quinta-feira, 26 de julho de 2012

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Parte 4: S. Tomé e Príncipe)

A evolução social de São Tomé e Príncipe teria sido paralela, em muitos aspectos, à de Cabo Verde [31]. Mas, em meados do século XH, implantando-se o sistema de monocultura, a burguesia negra e mestiça vai ser violentamente substituída pelos monopólios portugueses, o processo social do Arquipélago alterado e travada a miscigenação étnica e cultural. Mesmo assim, não podem deixar de ser considerados os efeitos do contacto de culturas. A sua poesia, de um modo geral, exprime exactamente isso; mas, na essência, é genuinamente africana.

A primeira obra literária de que se tem conhecimento relacionada com S. Tomé e Príncipe é o modesto livrinho de poemas Equatoriaes (1896) do português António Almada Negreiros (1868 — 1939), que ali viveu muitos anos e terminou por falecer em França. A última é a de um moderno poeta português, crítico, e professor universitário em Cardiff, Alexandre Pinheiro Torres, cujo título, A Terra de meu pai (1972), nos fornece uma pista: memorialismo bebido na ilha, por artes superiores de criação literária metamorfoseada na ilha «que todos éramos neste país solitário». Sem uma revista literária, sem uma actividade cultural própria, sem uma imprensa significativa, apesar do seu primeiro periódico, O Hquador, ter sido fundado em 1869, com uma escolaridade mais do que carencial os reduzidos quadros literários do Arquipélago naturalmente só em Portugal encontraram o ambiente propício à revelação das suas potencialidades criadoras. O primeiro caso acontece logo nos fins do século XIX com Caetano da Costa Alegre (1864 — 1890), {Versos, 1916) cuja obra foi deixada inédita desde o século passado. Cabe aqui, todavia, uma referência particular ao teatro a que poderemos chamar «popular», pelas características e relevância que assume no arquipélago de S. Tomé e Príncipe. Trata-se, em especial, de duas peças: O tchiloli ou A tragédia do Marquês de Mântua e de Carloto Magno e do Auto de Floripes, mas com preferência para a primeira. A segunda oriunda da tradição popular portuguesa; e O tchiloli supõe-se ser o auto do dramaturgo português do século XVI, de origem madeirense, Baltasar Dias, levado, tudo leva a crer, pelos colonos medeirenses na época da ocupação e povoamento. Reapropriados pela população de S. Tomé (e do Príncipe) estão profundamente institucionalizados no Arquipélago, principalmente O tchiloli mercê da actuação de vários grupos teatrais populares que, continuadamente, se dão à sua representação, enriquecida por uma readaptação do texto e encenação, cenografia e ilustração musical notáveis.

Parece ter sido um homem infeliz, em Lisboa, o autor de Versos, Costa Alegre: Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora, Tu és dia, eu sou a noite espessa [32] «Aurora» aqui é um ente humano e não um fenómeno cósmico. A ambiguidade resolve-se na leitura completa do poema. Caetano da Costa Alegre utiliza este signo polissémico com a intenção, ao cabo, de ele traduzir a cor branca: És a luz, eu a sombra pavorosa, Eu sou a tua antítese frisante [33]

A poesia de Caetano da Costa Alegre, na quase totalidade, funciona espartilhada num mecanismo antitético. Exprime a situação desencantada do homem negro numa cidade europeia, neste caso Lisboa. Versos é, porventura, a mais acabada confissão que se conhece, quiçá mesmo nas outras literaturas africanas de expressão europeia, do negro alienado. Costa Alegre, não se dando conta (impossível, diríamos, no século XIX e no tempo cultural e político da área lusófona) das contradições que o bloqueavam, faz-se cativo da sua condição de humilhado:
A minha côr é negra, Indica luto e pena; És luz, que nos alegra, A tua côr morena. É negra a minha raça, A tua raça é branca,
Todo eu sou um defeito [34]

Como tenta Costa Alegre desbloquear-se desta situação? Porque «negra» é a sua «raça», «todo» ele é um «defeito». Como pode ele reencontrar o seu equilíbrio psíquico? Alienado, /«-consciencializado, batido no deserto social em que se movimenta, então cura libertar-se através de uma compensação. Revoltando-se? Clamando contra a injustiça que o atinge? Não. Contrapondo atributos morais.

«Ah! pálida mulher, se tu és bela, [...] Ama o belo também nesta aparência!» [35]. Amiúde as relacionações antinómicas vai buscá-las ao Cosmo:

«Só explendor por fora,
Só trevas é no centro!
O Sol, és meu inverso:
Negro por fora, eu tenho amor cá dentro» [36]

Com efeito, a sua poesia é a de um homem infelicitado. Amiúde recorrendo à comparação e à antítese, as figuras mais pertinentes são as que significam ou simbolizam as cores «negro» e «branco». Da erosão da sua alma transita para a obsessão infeliz, lutando por restabelecer a sua dignidade no refúgio do apelo à evidência moralizante, por norma em poemas lírico-sentimentais ou de amor. Versos fica como o primeiro e único texto onde o problema da cor da pele actua como motivo — e de uma forma obsessivamente dramática. Consideramo-lo o caso mais evidente de negrismo da literatura africana de expressão portuguesa. Alguns autores angolanos coevos de Costa Alegre deram também uma contribuição para este fenómeno, mas percorrendo um espaço menos significativo.

Perspectiva Geral

Temos deste jeito, e em resumo, o seguinte: cedo se esboça uma linha africana, irrompendo de um sentimento regional e em certos casos de um sentimento racial fundo, mas postulado ainda em formas incipientes que, tenazmente, abre um sulco profundo por entre a literatura colonial. De sentimento regional se transita para sentimento nacional, que vai dar lugar, entretanto, a uma literatura alimentada já por uma verdadeira consciência nacional e daí uma literatura africana, caracterizada pelos pressupostos de intervenção.

Ora, os fundamentos irrecusáveis de uma literatura africana de expressão portuguesa vão definir-se, com precisão, deste modo: a) — em Cabo Verde a partir do revista Claridade (1936 — 1960); b) — em S. Tomé e Príncipe com o livro de poemas Ilha de nome Santo (1943), de Francisco José Tenreiro; c) — em Angola com a revista Mensagem (1951—1952); d) — em Moçambique com a revista Msaho (1952); e) — na Guiné-Bissau com a antologia Mantenhas para quem luta! 1977.
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Notas

31    Francisco José Tenreiro, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe: Esquema de uma evolução conjunta. Sep. do Cabo Verde, ano III, n.° 76. Praia, Cabo Verde, 1956, pp. 12-17.

32    Caetano da Costa Alegre, Versos, 1916, p. 26.

33    Idem, p. 26.

34    Idem, p. 47.

35    Idem, p. 61.

36    Idem, p. 100.
 
Continua… Cabo Verde – 1. Lírica

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

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