Houve um jantar político no Pará. Comeu-se como é de uso nos jantares, e politicou-se, como é de praxe nos jantares políticos.
O leitor já está a adivinhar que, não sendo esta folha política, alguma coisa alegre me chama atenção para os brindes publicados no Jornal do Comércio de quarta-feira.
Adivinhou.
Um dos oradores encetou o seu brinde fazendo uma homenagem ao tipo do bom cidadão. Em seguida, disse que percebera desde o começo do jantar que todas as pessoas presentes rendiam homenagem a um bom cidadão.
Mas qual é o sintoma que dá a conhecer a homenagem prestada a um bom cidadão? Que pergunta! É o silêncio.
Disse o orador:
“O profundo silêncio que reinou durante a mastigação deste banquete, tão suntuoso quanto concorrido de convivas respeitáveis, despertou no meu coração este sentimento: Todos que estão aqui rendem homenagem a um bom cidadão.”
Eu peço humildemente ao leitor que acredite no assombro que me produziu a leitura do trecho citado. Ainda na véspera tinha eu jantado com alguns amigos; durante a sopa e a primeira entrada ninguém abriu o bico. Mal sabia eu que rendíamos homenagem a um bom cidadão.
Até aqui tinha eu uma boa suspeita de que o silêncio que se observa no começo dos
jantares era uma simples homenagem ao estômago. Atrevamo-nos: uma homenagem à besta.
Geralmente, quando os grandes jantares começam, está o estômago a dar horas. Daí vem, pensava eu, a mudez com que os convidados se lançam aos primeiros pratos.
Vê o leitor que eu fazia uma triste idéia da espécie humana.
O autor do brinde foi buscar uma causa mais elevada; levantou o estômago à altura de uma virtude social; fez uma aliança entre a gratidão pública e a couve-flor. Confraternizou, enfim, para usar os seus próprios termos, a homenagem e a mastigação.
E não pára aí.
Era o silêncio a única homenagem devida a um bom cidadão?
De certo.
Porque:
“Segundo a sentença dos Árabes, o silêncio é de ouro; e só o silêncio, digno de tão numerosa e ilustre concorrência, devia ser a primeira saudação ao distinto cavalheiro a quem é ofertado este banquete, credor de todo respeito.”
Isto e uma cacetada na cabeça dos muitos oradores que precedentemente brindaram o dito cavalheiro, era tudo um.
Para mitigar o efeito do golpe não se demorou o orador em borrifar um cumprimento, para o qual peço agora toda a atenção dos leitores:
”O entusiasmo delicado e discreto, que agora unissonamente aplaudimos, é a cor azul que veio firmar e fazer sobressair mais a eloqüência do silêncio de ouro.”
Meditemos.
Aquela cor azul é um achado feliz.
Um entusiasmo que é a cor azul de um silêncio de ouro, merece toda a atenção dos estilistas. Eu que o não sou, nem pretendo ser, não deixo de ver no entusiasmo — cor azul — um grande recurso para os prosadores.
Na poesia sabem todos a vantagem que há muitas vezes em poder empregar uma palavra curta em lugar de uma palavra longa. Por que razão não se dará o mesmo na prosa.
Entusiasmo e uma palavra de légua e meia; às vezes cai bem, outras vezes fica mal, não concentra, dilui o período.
Mas não acontece o mesmo com azul. Azul é breve e eufônico. Indico, portanto, aos
escritores esta substituição facílima.
Dirá o jornal:
“Fundou-se ontem a Associação para a pesca do marisco. Estavam presentes cerca de 45 membros. O azul produzido pelo discurso do iniciador da idéia é indescritível.”
Outro escreverá:
“O governo achará sempre frouxo o espírito público enquanto não entrar na via das reformas radicais. Açula-se o povo com grandes idéias, não com rebocos e mãos de cal.”
Enfim, um terceiro:
”O nosso amigo X chegou no dia 5 do passado a Nioac. O povo ardente, jubiloso,
azulado, correu em massa a recebê-lo.”
Outra vantagem que nos traz este azul.
O entusiasmo tem graus. Há entusiasmo e entusiasmo. Um chega ao delírio, enquanto o outro não passa de animação. Qual será a maneira de os indicar com a simples palavra usada exclusivamente até hoje?
Já não é assim com o azul.
Quero eu dizer, por exemplo, que um ator excitou entusiasmo febril na platéia. Exprimo-me assim:
”No ato 3.º, na ocasião em que o marquês tira o punhal para ameaçar o conde, esteve o ator X verdadeiramente sublime. O público no seu azul-ferrete, atirou para a cena os chapéus.”
Suponhamos que falo de um ator medíocre:
“O ator N faz esforços para progredir, e alguma coisa vai alcançando. Nunca será igual ao ator C, mas não há dúvida que sabe despertar na platéia um certo azul-claro, já honroso para ele.”
Quem não diria com graça, falando de um orador sagrado:
“O padre Z é a verdadeira glória do púlpito. O sermão pregado ontem na Cruz excitou no auditório um azul, que por uma verdadeira coincidência, era azul-celeste.”
Vi há dias anunciada uma casa para alugar. Dizia o anúncio que era uma casa nobre. Cogitei largo tempo.
— Casa nobre, dizia eu com os meus botões, é sinônimo de família nobre; mas uma
família nobre não se aluga. E demais casa, indicando família, não designa só uma aglomeração de membros vivos, mas uma geração, e isso ainda menos se podia alugar. Evidentemente o anúncio aludia a um prédio.
Indaguei se o prédio estava aliado com os Ossunas, os Montmorency ou os Northumberland; soube apenas que estava aliado com a cal e a pedra de que fora feito.
Donde vinha, pois, a nobreza do prédio?
Não me constava que seus avós tivessem ido à Terra Santa. Seus avós foram uns laboriosos pedreiros, que só talvez agora estejam na terra. . . da eternidade.
Não rezavam as crônicas nenhum façanha daquele prédio. As mais esmerilhadas genealogias não acharam a mínima gota do sangue dos barões normandos nas suas
veias. O prédio datava de 1835, ano que só uma excessiva boa vontade poderá encravar na idade-média. Supondo eu, depois de muita meditação, que o anúncio quis indicar a condição e o aspecto da casa, tomo a liberdade de oferecer aos anunciantes uma série de vocábulos que poderão evitar o calembour. Pode dizer-se:
Suntuosa,
Bela,
Elegante,
Magnífica,
Soberba.
E outros termos que não escrevo por falta de espaço.
Sur ce, lecteur, que Dieu vous aie dans sa sainte garde.
Dr. Semana.
O leitor já está a adivinhar que, não sendo esta folha política, alguma coisa alegre me chama atenção para os brindes publicados no Jornal do Comércio de quarta-feira.
Adivinhou.
Um dos oradores encetou o seu brinde fazendo uma homenagem ao tipo do bom cidadão. Em seguida, disse que percebera desde o começo do jantar que todas as pessoas presentes rendiam homenagem a um bom cidadão.
Mas qual é o sintoma que dá a conhecer a homenagem prestada a um bom cidadão? Que pergunta! É o silêncio.
Disse o orador:
“O profundo silêncio que reinou durante a mastigação deste banquete, tão suntuoso quanto concorrido de convivas respeitáveis, despertou no meu coração este sentimento: Todos que estão aqui rendem homenagem a um bom cidadão.”
Eu peço humildemente ao leitor que acredite no assombro que me produziu a leitura do trecho citado. Ainda na véspera tinha eu jantado com alguns amigos; durante a sopa e a primeira entrada ninguém abriu o bico. Mal sabia eu que rendíamos homenagem a um bom cidadão.
Até aqui tinha eu uma boa suspeita de que o silêncio que se observa no começo dos
jantares era uma simples homenagem ao estômago. Atrevamo-nos: uma homenagem à besta.
Geralmente, quando os grandes jantares começam, está o estômago a dar horas. Daí vem, pensava eu, a mudez com que os convidados se lançam aos primeiros pratos.
Vê o leitor que eu fazia uma triste idéia da espécie humana.
O autor do brinde foi buscar uma causa mais elevada; levantou o estômago à altura de uma virtude social; fez uma aliança entre a gratidão pública e a couve-flor. Confraternizou, enfim, para usar os seus próprios termos, a homenagem e a mastigação.
E não pára aí.
Era o silêncio a única homenagem devida a um bom cidadão?
De certo.
Porque:
“Segundo a sentença dos Árabes, o silêncio é de ouro; e só o silêncio, digno de tão numerosa e ilustre concorrência, devia ser a primeira saudação ao distinto cavalheiro a quem é ofertado este banquete, credor de todo respeito.”
Isto e uma cacetada na cabeça dos muitos oradores que precedentemente brindaram o dito cavalheiro, era tudo um.
Para mitigar o efeito do golpe não se demorou o orador em borrifar um cumprimento, para o qual peço agora toda a atenção dos leitores:
”O entusiasmo delicado e discreto, que agora unissonamente aplaudimos, é a cor azul que veio firmar e fazer sobressair mais a eloqüência do silêncio de ouro.”
Meditemos.
Aquela cor azul é um achado feliz.
Um entusiasmo que é a cor azul de um silêncio de ouro, merece toda a atenção dos estilistas. Eu que o não sou, nem pretendo ser, não deixo de ver no entusiasmo — cor azul — um grande recurso para os prosadores.
Na poesia sabem todos a vantagem que há muitas vezes em poder empregar uma palavra curta em lugar de uma palavra longa. Por que razão não se dará o mesmo na prosa.
Entusiasmo e uma palavra de légua e meia; às vezes cai bem, outras vezes fica mal, não concentra, dilui o período.
Mas não acontece o mesmo com azul. Azul é breve e eufônico. Indico, portanto, aos
escritores esta substituição facílima.
Dirá o jornal:
“Fundou-se ontem a Associação para a pesca do marisco. Estavam presentes cerca de 45 membros. O azul produzido pelo discurso do iniciador da idéia é indescritível.”
Outro escreverá:
“O governo achará sempre frouxo o espírito público enquanto não entrar na via das reformas radicais. Açula-se o povo com grandes idéias, não com rebocos e mãos de cal.”
Enfim, um terceiro:
”O nosso amigo X chegou no dia 5 do passado a Nioac. O povo ardente, jubiloso,
azulado, correu em massa a recebê-lo.”
Outra vantagem que nos traz este azul.
O entusiasmo tem graus. Há entusiasmo e entusiasmo. Um chega ao delírio, enquanto o outro não passa de animação. Qual será a maneira de os indicar com a simples palavra usada exclusivamente até hoje?
Já não é assim com o azul.
Quero eu dizer, por exemplo, que um ator excitou entusiasmo febril na platéia. Exprimo-me assim:
”No ato 3.º, na ocasião em que o marquês tira o punhal para ameaçar o conde, esteve o ator X verdadeiramente sublime. O público no seu azul-ferrete, atirou para a cena os chapéus.”
Suponhamos que falo de um ator medíocre:
“O ator N faz esforços para progredir, e alguma coisa vai alcançando. Nunca será igual ao ator C, mas não há dúvida que sabe despertar na platéia um certo azul-claro, já honroso para ele.”
Quem não diria com graça, falando de um orador sagrado:
“O padre Z é a verdadeira glória do púlpito. O sermão pregado ontem na Cruz excitou no auditório um azul, que por uma verdadeira coincidência, era azul-celeste.”
Vi há dias anunciada uma casa para alugar. Dizia o anúncio que era uma casa nobre. Cogitei largo tempo.
— Casa nobre, dizia eu com os meus botões, é sinônimo de família nobre; mas uma
família nobre não se aluga. E demais casa, indicando família, não designa só uma aglomeração de membros vivos, mas uma geração, e isso ainda menos se podia alugar. Evidentemente o anúncio aludia a um prédio.
Indaguei se o prédio estava aliado com os Ossunas, os Montmorency ou os Northumberland; soube apenas que estava aliado com a cal e a pedra de que fora feito.
Donde vinha, pois, a nobreza do prédio?
Não me constava que seus avós tivessem ido à Terra Santa. Seus avós foram uns laboriosos pedreiros, que só talvez agora estejam na terra. . . da eternidade.
Não rezavam as crônicas nenhum façanha daquele prédio. As mais esmerilhadas genealogias não acharam a mínima gota do sangue dos barões normandos nas suas
veias. O prédio datava de 1835, ano que só uma excessiva boa vontade poderá encravar na idade-média. Supondo eu, depois de muita meditação, que o anúncio quis indicar a condição e o aspecto da casa, tomo a liberdade de oferecer aos anunciantes uma série de vocábulos que poderão evitar o calembour. Pode dizer-se:
Suntuosa,
Bela,
Elegante,
Magnífica,
Soberba.
E outros termos que não escrevo por falta de espaço.
Sur ce, lecteur, que Dieu vous aie dans sa sainte garde.
Dr. Semana.
Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.
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