sexta-feira, 27 de julho de 2012

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Parte 5: Cabo Verde – 1. Lírica)

Interessa, desde já, reter bem este facto: a partir do início da década de trinta, e mercê de circunstâncias de natureza política, social, histórica e literária, algo ocorreu nas ilhas cabo-verdianas, a que não é alheia a influência da literatura brasileira. «Ora aconteceu que por aquelas alturas, nos caíram nas mãos, fraternalmente juntas, em sistema de empréstimo, alguns livros que consideramos essenciais pro domo nostra». É Baltasar Lopes quem isto afirma, citando autores como José Lins do Rego, Jorge Amado, Amando Fontes, Marques Rebelo. E diz que «em poesia foi um 'alumbramento' a Evocação do Recife, de Manuel Bandeira». Revelação foi ainda «um magnífico livro — a Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, ao lado dos volumes, densos de investigação e interpretação, do malogrado Artur Ramos» (in Cabo Verde visto por Gilberto Freyre, 1956). Ou pode até admitir-se, também, a influência da Presença no que nela se propunha de libertação da linguagem. Uma tomada de consciência   regional   muito   nítida   se   instala   nos escritores de Cabo Verde, que decidem romper com os arquétipos europeus e orientar a sua actividade criadora para as motivações de raiz cabo-verdiana. Não é ainda uma posição anti-colonial. Não é ainda, nem nada que se pareça, algo que tenha a ver com a ideia de independência política ou nacional. Porventura o problema não se poria também nestes termos, assim precisos, logo de início, ao menos generalizadamente, aos escritores do movimento parisiense da negritude.

Mas era, em Cabo Verde, em dados de literatura, uma viragem de cento e oitenta graus: as costas voltadas aos modelos temáticos europeus e os olhos, pela primeira vez, vigilantes e deslumbrados no chão crioulo. De tal facto podem ser pontuações inequívocas não só a citada revista Claridade, como a que se lhe seguiu, em 1944, Certeza, esta sob a directa influência no neo-realismo português, o Suplemento Cultural (1958) [37] e ainda o suplemento «Sèló»; ou inclusive, o boletim Cabo Verde (1949 — 1965), órgão oficial, mas no que ele possui de mais autêntico e digno, e no campo da literatura bastante é, dado que nele colaboraram quase todos os escritores cabo-verdianos.

Aliás, em 1935, um ano antes da publicação de Claridade, Jorge Barbosa, um dos responsáveis por aquela revista, abre a estrada larga do realismo cabo-verdiano:

—    Ai o drama da chuva,
ai o desalento,
o tormento da estiagem!
—    Ai a voragem
da fome
levando vidas!
(... a tristeza das sementeiras perdidas...)
Ai o drama da chuva! [38]

Os sinais da mudança são vários. O abandono dos temas obrigatoriamente europeus, como vinha acontecendo até aí, a renúncia das estruturas poéticas tradicionais (rima, métrica e outras) e a penetração definitiva no contexto humano do Arquipélago: «o drama», «desalento», «tormento», «fome», «tristeza». Nos seus dois primeiros livros: Arquipélago (1935) e Ambiente (1941) e ainda em Caderno de um ilhéu (1956), Jorge Barbosa procede a uma radiografia do drama social do homem cabo-verdiano: a seca, a fome, a emigração, o isolamento, a insularidade, e o mar como estrada mítica da «aventura da pesca da baleia/nessas viagens para a América/de onde às vezes os navios não voltam mais». [39] Assim:

O teu destino... O teu destino Sei lá!
Viver sempre vergado sobre a terra, a nossa terra pobre ingrata querida!
Ou outro fim qualquer humilde
anónimo...
Ó cabo-verdiano
anónimo
— meu irmão! [40]

Via de regra, cada verso uma palavra, ou cada verso um sintagma, uma cadência ritmada, sincopadamente, para que a dor e o sofrimento se grave e avive dentro de nós. E mais: o processo, porventura invulgar para a época, da imanência de um «tu» logo associado a um «nós» no envolvimento da comunhão intensa de um discurso dramático. De resto, Jorge Barbosa é a voz plural que amiúde recorre a expressões como esta: «voz da nossa gente», a transformar o seu discurso na voz colectiva. A enumeração repetitiva, no caso presente adjectivada, mas noutros substantivada, aliada à evocação ou ao apelo afectivo, num recurso continuado à função expressiva, confere à poesia de Jorge Barbosa características dramáticas novas, trazidas pela intimidade, a denúncia, a epopeia do homem ilhado vivendo no drama de «querer partir e ter que ficar!». Enfim, no dizer de Jorge de Sena, um «poeta que, nos seus grandes momentos, é uma das melhores vozes da poesia contemporânea» [41]. E se ele foi o primeiro a romper a tradição de uma poesia que vinha marcando o espaço cabo-verdiano, foi também ainda o primeiro poeta das áreas africanas da língua portuguesa a lançar os fundamentos de uma nova poesia tecida numa situação colonial. A poesia de Jorge Barbosa vai dominar o panorama poético cabo-verdiano por várias décadas, de uma ou de outra maneira e com tal intensidade que só recentemente alguns poetas modernos libertaram de vez a poesia cabo-verdiana do peso estrutural barbosiano, como adiante se verá.

Jorge Barbosa teve uma ajuda, pelo menos. Nada nasce do nada. Essa ajuda, tudo leva a crer, veio dos poetas brasileiros, como assinalámos. Mas o desencadeamento catártico deu-se com a presença de António Pedro (1909-1965), um cabo-verdiano de nascimento que, em 1928, aos vinte anos de idade, visitou Cabo-Verde e ali publicou o livro de poemas Diário (1929). Era então um jovem poeta virado para o modernismo português. Sensibilizado para um certo vanguardismo, a sua poesia «cabo-verdiana» é um abanão nas estruturas tradicionais poéticas do Arquipélago. Por exemplo, sobre a Morna:

Reminiscência dum fado
que, dançado
num maxixe,
tem a tristeza postiça,
dum cansaço.

Um semicivilizado
lasso
balanço
embalado
sobre o ventre dum fetiche [42].

Era a primeira vez que alguém glosava, em nova linguagem, o tema da morna (e outros). Manuel Bandeira, Jorge de lima, Ribeiro Couto, de um lado; António Pedro, de outro, os dados estavam lançados. Nítida a semelhança da estrutura externa das estrofes de Jorge Barbosa e António Pedro. Coteje-se o excerto de António Pedro com este de Jorge Barbosa sobre o poema «A Morna»:

Canto que evoca coisas distantes que só existem
além
do pensamento, e deixam vagos instantes
de nostalgia, num impreciso tormento
dentro das nossa almas...
Morna desassossego,
voz
da nossa gente reflexo subconsciente
[43]

Mas se os pontos de contacto no espaço externo dos poemas de António Pedro e Jorge Barbosa são evidentes, já o mesmo não se dá na estrutura profunda da poesia de um e de outro. Em António Pedro é um pretexto, a voz distanciada («tristeza postiça, dum cansaço»); em Jorge Barbosa, um percurso interiorizado, para uma enunciação colectiva: «dentro/das nossas almas...» o «desassossego», a «voz/da nossa gente». Os demais poetas da primeira fase da Claridade (1935-1937) são Manuel Lopes, Osvaldo Alcântara [i. e Baltasar Lopes] e Pedro Corsino Azevedo. Destes, será Manuel Lopes o vizinho mais próximo de Jorge. Não que se fale de influências. O sinal de Manuel Lopes vem simultaneamente com o de Jorge Barbosa. Mas um dos pontos em que a poesia de Manuel Lopes se afasta da de J.   Barbosa  será  no   tom  filosofante,  no  por vezes solilóquio interrogativo:

Que importa o caminho da garrafa que atirei ao mar? Que importa o gesto que a colheu? Que importa a mão que a tocou
— se foi a criança
ou o ladrão
ou filósofo
quem libertou a sua mensagem
e a leu para si ou para os outros?

O verso é mais longo, a linguagem mais discursiva, a interpretação do mundo real cabo-verdiano mais individualizado. O «tu» em Manuel Lopes tende a ser personalizado: «Mochinho,/teu destino é seres espantalho de corvos,/tocar lata e mandar funda/de desamparinho a desamparinho/na mèrada de milho a arder» 45; e o diálogo, mais do que admirativo é interrogativo ainda quando a sua proposta poética se situa ao nível da indagação colectiva:

Que disse a Esfinge
aos homens mestiços de cara chupada?
Esta encruzilhada
de caminhos e de raças
onde vai ter?
Por que virgens paragens se prolonga?
Que significa para eles o amanhecer? **

Em Pedro Corsino Azevedo, sem livro publicado, e de escassa produção poética, pelo menos a conhecida até agora (refere-se um original perdido: «Era de ouro») é legítimo falarmos em dois mundos. Um, diríamos existencial, equacionando os sonhos e os desenganos, superando o sentido trágico da vida («Sou o atleta vencido/Renascido») [47]. Outro, o da radicação de motivações populares, como no poema muito difundido «Terra-Longe»: «Terra-longe! terra-longe!... — Oh mãe que me embalaste!/Oh meu querer bipartido!» – ou em «Galinha branca»:

Galinha branca O espectro da morte A sorte De todos.
Olha p'ra mim! Assim:
Canivetinho
Canivetão


França
A única esperança...[49]

Com este poema ele ganha o direito a ser considerado o primeiro poeta da modernidade cabo-verdiana, uma vez que nos parece ter sido escrito por volta de 1930 [50].

Osvaldo Alcântara (i. e Baltasar Lopes) é de todos os poetas de Claridade aquele que vem produzindo uma poesia mais intelectualizada. Mas nem por isso Osvaldo Alcântara deixa de ser um poeta par e passo preocupado e identificado com o seu mundo colectivo, como em «Recordai do desterro no dia de S. Silvestre de 1957»:

«O inefável invade docemente a minha tristeza./Sei que a tua espada há-de fulgurar nas batalhas necessárias/e Nicolau nunca mais voltará a ser moeda/das riquezas de Caim» [51]. E nos seus recursos imagéticos, no seu discurso não raro metafórico ou metonímico, Osvaldo Alcântara marca a sua linguagem de uma exigência estética nem sempre alcançada por outros. Poesia habitada por uma consciência dialéctica, num permanente apelo às forças da reprodução mutativa. Recobre um espaço entretecido do cósmico, do social, da tradição popular, das forças criadoras da vida e da acção, de tal modo interiorizado e fundido no impulso poético, mas redimido pela racionalização: «Quem me dera ser estereoscópio para disciplinar as minhas sensações». Um dos seus últimos poemas, publicado em 1973, sagra-se pelo registo da esperança ao ritmo de uma pulsação radiosa, e nele, e com ele, Osvaldo Alcântara firma-se no chão real do espaço e do tempo cabo-verdianos:

Onde há o Tântalo de todas as recusas
e tudo gerou nada
e o tempo desembocou no presente
e no chão podre de húmus malditos
o presente só tem para ti uma colheita clandestina
esperança esperança esperança [52].

A Claridade sucede a geração de a Certeza (1944). Nem sempre o conceito de geração corresponde a uma demarcação estética ou ideológica. Mas neste caso corresponde. O grupo de Certeza todo ele perfilha o ponto de vista neo-realista. São, portanto, marxistas. Quando os componentes do grupo tomaram conhecimento de Claridade, e logo a seguir da proposta dos neo-realistas portugueses, abandonaram os possíveis liames com um passado e assumem, na ilha, o drama colectivo que feria grande parte da humanidade: a Segunda Grande Guerra Mundial. E é já no entendimento do que ela significa que Guilherme Rocheteau diz:
«Ao longe/na distância da manhã por vir,/a indecisão das camuflagens/e do rumor da guerra,/há agonias esbatidas no negro-fumo/da pólvora/dos homens que se batem./Aquem, é a luta na rectaguarda!» [53].

Mas esta visão dialéctica exprime-a também Tomaz Martins, aliás autor de uns escassos três poemas, tal como aquele seu companheiro de jornada:
«Eu quero verte/compreendendo o fogo do camarada irmão/nesta luta incerta que é a sua certeza» [54].

Nuno Miranda (Cais dever partir, 1960; Cancioneiro da ilha, 1964) foi nessa altura uma esperança. Então ele, na ufania de si próprio, revelava-se com o pseudónimo de Manuel Alvarez:
«Numa noite qualquer [...] tombaram um por um, os falsos deuses!...» [55] — para, entretanto, vinte anos depois, se carpir no mundo confuso em que se deixou mergulhar, e com a consciência da crise que o destruía: «a nave» «tomba de leve no arquejo/das cousas caladas da noute»[56].

Arnaldo França, um dos mais dotados poetas da Certeza, teima em continuar ignorado escrevendo pouco (julgamos) e publicando nada, depois do seu breve e útil ensaio Notas sobre poesia e ficção cabo-verdianas (Sep. Cabo Verde (nova fase), n.° 157. Praia, Cabo Verde 1962). Mas o rastro por ele deixado é o de um lírico com a consciência do peso real das palavras, e ciente dos caminhos difíceis da aprendizagem poética. Há «muros altamente inacessíveis» no trânsito para «a conquista da poesia»:

Era um castelo erguido na montanha
da paisagem deserta submarina
tinha muros altamente inacessíveis
ao salto imaginário do meu pensamentos [57]

Poeta lírico mas que preenche a sua mensagem de conotações ideológicas precisas, evidentes até em títulos de poemas como «Paz» (é preciso lembrar o contexto: 1960) e exigir a paz era (é) combater a opressão, era efectuar o registo do «testamento para o dia claro». O seu discurso semeado de «sonhos», «encantamentos», «vigília», «silêncio», «distância», «pétalas dispersas», ou a «alma que se desprende em luz» ganha um relevo a um tempo tranquilo («Meus sonhos quem os fez nascer tranquilos/serenos?») e inquieto, que lhe sobe da «voz desperta». Há nele uma sabedoria que pré-anuncia um futuro na «esperança nova» porque a felicidade «só na comum seara se renova».

Mas no horizonte lívido do dia Recuam quando passa a nuvem fria Os pássaros metálicos da noite.
E na amplidão da luz que resplandece É de ti que surgiu a mão que tece A esperança nova à humana sortes [58].

Colocaríamos agora o nome de António Nunes (Devaneios, 1938; Poemas de longe, 1945) que, em 1944, mandava de Iisboa, para o n.° 2 de Certeza o «Poema de amanhã». Poema de intencionalidade unívoca, com ele António Nunes se impunha como o primeiro poeta neo-realista  cabo-verdiano   a  estabelecer  a   oposição colonizado/colonizador. Com efeito, nesse poema o «tu» é «Mamãe», a terra cabo-verdiana, mas subjacente está um «ele», o outro que dispõe dos homens, o colonizador:

— Mamãe! sonho que, um dia, estas leiras de terra que se estendem, quer seja Mato Engenho, Dàcabalaio ou Santana, filhas do nosso esforço, frutos do nosso suor, serão nossas.
E, então, O barulho das máquinas cortando, águas correndo por levadas enormes, plantas a apontar, trapiches pilando, cheiro de melaço estonteando, quente, revigorando os sonhos e remoçando as ânsias novas seivas brotaram da terra dura e seca!... [59]

Aqui, António Nunes aparta-se de Jorge Barbosa, e de várias maneiras: na estrutura externa e no ponto de vista. Mais tarde, em «Ritmo de pilão», dava-nos a complementaridade desta proposta e mais se distanciava de Jorge Barbosa que, em vincado acento dorido, falava do «nosso drama» e até «da nossa revolta». Mas que revolta? — «da nossa silenciosa revolta melancólica». E António Nunes? Este, em 1958, abria a sua área temática, em «Ritmo de pilão»: «Bate, pilão, bate/que o teu som é o mesmo/desde o tempo antigo/dos navios negreiros...» 60. Ao sonho de que as terras «serão nossas» se junta agora o incitamento a uma luta continuada. O sentido da sua mensagem encerra a visão dialéctica da mudança e a necessidade de acção.
–––––
Notas:
47    Pedro Corsino Azevedo, «Renascença» in Claridade, n.° 5, 1947, p. 16; também in M. Ferreira, No reino de Caliban, 1.° vol., 1975, p. 121.

48    Idem, «Terra-Longe» in Claridade, n.° 4,1947, p. 12.

49    Idem, «Galinha branca» in M. Ferreira, No reino de Caliban, 1.° vol., Lisboa, 1975, pp. 124-125.

50    Deve-se a Pedro da Silveira a publicação deste poema, acompanhado de uma nota, em Mensagem, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império, ano XVI, n.° 1, julho de 1964, pp. 10-11-12.
Fala-se  de  um  original perdido  de  Pedro  Corsino  de Azevedo, «Era de Ouro».

51    Baltasar Lopes, «Recordai do desterrado no dia de S. Silvestre de 1957» in Claridade, n.° 8,1958, p. 39.

52    Idem, «Menino de outro gongon» COLÓQUIO/Letras, n.°14,1973, p. 58.

53    Guilherme Rocheteau, «Panorama» in Certeza, n.° 1,1944.

54    Tomaz Martins, «Poema para tu decorares» in Claridade, n.°4,1947, p. 37.

55    Nuno Miranda, «Revelação» in Certeza, n.° 1, 1944.

56    Idem, Cancioneiro da ilha, 1964, p. 42.

57    Arnaldo França, «A conquista da poesia» in Claridade, n.° 5,1947, p. 33.

58    Idem, «Paz-3» in Claridade, n.° 8, 1958, pp. 27-28.

59    António Nunes, Poemas de longe, 1945, p. 32.

 
Continua…Cabo Verde 1 – Lírica

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

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