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Ele abriu a porta do carro para que ela entrasse.
– A velhice dando passagem à juventude?
– Não: a sabedoria dando vez à pretensão.
Riram. Era uma brincadeira antiga, da época em que se conheceram: ela, preparando a tese. Ele, o orientador que não chegou a sê-lo… A relação aconteceu e, de comum acordo, decidiram que ela procuraria outro professor. Nem por isso a pressão foi menor. Em muitos olhares, o imediatismo rotulava, sem sursis: veterano-estende-as-asas-sobre-a-novata. E poderia ter sido pior; tivesse a “vítima” alguns anos a menos e o crime estaria consumado, não se podia brincar com essas coisas.
– A maré do politicamente correto extrapolou, afrontando os limites do bom senso – dizia ele. – Facilite... E até Lolita e Morte em Veneza acabarão queimados em praça pública.
– Não exagere – dizia ela.
Ele ria:
– E a lei contra os Adônis que enfeitiçam os velhinhos? Deveria existir uma, não?
Ela ria:
– E qual seria o nome desse crime... Gerofilia?
– Sim... Muito próprio. – E ele improvisava a premissa: – Não gerofile, para não ser pedofilado.
– Proponha esta na próxima reunião e estaremos condenados em duas vias, sem direito a habeas corpus.
– Falando em habeas…
– Falando em corpus…
A brincadeira se repetiu ao longo dos anos, mesmo depois de perder a graça; ela, mais que ele, chamava o riso como tábua de salvação, como refúgio das crises que também se repetiam, indefinidamente.
Passado o espanto geral, que de roldão consumira também certos encantos, as coisas começaram a se acomodar. Ninguém mais estranhava a parceria, nem a ironia que permeava o enredo natural daquele amor: ela, já não bastasse os muitos anos a menos, aparentava ser tão menina... Para entrar no cinema, só mostrando Identidade que provasse ao menos dezoito, dos vinte e três já completos. Ele, em contrapartida, já aos dezesseis se passava por “maior”, nos bailes e cinemas da cidade interiorana onde nascera. Cabelos precocemente grisalhos e o sagrado costume da cerveja completavam o quadro, adiantavam o tempo e, aos olhares alheios, alongavam mais ainda a distância entre os dois.
O tempo. O curso. Da universidade e das coisas. E a tese, que não saía nunca.
– Se você não pode ser meu orientador, então não quero mais ninguém – ela dizia. E se por algum tempo esse argumento surtiu efeito, foi também se desgastando, como tudo, como um todo.
– Não era isso – ela confessou, numa das raras noites de cerveja que conseguiram a sós, porque a universidade era um mundo que se estendia para além do campus, até o bar, até a casa, até os amigos e tantas horas compartilhadas. – A Dança seria o princípio e, a Geografia, o meio... Sabe? O meio pelo qual a Dança viria a acontecer, sem as amarras das concessões profissionais necessárias à sobrevivência. Mas tudo virou do avesso, a Geografia se espalha e não faço outra coisa a não ser projetos.
– Não há lugar para dois, com a Geografia. Ou é ela ou é ela, se é que você me entende, e eu às vezes acho que não.
– Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no tempo e no espaço? Nunca, dirá você.
– Nunca, tu o disseste.
– “Salvo quando se amam”, disse o poeta. E se essa verdade não pode harmonizar a Dança e a Geografia, então quero nascer de novo.
– Você já nasceu tantas vezes, lembra… Ou não, não mais?
Ela fechou os olhos, fazia isso quando sentia dor ou acusava o golpe, claro, quantas vezes não dissera “acho que nasci de novo”, depois do amor?
Foi naquele amanhecer que os dois se descobriram de partida, ele para o campus, de corpo e alma, porque aquela era mesmo sua vida, sua escolha, desde antes dela e, com um pouco de sorte, também depois dela – embora no momento ele não soubesse, não tivesse a menor ideia de como faria para sobreviver àquela ausência. E ela enfim para a dança, habeas corpus, habeas anima. Ele, que não acreditava em deuses, acabou maldizendo os desígnios que deram a ela uma bolsa, no ano seguinte, para um estágio fora do país.
Encontraram-se uma vez, na Europa, mas aquela não valeu: ela estava embriagada demais com a liberdade e ele embriagado demais com a alegria de revê-la.
Agora, anos depois, um novo reencontro: ele gostou de achá-la, ainda, bela. Gostou de gostar de vê-la, embora a dor.
– Você ficou bem famoso – ela brincou, recurso que sempre usava para driblar o embaraço. – Ouvi falar, por aí.
– E você?
– Como? Você não ouviu falar de mim?
Ele ficou sério, um segundo antes do riso. Ela riu, também, e tudo foi como antes, por um instante.
– Você está dançando?
– Às vezes.
– O que houve?
– O de sempre. Não sou articulada, não me relaciono com as pessoas “certas”, não me enquadro muito nas coisas. – E imitou o tom de voz que ele usava, quando queria ser categórico: – Se é que você me entende, e eu acho que não.
Ele riu, de novo, agora sem muita vontade. Ela continuou:
– Mas eu tinha que ver, não é? Eu precisava ir. E fui bem, por uns tempos… E “ir bem”, ainda que por uns tempos, deixa um gosto de “sempre”, quando se trata de Arte.
– Isso me lembra aquela sua velha máxima: “A Arte acima de tudo.”
– Não – ela responde. E ele vê nisso algo de novo. – Não existe acima, nem medida alguma, nesses casos. Só uma sensação de que as coisas têm um sentido.
– Isso você podia ter…
– Você podia. Não eu.
– Então, perdemos uma geógrafa brilhante… para uma bailarina…
– Apenas razoável?
– Eu não disse isso.
– Claro que disse. Mas não faz mal.
– Escute, ainda dá tempo.
– Tempo do que, meu amor?
– Esse “meu amor” me pegou de surpresa.
– O que prova que você continua o mesmo… Surpreendendo-se com o óbvio e olhando com cara de velho para o que é realmente novo. Agora me leve daqui para um lugar mais decente, onde se possa tomar um bom vinho.
– Você também não mudou. E isso, não sei por que, me faz bem.
– Não era o que você dizia.
– Não era o que você pedia.
Ele abre a porta do carro, ela sorri:
– A velhice dando vez à juventude?
– Não, o cansaço dando lugar a algo que não quero definir agora.
– E quem disse que é preciso definir?
– Temes definhar ao definir?
– Idiota! – Ela ri. – O fim vai chegar, para nós. Para todos nós. Mas não hoje.
– Você não vai acreditar, mas isso, para mim, já é alguma coisa.
“Acredito”, ela quis dizer, mas achou que não seria preciso.
Fonte:
Revista Pesquisa, da FAPESP, em fevereiro de 2011.
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