sábado, 30 de março de 2013

Antônio Martins de Araújo (História da Cidadezinha dos Palacetes de Porcelana)


Era uma vez pelos idos
 de mil seiscentos e doze
 uma rainha francesa
 também chamada Maria
 cujo sonho era enricar
 Maria pegou de seus
 dois tenentes-generais
 de Luís 13 de França
 e os mandou correr mar

 Sieur de Ia Ravardière
 e sieur de Rasilly
 que ouvirem melhor fizeram
 por via de João de Barros
 que era o dono de tuas terras
 passar a velhice honrada
 se importando com seus livros

 a fim de pagar as dívidas
 que o naufrágio que levou
 a seu filho sócio e haveres
 lhe criou pra todo o sempre
 enquanto a vida viveu
 e sabendo das andanças
 de espanhóis e genoveses
 uns pra cima outros pra baixo
 mas todos por estes lados
 puseram proa a noroeste
 e em Upaon-açu deram

 diz que antes por ti passaram
 piratas em rapinagem
 mas porém não te esposaram
 chantaram pelo teu ventre
 encanto e simplicidade

 ontem disse um jesuíta
 que também te muito amou
 e outra vez um filho teu
 que assim te viu e te vê
 seres tu por esses tempos
 do mundo a única filha
 rodeada de mil encantos
 e amor por todos os lados
 mas com toda a maranduba
 desde que foste inventada
 São Luís do Maranhão
 que tens sido cobiçada
 por tudo quanto é nação

 sempre vive de teus dias
 boiando na fantasia
 até Bernardes que nunca
 chegou a te conhecer

 recontou aquele fato
 famoso do julgamento
 das formigas que roubavam
 a farinha dos moirões
 da igreja dos barbadinhos
 de quantos anos atrás

 lá um dia em Guaxenduba
 mil seiscentos e quatorze
 português estava morrendo
 pelas balas dos franceses
 foi quando Nossa Senhora
 da Vitória apareceu
 viu com quem estava a paixão
 pois as balas dos soldados
 de Jerônimo de Albuquerque
 muito havia se acabaram
 ficou com pena dos fracos

 olhou toda aquela areia
 que eles próprios mal pisavam
 e a areia se transformou
 na pólvora com que expulsaram
 os franceses para a França

 o general Alexandre
 no outro ano ficaria
 com o forte de São Felipe
 que seria após cabeça
 do Maranhão-Grão-Pará
 outro tanto do Brasil

 os meus avós me contaram
 que os seus avós lhes contaram
 a estória da baronesa
 que quebrava com martelo
 os dentes de escravas suas
 quando seu marido achava
 os dentes delas bonitos

 outrora até baronesas
 cautelosas dos maridos
 quando as escravas moçavam
 endurecendo seus peitos
 de inveja destas furavam-nos
 com alfinetes queimados
 para seu encantamento
 vazar por aqueles furos
 e murchando ainda em moças
 os maridos não quererem
 ter qualquer coisa com elas

 em fundos vasos de alvacenta argila
 que hoje alguidares se chamam
 desde três séculos atrás
 que em ti se amassa juçara
 pra comer com camarão
 e farinha de mandioca

 já no século dezessete
 um almirante holandês
 te levou um coronel
 pra humilhar teu governo
 apeando-se na praia
 do Desterro e profanando
 a igreja e tua infância
 de menina inconcebida
 logo a maldição da história
 fez do bairro onde a maldade
 se fundou e amanheceu
 a zona donde a miséria
 nunca mais anoiteceu

 só depois é que vieram
 os dois Antônios da história
 que com raiva desterraram
 ao capitão holandês
 para os caminhos de Holanda

 Fonte das Pedras lá em baixo
 Carmo Novo aqui em cima
 e Oiteiro da Cruz lá longe
 trincheira onde os tetravôs
 cimentaram com seu sangue
 a areia de teus anais

 acontecido de ontem
 é a estória de nhá Jansen
 que rojava a escravaria
 sobre a lama das sarjetas
 pra sobre elas pisar
 quando as chuvas estiavam
 mas a carruagem rica
 da grande dona de escravos

 com a alma penada dela
 ainda hoje se arrasta
 com os pesados correntões
 toda meia-noite em ponto
 nas ruas sem uma gente
 de São Luís do Maranhão
 [...]

 e a grande história de amor
 que para quem não conhece
 até parece legenda
 do filho de branco e escrava
 das terras de Jatobá
 que por amor de um amigo
 deixou de fugir com a amada
 e serem ambos felizes
 mas que por isso não foram:
 “Enfim te vejo, enfim posso
 Curvado aos teus pés dizer-te
 Que não cessei de querer-te
 Pesar do quanto sofri...”

 São Luís do Maranhão
 tua história toda é feita
 de amor e libertação
 tu te lembras que Vieira
 pagou com ir para a cela
 e com a morte temporária
 a morte de não te ver
 a ousadia de haver
 tentado livrar os índios
 do sacrifício sem paga?

 tu te lembras que Aluísio
 foi largado nos teus braços
 por tua sociedade
 por ter achado que o negro
 é tão gente quanto o branco
 e humilhado te deixou
 para ser engrandecido
 por terras que não amou?

 mas tu te lembras também
 que algumas vezes tens sido
 não mãe mas quase madrasta
 por consentires que alguns
 de teus filhos atrasados
 não perdoem aos irmãos
 que sabem mais um pouquinho?

 tu te lembras certo dia
 voltou com anel da Bahia
 um certo filho doutor
 que desejou te ajudar
 e por causa da campanha
 que ele fez pela melhora
 de tua alimentação
 seus irmãos ignorantes
 passaram a lhe chamar
 de doutor Farinha Seca
 e ele voltou pra Bahia
 para ser Nina Rodrigues
 e com a ciência provou
 que os negros também são gente?

 mas outros que nem Mohana
 deixam seus ouros lá fora
 fazem voto de pobreza
 e voltam pra te servir
 és assim mesmo! teus filhos
 e até os que só te veem
 podem deixar-te de vez
 mas para nunca jamais
 te apagarão da memória
 com toda a maledicência
 de tuas águas azuis

 tens tudo pra vir a ser
 outra Atenas Brasileira
 no entanto foste o ceitil
 do mais possante rebanho
 de cegos surdos e mudos
 deste país sem fronteira
 deste gigante Brasil
 [...]

Fonte:
ARAÚJO, Antônio Martins. História da Cidadezinha dos Palacetes de Porcelana.  São Luís: Lithograf, 2012

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