o visse magro e esgalgado, um esqueleto ele mesmo. Acordou e gritou.
Sobre o peito descansa-lhe a ossadura descarnada da mão do esqueleto. E a olhá-lo, com o grande olhar tenebroso e mau das caveiras, estava um vulto bem junto a si, debruçado sobre o seu leito. Gritou.
Gritou e retorceu-se todo na cama, nu e esquelético, envolto na mortalha alvadia do lençol, fantasma contra fantasma.
D. Pedro ria-se.
E largou o esqueleto que então caiu todo inteiro sobre d. Bias.
Foi, nesse momento, um espetáculo diabolicamente nunca visto e nunca sonhado até então.
Por entre os lençóis e a capa, no belo contraste do preto e branco, debatiam-se os dous. D. Bias a contorcer-se todo, a querer desvencilhar-se desse novo companheiro de dormida, animava-o, fazia-o viver, emprestava-lhe movimento.
- Por Dios! choramingava o espanhol, por Dios! Não me faça nada! Deixe-me em paz, tenha pena de mim!
E fazia-se súplice, e queria erguer-se para ficar de joelhos, para pedir piedade, para comprometer-se a tudo quanto o fantasma quisesse, para tornar-se submisso e escravo, enfim, com tanto que o deixasse viver.
E com os movimentos que tentava, o esqueleto movia-se também, recolhia o braço num amplexo que horripilava o outro, intrometia a perna entre as do fidalgo das Espanhas, ligava-se-lhe enfim numa bela conjunção amorosa.
D. Bias soluçava. A voz desaparecia-lhe até.
Foi preciso que o príncipe, já farto do espetáculo, interviesse e separasse os dous.
- Caramba! fez d. Bias. Eu tinha medo porque era um esqueleto e não havia contra quem lutar!
E mais calmo depois, achou uma boa compensação no convite para a ceia de d. Pedro que este tinha mandado trazer para o quarto.
Não comia entretanto com toda a sua habitual voracidade. O esqueleto, que ficara sobre o leito, incomodava-o.
Levantou-se, e escondeu-o dentro de um armário.
- Se o esquecem agora, e se o descobrem daqui a cem anos... lembrou o príncipe.
D. Bias mastigou barulhentamente um grande naco de carne; e depois, olhando muito sério para o armário, disse:
- Caramba! que boa peça vou eu pregar às gerações futuras!
FIM
De toda essa história tenebrosa que o fizera cruzar armas contra o Satanás não percebia grande cousa. Ficava-lhe apenas na memória o vago delineamento incerto de uma criança que ele supusera amante do escultor e que fora sua por uma noite sombria e treda como nas aventuras daquele tempo. E ficava-lhe principalmente nos quartos baixos do palácio o magro fidalgo das Espanhas que se aproveitava da ferida para prolongar o seu apetite e as suas bravatas.
D. Bias fortunava-se de fato um homem feliz. Servia-se do ferimento como indelével e irrecusável atestado de bravura inscrito no pergaminho da sua pele. E servia-se mais ainda do cozinheiro do Paço a quem estava constantemente pedindo bifes e bifes e outras esquisitas guloseimas.
Gesticulava, gritava e berrava.
Inimigo da solidão, rodeava-se dos criados a quem vivia contando as aventuras complicadas em que se metera. E tanta fertilidade tinha a sua irrequieta imaginação de espanhol, que conseguia sempre forjar mais um caso para o serão de cada noite, e mais um episódio para a conversa de cada dia.
E tantas fez que em torno dele formou-se uma reputação de espírito e bom humor.
D. Pedro quis vê-lo.
Entrou-lhe no aposento muito sério, com a compostura solene e grave de um imperador que também gosta da troça, mas deseja conservar a sua força moral.
Falou no ferimento, mostrando-se muito sentido com o acontecimento, lamentando-se do ocorrido, mas sem uma alusão ao Satanás.
- Ora senhor, ora senhor, isto não foi, não foi nada, explicou d. Bias. - O ferro entrou-me apenas dez polegadas no braço. Uma ninharia!
- Sim. Não foi nada, mas podia ser fatal.
D. Bias respondeu com um forte oscilar desprezível de ombros. Que não se importava. Que já estava acostumado àquelas cousas.
- Em todo caso posso garantir-te que não tinha vontade nenhuma de te matar.
- Ora senhor! Por quem é não falemos mais nisso. Eu até já vou me esquecendo de que fui ferido. A força do hábito, sabe, a força do hábito!
- Com que então tens sido ferido muitas vezes?
- Nem contas há que as possa enumerar.
E narrou:
- De uma, lá nas Espanhas, voltava eu muito sossegado de três duelozinhos pequeninos em que tinha morto os quatro adversários quando me saiu à frente um piquete de cavalaria comandado pelo irmão dos cinco rapazes que eu acabava de remeter para os infernos.
- E brigaste contra todo o piquete?
- Qual briguei! qual nada! Matei-os a todos sem exceção de um cavalo.
- Mas então não foste ferido!
- Fui, sim, senhor! Quando não havia mais adversários contra quem pelejar, caiu uma tempestade e veio um raio com tanta força que...
- Foste queimado?
- Qual queimado! Senhor! Feri-me eu mesmo com a minha espada indo a desviar-me do raio.
- E onde?
- Já não me recordo mais. Mas, caramba! que aquilo, sim, foi um golpe bem dado e de mão de mestre. Voou um braço para aqui, uma perna p'ra ali e a cabeça não sei para onde.
- Diabo! Pois tu te fizeste assim em pedaços?
- Qual eu! qual nada! Senhor. Foi o inimigo.
- Mas que inimigo?
- Ah! Eu não sei.
D. Pedro não pôde conter uma gargalhada e saiu.
Saiu, alegre da vida, cantarolando umas cantigas brejeiras. E teve uma idéia. A idéia de fazer uma caçoada com d. Bias, de pregar-lhe um bom susto. Deviam ser interessantes a cara e as falas do aventuroso cavaleiro das Espanhas, quando lhe aparecesse diante de si um fantasma ameaçador e tétrico que contra ele investisse numa encenação apavorante de tragédia. E, nas boas disposições de espírito em que estava, d. Pedro tratou logo de preparar a pilhéria.
Vieram-lhe a princípio dúvidas para escolha entre diversos projetos que se lhe apresentaram à imaginação. Mas, à noite, quando se despedia da cigana, lá no circo do Valongo, resolveu-se, enfim, e pediu ao Vampa que lhe vendesse um esqueleto articulado, que havia a um canto da parede e de que o saltimbanco se servia nas suas mágicas e pantomimas.
Trouxe-o, ruas afora por aquela noite escura, debaixo da capa, como um mistério, bem junto a si, como uma profanação.
E, quando entrou no Paço, antes de cear, foi logo ao quarto de d. Bias.
Segurando o esqueleto pela coluna vertebral, mal envolveu-o na capa, o bastante para esconder-se a si e para permitir que o descendente do soldado de Cid Campeador pudesse ver toda a horrível conformação espetral do fantasma.
D. Bias dormia.
Uns pratos vazios, muito lambidos e uma garrafa escorropichada, atestavam que o valente cavaleiro andante das aventuras contadas acabara de cear; lautamente, mais lautamente do que era permitido supor a quem o visse magro e esgalgado, um esqueleto ele mesmo. Acordou e gritou.
Sobre o peito descansa-lhe a ossadura descarnada da mão do esqueleto. E a olhá-lo, com o grande olhar tenebroso e mau das caveiras, estava um vulto bem junto a si, debruçado sobre o seu leito. Gritou.
Gritou e retorceu-se todo na cama, nu e esquelético, envolto na mortalha alvadia do lençol, fantasma contra fantasma.
D. Pedro ria-se.
E largou o esqueleto que então caiu todo inteiro sobre d. Bias.
Foi, nesse momento, um espetáculo diabolicamente nunca visto e nunca sonhado até então.
Por entre os lençóis e a capa, no belo contraste do preto e branco, debatiam-se os dous. D. Bias a contorcer-se todo, a querer desvencilhar-se desse novo companheiro de dormida, animava-o, fazia-o viver, emprestava-lhe movimento.
- Por Dios! choramingava o espanhol, por Dios! Não me faça nada! Deixe-me em paz, tenha pena de mim!
E fazia-se súplice, e queria erguer-se para ficar de joelhos, para pedir piedade, para comprometer-se a tudo quanto o fantasma quisesse, para tornar-se submisso e escravo, enfim, com tanto que o deixasse viver.
E com os movimentos que tentava, o esqueleto movia-se também, recolhia o braço num amplexo que horripilava o outro, intrometia a perna entre as do fidalgo das Espanhas, ligava-se-lhe enfim numa bela conjunção amorosa.
D. Bias soluçava. A voz desaparecia-lhe até.
Foi preciso que o príncipe, já farto do espetáculo, interviesse e separasse os dous.
- Caramba! fez d. Bias. Eu tinha medo porque era um esqueleto e não havia contra quem lutar!
E mais calmo depois, achou uma boa compensação no convite para a ceia de d. Pedro que este tinha mandado trazer para o quarto.
Não comia entretanto com toda a sua habitual voracidade. O esqueleto, que ficara sobre o leito, incomodava-o.
Levantou-se, e escondeu-o dentro de um armário.
- Se o esquecem agora, e se o descobrem daqui a cem anos... lembrou o príncipe.
D. Bias mastigou barulhentamente um grande naco de carne; e depois, olhando muito sério para o armário, disse:
- Caramba! que boa peça vou eu pregar às gerações futuras!
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário