Agora prepara-se tudo para a segunda eleição, e não sei porque este sistema parece-me uma cópia das corridas de cavalos. Correm primeiramente todos os cavalos; a última corrida é a dos vencedores das primeiras.
Há, como no Jóquei Clube, um prêmio, que não é relógio, nem bolsa, mas uma cadeira na câmara. Na segunda corrida já as coisas vão ser mais sossegadas; a cidade voltou aos seus eixos e o capanga a seus moutons . . até daqui a quatro anos, porque o capanga é imortal.
Ide, anjos velozes, a uma gente arrancada e despedaçada, — clamava o profeta Isaías, e querem alguns que se referisse à América.
Referia-se evidentemente ao Brasil. Aquela gente arrancada e despedaçada, o que é senão este povo em tempos eleitorais, arrancando de suas casas pelo subdelegado e despedaçado na igreja pelos capangas?
Se me objetarem que Isaías escrevia antes das nossas eleições, responderei que este profeta, podia adivinhar o subdelegado, sem grandes milagres. O que o terrível hebreu não adivinhou é que vamos changer tout cela por efeito de uma folha de papel.
Daqui em diante todas as corridas serão como esta próxima de 18 de setembro; haverá o perigo de cair do cavalo abaixo, como nas festas do Jóquei Clube, mas ao menos não se encontrará no chão uma navalha de capoeira. Quem não cai do cavalo, — aludo ao Pégaso — é o poeta das Nuvens da América, o Sr. Martins Guimarães, cuja lira tem para mim uma particularidade altamente apreciável: não canta assuntos rasteiros.
O Sr. Martins Guimarães é antes de tudo poeta filósofo.
Nefandas instituições, sacrílegas, potentes
Sabiamente num poder equilibrado;
Que o tempo levou em suas rotações,
À luz benéfica dos astros derrotados.
Mas, apesar da “luz benéfica dos astros derrotados”, ele bem sabe o poder dessas
Tremendas legiões de nefandas eras,
Os povos na ignorância aferrolhando,
Entre os claustros contendores da aristocracia,
E entre altura do seu poder de mando!...
Nem ignora também que
Presa o mundo de suas tecidas redes,
Morria asfixiado no fanatismo;
Infiltrado dentre úmidas paredes
Do claustro saído com maquiavelismo.
Tudo isto era verdade; o quadro é verdadeiro, pintado com as suas cores próprias. O despotismo e o fanatismo reinavam assim; porém...
Porém, caiu a árvore do despotismo,
Nefando da ciência dentre nós;
Jaz sumido através dos séculos,
Proscrito dentre as eras dos avós.
Não podiam medrar os troncos rugosos,
Das carcomidas instituições vergadas
Que as nações traziam presas,
Às cadeiras da ciência subjugadas.
Nem eram só os troncos rugosos que não podiam medrar; a hipocrisia também não
podia medrar:
Não podia medrar a hipocrisia,
E preciso era acabar as crenças dos povos;
Engolfando nos prejuízos das idéias,
Até estes nossos brilhantes séculos novos.
Mas se isto é assim, dirá algum crítico mais superficial, se tudo acabou, e se estamos nos séculos brilhantes, que mais quer o poeta?
Vem cá, meu crítico atabalhoado; o poeta quer que se torne impossível a volta das eras dos avós. Reconhece que este século é outro, mas não desconhece a possibilidade de voltarmos ao passado.
Que faz ele então?
Pinta-nos primeiramente o que fomos; depois indica-nos o que devemos ser. Esta segunda parte esta toda resumida nas duas quadras com que fecha a obra:
Preciso é educar o povo e instruí-lo,
Longe da crença supersticiosa dos conventos;
Despindo a velha igreja de suas galas,
Enfeitá-la d'outros modernos paramentos.
E apresentá-la em sua pureza de verdade,
Qual noiva trajando novas galas;
Do ouropel da falsidade despojá-la. . .
Apresentando-a com seu brilho nas salas.
Como viu o leitor, não é o Sr. Martins Guimarães um poeta de luares e nevoeiros; não voa de noite, apegado aos raios das estrelas.
Seus assuntos são humanitários e filosóficos. Assim tem lido até hoje; assim o será,
creio eu, até morrer.
Dr. Semana.
Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.
Há, como no Jóquei Clube, um prêmio, que não é relógio, nem bolsa, mas uma cadeira na câmara. Na segunda corrida já as coisas vão ser mais sossegadas; a cidade voltou aos seus eixos e o capanga a seus moutons . . até daqui a quatro anos, porque o capanga é imortal.
Ide, anjos velozes, a uma gente arrancada e despedaçada, — clamava o profeta Isaías, e querem alguns que se referisse à América.
Referia-se evidentemente ao Brasil. Aquela gente arrancada e despedaçada, o que é senão este povo em tempos eleitorais, arrancando de suas casas pelo subdelegado e despedaçado na igreja pelos capangas?
Se me objetarem que Isaías escrevia antes das nossas eleições, responderei que este profeta, podia adivinhar o subdelegado, sem grandes milagres. O que o terrível hebreu não adivinhou é que vamos changer tout cela por efeito de uma folha de papel.
Daqui em diante todas as corridas serão como esta próxima de 18 de setembro; haverá o perigo de cair do cavalo abaixo, como nas festas do Jóquei Clube, mas ao menos não se encontrará no chão uma navalha de capoeira. Quem não cai do cavalo, — aludo ao Pégaso — é o poeta das Nuvens da América, o Sr. Martins Guimarães, cuja lira tem para mim uma particularidade altamente apreciável: não canta assuntos rasteiros.
O Sr. Martins Guimarães é antes de tudo poeta filósofo.
Nefandas instituições, sacrílegas, potentes
Sabiamente num poder equilibrado;
Que o tempo levou em suas rotações,
À luz benéfica dos astros derrotados.
Mas, apesar da “luz benéfica dos astros derrotados”, ele bem sabe o poder dessas
Tremendas legiões de nefandas eras,
Os povos na ignorância aferrolhando,
Entre os claustros contendores da aristocracia,
E entre altura do seu poder de mando!...
Nem ignora também que
Presa o mundo de suas tecidas redes,
Morria asfixiado no fanatismo;
Infiltrado dentre úmidas paredes
Do claustro saído com maquiavelismo.
Tudo isto era verdade; o quadro é verdadeiro, pintado com as suas cores próprias. O despotismo e o fanatismo reinavam assim; porém...
Porém, caiu a árvore do despotismo,
Nefando da ciência dentre nós;
Jaz sumido através dos séculos,
Proscrito dentre as eras dos avós.
Não podiam medrar os troncos rugosos,
Das carcomidas instituições vergadas
Que as nações traziam presas,
Às cadeiras da ciência subjugadas.
Nem eram só os troncos rugosos que não podiam medrar; a hipocrisia também não
podia medrar:
Não podia medrar a hipocrisia,
E preciso era acabar as crenças dos povos;
Engolfando nos prejuízos das idéias,
Até estes nossos brilhantes séculos novos.
Mas se isto é assim, dirá algum crítico mais superficial, se tudo acabou, e se estamos nos séculos brilhantes, que mais quer o poeta?
Vem cá, meu crítico atabalhoado; o poeta quer que se torne impossível a volta das eras dos avós. Reconhece que este século é outro, mas não desconhece a possibilidade de voltarmos ao passado.
Que faz ele então?
Pinta-nos primeiramente o que fomos; depois indica-nos o que devemos ser. Esta segunda parte esta toda resumida nas duas quadras com que fecha a obra:
Preciso é educar o povo e instruí-lo,
Longe da crença supersticiosa dos conventos;
Despindo a velha igreja de suas galas,
Enfeitá-la d'outros modernos paramentos.
E apresentá-la em sua pureza de verdade,
Qual noiva trajando novas galas;
Do ouropel da falsidade despojá-la. . .
Apresentando-a com seu brilho nas salas.
Como viu o leitor, não é o Sr. Martins Guimarães um poeta de luares e nevoeiros; não voa de noite, apegado aos raios das estrelas.
Seus assuntos são humanitários e filosóficos. Assim tem lido até hoje; assim o será,
creio eu, até morrer.
Dr. Semana.
Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.
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