sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Jorge Wanderley (Poemas Diversos)

ADERIR

Amo o que neles já vi com desprezo,
O uso das mãos, a música, o inexato
Poder de seus mistérios e seu vezo
De amar sem conta contra a estrela e o fato;

Desprezo e amo: acaso mimetizo
Os que a tal plano vim para negar?
Perco na gaia terra garbo e siso
E adiro ao solo que era de deixar?

Amo e não amo e tudo em mim questiona
Missão e crença, ardil e decisão.
Mas se me sabem, sofro; e se me atrevo

No além-mudez, sossego me abandona:
Daí, silêncio erijo e solidão,
E em solidão me deixo, erijo, escrevo.
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CORPO ANTERIOR

Que faço aqui, neste meu corpo, amando,
Outro corpo, doado — e estranho a mim?
Dois corpos desiguais e no comando
O que eu decido. E quem decide assim?

Estranho todos os departamentos
E eu sou um outro, que não pousa aqui.
Cada nervura, poro, o tegumento
— Desconheço de todo, nunca vi.

Altura que não quero, mãos esquerdas,
O que está velho e não forjou memórias,
O gesto alheio, o olhar sobre tropeços,

São crônicas já pálidas, a perda
Do nunca possuído: alguma história
Que espera no futuro o seu começo.
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MÁQUINA

Deram-lhes máquina curiosa, essa
que é dos seus corpos. Não interligados,
encontram pares, mas um dia cessam;
passam por um percurso que, somado,

chamam de História e no correr do tempo
vão registrando como em seus poemas
(— que uns poucos querem frio como um templo
sem música e sem alma, todo esquema

de pétrea arquitetura no vazio).
Do que não sabem, amam perguntar,
magicar, intuir, ver pelo escuro,

tocando às vezes certo fugidio
não-saber, com escamas de voar,
e asas de peixe e jornais do futuro.
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NADA VEEM

Pois se entre todos vou desconhecido,
No além de minha condição negado,
Eis que por duas vezes vou servido
De recusa e cegueira, e acostumado.

Melhor: a quem recusa, recusado
Faço que fique no seu mal vencido,
E a quem não vê, pobre desentendido,
Engano, enquanto vim assinalado.

Tudo o que dizem, tenho conhecido,
Sei quando calam tudo que hão calado.
Vá lá que ceguem, já que entorpecido

Têm seu sentido, em si tão limitado;
Mas que neguem quem seja, tem nutrido
Minha vingança e meu poder chamado.
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SOU CRUZADO

Sou cruzado, mas esqueci meu rei,
Da nave em que cheguei, mal vou lembrado;
Quero guardar comigo o que ora sei
E de antes não sabia, descuidado.

Amar, perder, a ventania, a lei
Desordenada e injusta — este reinado
De amoráveis desastres que encontrei,
Deles cativo quero estar, atado.

Assim, longe de nave e de equipagem,
Fico; não deixo mais esses rigores,
Fico: não me acrescento mais àqueles

Que perdem quanto acharam na viagem,
Pois se retornam os navegadores,
As descobertas deixam de ser deles.
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Jorge Eduardo Figueiredo de Oliveira Wanderley nasceu no Recife (PE), no dia 21 de janeiro de 1938, e morreu na mesma cidade, em 12 de dezembro de 1999. Formado em Medicina, com especialidade em Neurocirurgia, abandonou a carreira em 1981 para se dedicar integralmente à literatura. Em 1976, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez mestrado e doutorado em Letras na PUC (RJ). Em seguida, passou a dar aulas na UERJ. Tornou-se exímio tradutor, o que lhe rendeu um Prêmio Jabuti e “ofuscou a sua produção poética pessoal”. Em quatro décadas, escreveu os seguintes livros de poemas: Gesta e outros poemas (1960), Adiamentos (1974), A casa navega (1975), Coração à parte (1979), Mesa/musa (1980), A foto fatal (1986), Anjo novo (1987), Homenagem: Dez sonetos (1992), Manias de agora (1995), O agente infiltrado (1999). Escreveu ainda Arquivo/ensaio (1993), que reúne artigos de critica literária.

Fonte:
Ermira

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