segunda-feira, 9 de julho de 2012

Yara Camillo (Duas Vias)


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Ele abriu a porta do carro para que ela entrasse.

 – A velhice dando passagem à juventude?

 – Não: a sabedoria dando vez à pretensão.

 Riram. Era uma brincadeira antiga, da época em que se conheceram: ela, preparando a tese. Ele, o orientador que não chegou a sê-lo… A relação aconteceu e, de comum acordo, decidiram que ela procuraria outro professor. Nem por isso a pressão foi menor. Em muitos olhares, o imediatismo rotulava, sem sursis: veterano-estende-as-asas-sobre-a-novata. E poderia ter sido pior; tivesse a “vítima” alguns anos a menos e o crime estaria consumado, não se podia brincar com essas coisas.

 – A maré do politicamente correto extrapolou, afrontando os limites do bom senso – dizia ele. – Facilite... E até Lolita e Morte em Veneza acabarão queimados em praça pública.

 – Não exagere – dizia ela.

 Ele ria:

 – E a lei contra os Adônis que enfeitiçam os velhinhos? Deveria existir uma, não?

 Ela ria:

 – E qual seria o nome desse crime... Gerofilia?

 – Sim... Muito próprio. – E ele improvisava a premissa: – Não gerofile, para não ser pedofilado. 

 – Proponha esta na próxima reunião e estaremos condenados em duas vias, sem direito a habeas corpus.

 – Falando em habeas…

 – Falando em corpus…

 A brincadeira se repetiu ao longo dos anos, mesmo depois de perder a graça; ela, mais que ele, chamava o riso como tábua de salvação, como refúgio das crises que também se repetiam, indefinidamente.

 Passado o espanto geral, que de roldão consumira também certos encantos, as coisas começaram a se acomodar. Ninguém mais estranhava a parceria, nem a ironia que permeava o enredo natural daquele amor: ela, já não bastasse os muitos anos a menos, aparentava ser tão menina... Para entrar no cinema, só mostrando Identidade que provasse ao menos dezoito, dos vinte e três já completos. Ele, em contrapartida, já aos dezesseis se passava por “maior”, nos bailes e cinemas da cidade interiorana onde nascera. Cabelos precocemente grisalhos e o sagrado costume da cerveja completavam o quadro, adiantavam o tempo e, aos olhares alheios, alongavam mais ainda a distância entre os dois.

 O tempo. O curso. Da universidade e das coisas. E a tese, que não saía nunca.

 – Se você não pode ser meu orientador, então não quero mais ninguém – ela dizia. E se por algum tempo esse argumento surtiu efeito, foi também se desgastando, como tudo, como um todo.

 – Não era isso – ela confessou, numa das raras noites de cerveja que conseguiram a sós, porque a universidade era um mundo que se estendia para além do campus, até o bar, até a casa, até os amigos e tantas horas compartilhadas. – A Dança seria o princípio e, a Geografia, o meio... Sabe? O meio pelo qual a Dança viria a acontecer, sem as amarras das concessões profissionais necessárias à sobrevivência. Mas tudo virou do avesso, a Geografia se espalha e não faço outra coisa a não ser projetos.

 – Não há lugar para dois, com a Geografia. Ou é ela ou é ela, se é que você me entende, e eu às vezes acho que não.

 – Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no tempo e no espaço? Nunca, dirá você.

 – Nunca, tu o disseste.

 – “Salvo quando se amam”, disse o poeta. E se essa verdade não pode harmonizar a Dança e a Geografia, então quero nascer de novo.

 – Você já nasceu tantas vezes, lembra… Ou não, não mais?

 Ela fechou os olhos, fazia isso quando sentia dor ou acusava o golpe, claro, quantas vezes não dissera “acho que nasci de novo”, depois do amor?

 Foi naquele amanhecer que os dois se descobriram de partida, ele para o campus, de corpo e alma, porque aquela era mesmo sua vida, sua escolha, desde antes dela e, com um pouco de sorte, também depois dela – embora no momento ele não soubesse, não tivesse a menor ideia de como faria para sobreviver àquela ausência. E ela enfim para a dança, habeas corpus, habeas anima. Ele, que não acreditava em deuses, acabou maldizendo os desígnios que deram a ela uma bolsa, no ano seguinte, para um estágio fora do país.

 Encontraram-se uma vez, na Europa, mas aquela não valeu: ela estava embriagada demais com a liberdade e ele embriagado demais com a alegria de revê-la.

 Agora, anos depois, um novo reencontro: ele gostou de achá-la, ainda, bela. Gostou de gostar de vê-la, embora a dor.

 – Você ficou bem famoso – ela brincou, recurso que sempre usava para driblar o embaraço. – Ouvi falar, por aí. 

 – E você?

 – Como? Você não ouviu falar de mim?

 Ele ficou sério, um segundo antes do riso. Ela riu, também, e tudo foi como antes, por um instante.

 – Você está dançando?

 – Às vezes. 

 – O que houve?

 – O de sempre. Não sou articulada, não me relaciono com as pessoas “certas”, não me enquadro muito nas coisas. – E imitou o tom de voz que ele usava, quando queria ser categórico: – Se é que você me entende, e eu acho que não.

 Ele riu, de novo, agora sem muita vontade. Ela continuou:

 – Mas eu tinha que ver, não é? Eu precisava ir. E fui bem, por uns tempos… E “ir bem”, ainda que por uns tempos, deixa um gosto de “sempre”, quando se trata de Arte.

 – Isso me lembra aquela sua velha máxima: “A Arte acima de tudo.” 

 – Não – ela responde. E ele vê nisso algo de novo. – Não existe acima, nem medida alguma, nesses casos. Só uma sensação de que as coisas têm um sentido.

 – Isso você podia ter…

 – Você podia. Não eu.

 – Então, perdemos uma geógrafa brilhante… para uma bailarina…

 – Apenas razoável?

 – Eu não disse isso.

 – Claro que disse. Mas não faz mal.

 – Escute, ainda dá tempo.

 – Tempo do que, meu amor?

 – Esse “meu amor” me pegou de surpresa.

 – O que prova que você continua o mesmo… Surpreendendo-se com o óbvio e olhando com cara de velho para o que é realmente novo. Agora me leve daqui para um lugar mais decente, onde se possa tomar um bom vinho.

 – Você também não mudou. E isso, não sei por que, me faz bem.

 – Não era o que você dizia.

 – Não era o que você pedia.

 Ele abre a porta do carro, ela sorri:

 – A velhice dando vez à juventude?

 – Não, o cansaço dando lugar a algo que não quero definir agora.

 – E quem disse que é preciso definir?

 – Temes definhar ao definir?

 – Idiota! – Ela ri. – O fim vai chegar, para nós. Para todos nós. Mas não hoje.

 – Você não vai acreditar, mas isso, para mim, já é alguma coisa.

 “Acredito”, ela quis dizer, mas achou que não seria preciso.

Fonte:
Revista Pesquisa, da FAPESP, em fevereiro de 2011.

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