domingo, 15 de julho de 2012

Paulo Mendes Campos (Fábula eleitoral para crianças)

Um dia, as coisas da natureza quiseram eleger o rei ou a rainha do universo. Os três reinos entraram logo a confabular.

Animais, vegetais e minerais começaram a viver uma vida agitada de surtos eloqüentes, manobras, recados furtivos, mensagens cifradas, promessas mirabolantes, ardis, intrigas, palpites, conversinhas ao pé do ouvido.

Entre os bichos era um tumulto formidável. Bandos de periquitos saíam em caravana eleitoral, matilhas de cães discursavam dentro da noite, cáfilas de camelos percorriam os desertos, formigas realizavam comícios fantásticos, a rainha das abelhas passava com o seu séquito, sem falar nos cardumes de peixes, nos lobos em alcatéias pelos montes, nas manadas de búfalos pelas savanas, nas revoadas instantâneas dos pombos-correios.

Todas as qualidades eram postas à prova: a astúcia da raposa, a agilidade dos felinos, o engenho dos cupins, o siso da coruja, o poder de intriga das serpentes, a picardia do zorro, a doçura da pomba, a teimosia do burro, o cosmopolitismo dos ratos.

O leão, o tigre, a pantera, o leopardo e os outros queriam derramar muito sangue; os pássaros coloridos faziam frente única para indicar um pássaro colorido; já os pássaros que cantam decidiam apontar como candidato o rouxinol, a cotovia, a patativa; as cegonhas, irresolutas, passavam as tardes pensando; os patos selvagens desfilavam no céu; as andorinhas, tímidas, buscavam o refúgio das igrejas; e a águia, fascista de nascença, pretendia organizar lá no alto uma conferência de que só participassem as aves de rapina, como o falcão, o condor e o gavião-de-penacho.

Os papagaios viviam a arengar bobagens pelas árvores; a raposa corria as várzeas articulando uma candidatura, ninguém sabia qual; os macacos eram vaiados quando alegavam a semelhança com o homem; o cavalo se insinuou candidato, dando a sua condição de antigo senador; o pavão, escondendo os pés, exibia a cauda; nos brejos, os sapos repetiam “slogans”monótonos; os jacarés e as tartarugas ressonavam na beira dos rios, que passavam levando sussurros quase imperceptíveis, a conversar as pedras e as ervas das margens; o rato do campo ia de vez em quando se aconselhar com o rato da cidade; os gansos citavam velhos costumes romanos; certos bichos, como o boi e a íbis, invocavam direitos divinos, que não eram mais levados a sério; as hienas e os chacais opinavam por um conselho de notáveis, a ser constituído pelos animais ferozes, que lhes deixavam os restos; até a ameba, coitada, queria ser candidata, dizendo-se a origem da vida.

A mosca azul voava e revoava por todos os cantos.

Quem será o rei ou a rainha do universo? De dia, as borboletas andavam como doidas pelos campos, à noite, os vaga-lumes acendiam as suas luzes.

Nas profundezas da terra, o carbono fazia estranhas combinações com o hidrogênio. O diamante e o ouro reluziam de esperança. As estrelas pretendiam uma coalizão de todo o espaço constelado em torno de Vênus, causando ciúmes à Lua.

As flores distribuíam perfumes. Árvores agitadas recebiam recados que os ventos traziam de longe. A floresta pensava eleger não um rei, mas um colegiado de carvalhos, velhos, cheios de experiência. E por toda a flora era um germinar, um brotar, um verdejar, um florescer. Os monocotiledôneos discordavam dos dicotiledôneos, os fanerógamos acusavam de hipocrisia os criptógamos. A plena campanha eleitoral com todos os incidentes. Só os ciprestes continuavam fechados em sua indiferença.

A despeito dos interesses em choque, e de tantas contradições, é preciso dizer, a bem da verdade, que o pleito transcorreu com a máxima lisura.

Ao fim de tudo, a escolha não podia ter sido mais feliz, pois os três reinos unidos elegeram a rosa rainha suprema do universo.

Sim, a rosa, a rosa na sua simplicidade tocada de esplendor, presa na sua haste entre o céu e a terra, eterna e efêmera, a rosa, carne, espírito e pó. E, para entronizar a rainha, o dia se iluminou com a sua luz mais clara, o mar se fez manso, os pássaros cantaram com inspiração, as árvores se puseram mais verdes e mais altas, as flores vestiram roupagens de gala, os seixos rolaram alegremente nas praias, os juncos das lagoas se inclinaram em reverência, as nuvens se desfraldaram como cortinas de gaze sobre o berilo. No fundo do mar era uma alegria silenciosa e solene como um “te-déum” em uma catedral verde-escura, os polvos gesticulando em câmara lenta, os peixes e as medusas passando sem barulho.

Entre os seres humanos, só as crianças sabiam que era o dia da entronização da rosa, e nada contaram a ninguém. Mas pelo jardim onde se achava a rosa, expectante no seu recato soberano, passava naquela manhã um homem feio e preocupado. Era um candidato a qualquer coisa, a vereador, a deputado, a Presidente da República, não se sabe ao certo. Distraído com as suas ambições, ele colheu a rainha do universo, que entrou logo a fenecer em suas mãos úmidas. Depois, olhou e viu que se tratava de uma bela rosa, uma rosa digna de se oferecer a uma namorada. Mas ele não tinha namorada. Mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer... Ele começou a desfolhar a rosa só para saber se dessa vez seria eleito: à Câmara de vereadores, de deputados ou à curul da Presidência da República, não se sabe ao certo. E a rosa morreu.

E foi por isso que o dia se fechou de repente, o céu ficou escuro, os animais uivaram nos bosques, os pássaros sumiram, o vento se desatou sobre o mar agora encapelado, o raio e o trovão tomaram conta da noite sem estrelas, e as crianças na hora do jantar perderam a fome. Tinha morrido a rainha do universo.

Mas nas trevas desabrochou outra rosa para iluminar com a sua beleza o jardim amanhecido.

FONTE:
A Garupa, e outros contos /Sylvia Orthof...[et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 2002 - (Coleção literatura em minha casa ; v.2)

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