Do livro de Lêdo Ivo, O Ajudante de Mentiroso. Educam, Editora Universitária Candido Mendes, 2009.
A fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, foi iluminada pelo esplendor do Parnasianismo. Entre os seus fundadores figuram grandes artistas do verso, como Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, e grandes artistas da prosa, como é o caso de Machado de Assis (também excelso artista do verso, com a sua ardilosa competência formal e emoção contida), Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Coelho Neto. São todos eles integrantes de uma grande geração literária e política que, com a nitidez de seus talentos pessoais e o cunho específico de suas manifestações artísticas, se vinculava à doutrina vigente na época – uma doutrina em que a arte se convertia numa espécie de religião e impunha aos seus sequazes um compromisso com a durabilidade. Os sonetos marmóreos de Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia e a prosa em que Machado de Assis se esconde de si mesmo, e a si mesmo, num esplêndido processo de emascaramento pessoal, hão de simbolizar, para sempre, esse tempo ditoso da literatura brasileira, em que esta, após as explosões e efusões do Romantismo, exprimia o seu amadurecimento, dentro dos preceitos de um Parnasianismo e um Realismo regados pelas águas de incontáveis riachos obscuros.
É nesse cenário magnífico que o leitor de agora deve acolher o poeta alagoano Sebastião Cícero dos Guimarães Passos, nascido em Maceió, a 22 de março de 1867.
Hoje, transcorrido um século de criação da Academia Brasileira de Letras, ele é apenas um nome – ou menos que um nome. De tudo quanto escreveu, em verso e em prosa, com acentos tristonhos ou jocosos, havia restado um soneto, o popular “Teu lenço”, parada obrigatória nas antologias, até que essses preciosos escrínios deixaram de ser adotados nos colégios. Mas o leitor que se aproximar do grave e reflexivo “Guarda e passa” obterá a medida exata do seu talento, de sua capacidade formal e espelho de todos os sonhos que ele sonhou.
No dia 28 de janeiro de 1897, Guimarães Passos está presente à sétima e última reunião preparatória destinada à instalação da Academia Brasileira de Letras. É, assim, um dos seus fundadores. As cores do contraste realçam o império de uma hierarquia literária que, pelo que tenha de incômodo ou refutável – ou mesmo de arbitrária, dada a sua eventual infixidez –, não deve ser desprezada. E, ao redor dela, de seu caprichoso jogo de luzes e sombras, a ronda dos passantes literários inscritos na lista negra da posteridade ratifica a existência da literatura como um sistema – uma escola de esboroamentos e olvidos.
O poeta alagoano, que morreu em Paris, a 10 de setembro de 1909, e desapareceu com a sua morte, não pode e não deve ser colocado ao lado de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, a gloriosa tríade do nosso Parnasianismo. A sua estatura é bem mais modesta. O convívio acadêmico de que usufruiu tem a justificá-lo não só a aceitação e tolerância de que gozam os passageiros do mesmo barco da contemporaneidade, cercados de afetos e solidariedade geracional, como ainda a singularidade de sua condição.
Na escola que impunha aos seus senhores e vassalos a doutrina da impessoalidade e da durabilidade – e também de uma impassividade muita vez transgredida belamente – e exigia que eles fizessem poemas como quem esculpe e cinzela, conferindo-lhes a perduração das joias e estátuas, Guimarães Passos ficou a meio caminho. Os poemas e sonetos de Versos de um simples (1891) e Horas mortas (1901) quase nunca alcançam o páramo pétreo.
Decerto, quando menino, em Maceió, ele se lambuzou muito de açúcar e comeu muito doce de coco. A sua textura lírica aponta para as matérias moles e fofas, e, com o seu parnasianismo dulcificado, ele é quase um romântico retardado – um romântico que, sob a férula da nova escola triunfante, fosse obrigado a colocar os seus versos molengos e correntios, e até diáfanos, numa forma ou numa fôrma imponente ou hierática, assim como as dissimuladas ou austeras damas do Segundo Reinado colocavam os seios à Renoir na prisão dos espartilhos.
A esse propósito, vem a talho de foice a observação de Paulo Barreto ( João do Rio), seu sucessor na cadeira n° 26 da Academia. Em seu discurso de recepção, o grande prosador de Dentro da noite, que enriqueceu a nossa literatura com uma nota nova, assentada nos mistérios e errâncias das noites inconfessáveis, estabelece uma diferença entre a geração boêmia de Guimarães Passos e a sua própria geração. “Quem o substitui trocou sempre a quimera pela curiosidade, o entusiasmo pelo fato, o próprio sentimento pela sensualidade dos sentimentos alheios.” Para ele, Guimarães Passos, “o último romântico”, foi um ator, enquanto lhe cabia, a ele João do Rio, a condição de espectador – “o espectador incompleto dessa sociedade que se constitui”. E numa certeira identificação de si mesmo, considera-se “aquele que fixa tumultuariamente alguns aspectos do esplêndido espetáculo”.
O esplêndido espetáculo era a fervilhação e a renovação urbana do Rio de Janeiro no começo do século, com as avenidas que se abriam, os dias considerados vertiginosos, o vício e a graça unidos no mesmo segredo. A observação de João do Rio é sustentada pelo conceito estético da modernidade. O espectador de Os dias passam, com a sua prosa poética e nervosa concentrada nas torpitudes humanas da grande cidade, e a sua nova e insólita maneira de ver e de olhar, avulta na história literária brasileira como o nosso primeiro e primoroso voyeur; e ainda como o incansável e misterioso flâneur que, no conto “O bebê de tarlantana rosa”, revelou a modernidade perversa do Rio Janeiro, com o seu dia tornado noite pelo cinematógrafo e a sua noite equívoca povoada de pederastas, prostitutas e drogados – uma noite que, mesmo em sua moldura tropical, se afeiçoa às longas noites de Restif de la Bretonne, Baudelaire e Gerard de Nerval.
No novo ambiente cosmopolitizado que fustigava a boêmia literária, e sublinhava outros valores e condutas, não é de admirar-se que Guimarães Passos tenha sumido completamente, como fantasma de castelo inglês.
O perfil boêmio de Guimarães Passos suscitou largo anedotário, que, iniciado em sua vinda para o Rio, quando tinha vinte anos (o navio aportado em Maceió em que se encontrava, para despedir-se de amigos, se fizera ao largo sem que ele notasse), grassou até a sua morte, em Paris. E essa foi uma morte romântica: de poeta tuberculoso; uma morte na solidão de um quarto de hotel, após tanto rumor e efusão, e o riso suscitado por tantas peripécias miúdas. Mas, com o fluir dos dias, a torrente anedótica cessou. E vieram o silêncio e o esquecimento, anulando as ocorrências e figuras daquele tempo admirável, em que Machado, Rui, Joaquim Nabuco, Coelho Neto, Bilac e Raul Pompeia não se limitavam a ser grandes artistas literários, e eram também homens de jornal e de revistas, ao alcance do público, numa presença matinal como a do pão.
A edição das poesias de Guimarães Passos, promovida pela Academia Brasileira de Letras e estabelecida pelo filólogo e pesquisador Adriano da Gama Kury – que, com o seu plácido saber e empenho em buscar e descobrir o mínimo e o despercebido, tem algo de um microbiologista –, destina-se a devolver ao sol e à noite de hoje um poeta que, vivo, usufruiu de uma popularidade convizinha da glória. Um poeta que foi companheiro de Machado de Assis e Olavo Bilac – e, em parceria com este, publicou um Tratado de versificação e um Dicionário de rimas. Um poeta menor e secundário, seja, pronto a espelhar a sua dor bem doída e suas lágrimas nem sempre evaporadas. Mas há em sua menoridade e secundaridade uma emoção continuada, uma astúcia formal e uma singeleza e melancolia que enxotam do nosso espírito a gorda exigência estética e a exclusão desdenhosa. Há um certo encanto.
Ó tu, que turvas o palor da neve,
Tu, que as estrelas escureces, deixa
Meu coração dormir. Pisa de leve.
A fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, foi iluminada pelo esplendor do Parnasianismo. Entre os seus fundadores figuram grandes artistas do verso, como Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, e grandes artistas da prosa, como é o caso de Machado de Assis (também excelso artista do verso, com a sua ardilosa competência formal e emoção contida), Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Coelho Neto. São todos eles integrantes de uma grande geração literária e política que, com a nitidez de seus talentos pessoais e o cunho específico de suas manifestações artísticas, se vinculava à doutrina vigente na época – uma doutrina em que a arte se convertia numa espécie de religião e impunha aos seus sequazes um compromisso com a durabilidade. Os sonetos marmóreos de Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia e a prosa em que Machado de Assis se esconde de si mesmo, e a si mesmo, num esplêndido processo de emascaramento pessoal, hão de simbolizar, para sempre, esse tempo ditoso da literatura brasileira, em que esta, após as explosões e efusões do Romantismo, exprimia o seu amadurecimento, dentro dos preceitos de um Parnasianismo e um Realismo regados pelas águas de incontáveis riachos obscuros.
É nesse cenário magnífico que o leitor de agora deve acolher o poeta alagoano Sebastião Cícero dos Guimarães Passos, nascido em Maceió, a 22 de março de 1867.
Hoje, transcorrido um século de criação da Academia Brasileira de Letras, ele é apenas um nome – ou menos que um nome. De tudo quanto escreveu, em verso e em prosa, com acentos tristonhos ou jocosos, havia restado um soneto, o popular “Teu lenço”, parada obrigatória nas antologias, até que essses preciosos escrínios deixaram de ser adotados nos colégios. Mas o leitor que se aproximar do grave e reflexivo “Guarda e passa” obterá a medida exata do seu talento, de sua capacidade formal e espelho de todos os sonhos que ele sonhou.
No dia 28 de janeiro de 1897, Guimarães Passos está presente à sétima e última reunião preparatória destinada à instalação da Academia Brasileira de Letras. É, assim, um dos seus fundadores. As cores do contraste realçam o império de uma hierarquia literária que, pelo que tenha de incômodo ou refutável – ou mesmo de arbitrária, dada a sua eventual infixidez –, não deve ser desprezada. E, ao redor dela, de seu caprichoso jogo de luzes e sombras, a ronda dos passantes literários inscritos na lista negra da posteridade ratifica a existência da literatura como um sistema – uma escola de esboroamentos e olvidos.
O poeta alagoano, que morreu em Paris, a 10 de setembro de 1909, e desapareceu com a sua morte, não pode e não deve ser colocado ao lado de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, a gloriosa tríade do nosso Parnasianismo. A sua estatura é bem mais modesta. O convívio acadêmico de que usufruiu tem a justificá-lo não só a aceitação e tolerância de que gozam os passageiros do mesmo barco da contemporaneidade, cercados de afetos e solidariedade geracional, como ainda a singularidade de sua condição.
Na escola que impunha aos seus senhores e vassalos a doutrina da impessoalidade e da durabilidade – e também de uma impassividade muita vez transgredida belamente – e exigia que eles fizessem poemas como quem esculpe e cinzela, conferindo-lhes a perduração das joias e estátuas, Guimarães Passos ficou a meio caminho. Os poemas e sonetos de Versos de um simples (1891) e Horas mortas (1901) quase nunca alcançam o páramo pétreo.
Decerto, quando menino, em Maceió, ele se lambuzou muito de açúcar e comeu muito doce de coco. A sua textura lírica aponta para as matérias moles e fofas, e, com o seu parnasianismo dulcificado, ele é quase um romântico retardado – um romântico que, sob a férula da nova escola triunfante, fosse obrigado a colocar os seus versos molengos e correntios, e até diáfanos, numa forma ou numa fôrma imponente ou hierática, assim como as dissimuladas ou austeras damas do Segundo Reinado colocavam os seios à Renoir na prisão dos espartilhos.
A esse propósito, vem a talho de foice a observação de Paulo Barreto ( João do Rio), seu sucessor na cadeira n° 26 da Academia. Em seu discurso de recepção, o grande prosador de Dentro da noite, que enriqueceu a nossa literatura com uma nota nova, assentada nos mistérios e errâncias das noites inconfessáveis, estabelece uma diferença entre a geração boêmia de Guimarães Passos e a sua própria geração. “Quem o substitui trocou sempre a quimera pela curiosidade, o entusiasmo pelo fato, o próprio sentimento pela sensualidade dos sentimentos alheios.” Para ele, Guimarães Passos, “o último romântico”, foi um ator, enquanto lhe cabia, a ele João do Rio, a condição de espectador – “o espectador incompleto dessa sociedade que se constitui”. E numa certeira identificação de si mesmo, considera-se “aquele que fixa tumultuariamente alguns aspectos do esplêndido espetáculo”.
O esplêndido espetáculo era a fervilhação e a renovação urbana do Rio de Janeiro no começo do século, com as avenidas que se abriam, os dias considerados vertiginosos, o vício e a graça unidos no mesmo segredo. A observação de João do Rio é sustentada pelo conceito estético da modernidade. O espectador de Os dias passam, com a sua prosa poética e nervosa concentrada nas torpitudes humanas da grande cidade, e a sua nova e insólita maneira de ver e de olhar, avulta na história literária brasileira como o nosso primeiro e primoroso voyeur; e ainda como o incansável e misterioso flâneur que, no conto “O bebê de tarlantana rosa”, revelou a modernidade perversa do Rio Janeiro, com o seu dia tornado noite pelo cinematógrafo e a sua noite equívoca povoada de pederastas, prostitutas e drogados – uma noite que, mesmo em sua moldura tropical, se afeiçoa às longas noites de Restif de la Bretonne, Baudelaire e Gerard de Nerval.
No novo ambiente cosmopolitizado que fustigava a boêmia literária, e sublinhava outros valores e condutas, não é de admirar-se que Guimarães Passos tenha sumido completamente, como fantasma de castelo inglês.
O perfil boêmio de Guimarães Passos suscitou largo anedotário, que, iniciado em sua vinda para o Rio, quando tinha vinte anos (o navio aportado em Maceió em que se encontrava, para despedir-se de amigos, se fizera ao largo sem que ele notasse), grassou até a sua morte, em Paris. E essa foi uma morte romântica: de poeta tuberculoso; uma morte na solidão de um quarto de hotel, após tanto rumor e efusão, e o riso suscitado por tantas peripécias miúdas. Mas, com o fluir dos dias, a torrente anedótica cessou. E vieram o silêncio e o esquecimento, anulando as ocorrências e figuras daquele tempo admirável, em que Machado, Rui, Joaquim Nabuco, Coelho Neto, Bilac e Raul Pompeia não se limitavam a ser grandes artistas literários, e eram também homens de jornal e de revistas, ao alcance do público, numa presença matinal como a do pão.
A edição das poesias de Guimarães Passos, promovida pela Academia Brasileira de Letras e estabelecida pelo filólogo e pesquisador Adriano da Gama Kury – que, com o seu plácido saber e empenho em buscar e descobrir o mínimo e o despercebido, tem algo de um microbiologista –, destina-se a devolver ao sol e à noite de hoje um poeta que, vivo, usufruiu de uma popularidade convizinha da glória. Um poeta que foi companheiro de Machado de Assis e Olavo Bilac – e, em parceria com este, publicou um Tratado de versificação e um Dicionário de rimas. Um poeta menor e secundário, seja, pronto a espelhar a sua dor bem doída e suas lágrimas nem sempre evaporadas. Mas há em sua menoridade e secundaridade uma emoção continuada, uma astúcia formal e uma singeleza e melancolia que enxotam do nosso espírito a gorda exigência estética e a exclusão desdenhosa. Há um certo encanto.
Ó tu, que turvas o palor da neve,
Tu, que as estrelas escureces, deixa
Meu coração dormir. Pisa de leve.
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