sexta-feira, 27 de julho de 2012

Cândida Vilares Gancho (Como Analisar Narrativas) Parte 4 – Tempo

      Neste livro abordaremos o tempo fictício, isto é, interno ao texto, entranhado no enredo.

       Os fatos de um enredo estão ligados ao tempo em vários níveis:

       Época em se passa a história

       Constitui o pano de fundo para o enredo. A época da história nem sempre coincide com o tempo real em que foi publicada ou escrita. Um exemplo disso é o romance de Umberto Eco, O nome da Rosa, que retrata a Idade Média, embora tenha sido escrito e publicado recentemente.

       Duração da história

       Muitas histórias se passam em curto período de tempo, já outras têm um enredo que se estende ao longo de muitos anos. Os contos de um modo geral apresentam uma duração curta em relação aos romances, nos quais o transcurso do tempo é mais dilatado. Como exemplo de duração curta, o conto de Rubem Fonseca, “Feliz Ano Novo” (o livro tem o mesmo nome), cujo enredo se passa em algumas horas na véspera do Ano-Novo. No outro extremo, apresentaríamos os romances Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, ou então O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, nos quais se narra a vida de muitas gerações de uma família,

Obs.: Para identificar o tempo-época ou a duração, procure fazer um levantamento dos índices de tempo, pois tais referências representam marcações de tempo; por exemplo: “Era no tempo do Rei”, que inicia o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, indica a época em que se passa a história.
  
       Tempo cronológico

       É o nome que se dá ao tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo isto e do começo para o final. Está, portanto, ligado ao enredo linear (que não altera a ordem que os fatos ocorreram); chama-se cronológico porque é mensurável em horas, dias, meses, anos, séculos. Para você compreender melhor esta categoria de tempo, pense nu ma história que começa narrando a infância do personagem e depois os demais fatos de sua vida na ordem em que eles ocorreram: você terá o tempo cronológico. Isto é o que ocorre na novela de Moacyr Scliar, Max e os felinos.

Tempo psicológico

       É o nome que se dá ao tempo que transcorre numa ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou dos personagens, isto é,  altera a ordem natural dos acontecimentos. Está, portanto, ligado ao enredo não linear (no qual os acontecimentos estão fora da ordem natural). Um exemplo de tempo psicológico é o romance de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, no qual o narrador, já defunto, conta seu enterro, depois sua morte, só então conta sua infância, sua juventude, aos caprichos do “defunto autor”. Confira o tempo psicológico neste trecho do livro no qual o personagem narrador relata seu delírio, pré-morte. Ele conversava com a Natureza, Pandora, que lhe permite ver o que é a vida do homem:

       (...) Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. (..) Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — (...) Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. (...) Re dobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último — o último! mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a c é ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
(São Paulo, Ática, 1982. p. 22-3.)


Obs.: Uma das técnicas mais conhecidas, utilizadas nas narrativas a serviço do tempo psicológico, é o flashback, que consiste em voltar no tempo. Neste romance de Machado de Assis, por exemplo, o presente para o narrador é sua condição de morto, a partir da qual ele volta ao passado próximo (como morreu) e ao passado mais remoto, sua infância e juventude, usando por tanto o flashback.

Espaço

       Espaço é, por definição, o lugar onde se passa a ação numa narrativa. Se a ação for concentrada, isto é, se houver poucos fatos na história, ou se o enredo for psicológico, ha verá menos variedade de espaços; pelo contrário, se a narrativa for cheia de peripécias (acontecimentos), haverá maior afluência de espaços.

       O espaço tem como funções principais situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo eventuais transformações provocadas pelos personagens.

       Assim como os personagens, o espaço pode ser caracterizado mais detalhadamente em trechos descritivos, ou as referências espaciais podem estar diluídas na narração. De qual quer maneira é possível identificar-lhe as características, por exemplo, espaço fechado ou aberto, espaço urbano ou rural e assim por diante.

       O termo espaço, de um modo geral, só dá conta do lugar físico onde ocorrem os fatos da história; para designar um “lugar” psicológico, social, econômico etc., empregamos o termo ambiente.

Ambiente

       É o espaço carregado de características socioeconômicas, morais psicológicas, em que vivem os personagens. Neste sentido, ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes dois referenciais, acrescido de um clima.

       Clima é o conjunto de determinantes que cercam os personagens, que poderiam ser resumidas às seguintes condições:
• socioeconômicas;
• morais;
• religiosas;
• psicológicas.

       Funções do ambiente
1. Situar os personagens no tempo, no espaço, no grupo social, enfim nas condições em que vivem.
2. Ser a projeção dos conflitos vividos pelos personagens. Por exemplo, nas narrativas de Noites na taverna (contos de Álvares de Azevedo), o ambiente macabro reflete a mente mórbida e alucinada dos personagens.

(...) Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro:
as estrelas passavam pelos raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abrio-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta!..e aqueles traços todos me lembravam uma idéia perdida... Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como um chumbo. (...)
Súbito abriu os olhos empanados. — Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa —, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a morte — era um desmaio. No aperto daquele abraço havia contudo alguma coisa de horrível, O leito de lájea on de eu passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a custo soltar-me daquele aperto do peito dela... Neste instante ela acordou...
(In:____.Macário, noites na taverna e poemas malditos. Rio de Janeiro, Francisco Alves. 1983. p. 171-2.)


Estar em conflito com os personagens. Em algumas narrativas o ambiente se opõe aos personagens estabelecendo com eles um conflito. Um exemplo disso é o que ocorre no romance Capitães da areia, de Jorge Amado, no qual o ambiente burguês e preconceituoso se choca constante mente com os heróis da história.

(...) Os guardas vêm em seus calcanhares. Sem-Pernas sabe que eles gostarão de o pegar, que a captura de um dos Capitães da Areia é uma bela façanha para um guarda. Essa será a sua vingança. Não deixará que o peguem, não tocarão a mão no seu corpo. Sem-Pernas os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca pôde ter um carinho. E no dia que o teve foi obrigado a abandoná-lo, porque a vida já o tinha marcado demais. Nunca tivera uma alegria de criança. Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miserável das vidas: a vida de criança abandonada. Nunca conseguira amar a ninguém, a não ser a esse cachorro que o segue. Quando os corações das demais crianças ainda estão puros de sentimentos, o de Sem-Pernas já estava cheio de ódio. Odiava a cidade, a vida, os homens. Amava unicamente seu ódio, sentimento que o fazia forte e corajoso apesar do defeito físico. (...) Apanhara na polícia, um homem ria quando o surravam. Para ele é esse homem que corre em sua perseguição na figura dos guardas. Se o levarem o homem rirá de novo. Não o levarão. Vêm em seus calcanhares, mas não o levarão. Pensam que ele vai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não pára. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força de seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço, como se fosse um trapezista de circo. (...)
(Rio de Janeiro, Record, 1985. p. 214-5.)

4. Fornecer índices para o andamento do enredo. É muito comum, nos romances policiais ou nas narrativas de suspense ou terror, certos aspectos do ambiente constituírem pistas para o desfecho que o leitor pode identificar numa leitura mais atenta. No conto “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles, nas descrições do ambiente percebemos índices de um desfecho macabro, por exemplo, no trecho em que se insinua um jogo entre a vida e a morte, que é o que de fato ocorre com os personagens Raquel e Ricardo.

(...) O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos enegrecidos, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte.
(In: - Mistérios. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978. p. 205-6.)


Caracterização do ambiente

       Para se caracterizar o ambiente, levam-se em consideração os seguintes aspectos:

• época (em que se passa a história);
• características físicas (do espaço);
• aspectos socioeconômicos;
• aspectos psicológicos, morais, religiosos.

Continua… Narrador

Fonte:
Cândida Vilares Gancho . Como Analisar Narrativas. 7. Ed. Editora Ática. http://groups.google.com.br/group/digitalsource/

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