Tolentino Esteves da Silva nasceu, por assim dizer, soldado.
Na noite em que veio ao mundo, seu pai logo profetizou: um rapagão assim só pode servir nosso mestre e nossa pátria.
Não podiam ser para ele os rebanhos que a família guardava havia séculos, nem o amanho da terra que a alimentava. Destino maior teria Tolentino e assim estava decidido.
Quando completou dezoito anos, o pai mandou-o inscrever-se no exército, conforme prometera à sua nascença. E poucos meses volvidos chegou a carta que mandava Tolentino apresentar-se no quartel mais próximo. A mãe juntou-lhe alguma roupa, um pedaço de presunto, meia dúzia de chouriças, um naco de pão e enfiou tudo num saco. Lágrima de mãe no canto do olho, disse-lhe que fosse em paz e pediu-lhe que nunca se esquecesse dela.
O pai, esse estava orgulhoso.
Tinha, finalmente, chegado o dia de mostrar àquela aldeia, que ficava nos confins da serra, que dali também partiam homens guerreiros, como sempre ouvira dizer que tinham sido seus antepassados.
Por isso ninguém lhe viu uma lágrima que fosse, embora elas estivessem todas a correr para dentro do peito e a magoarem-lhe a alma.
Dois dias e duas noites foi quanto Tolentino levou a chegar ao quartel. Apresentou-se, deram-lhe uma farda, uma arma, um número para pôr ao pescoço e disseram-lhe:
– Tens que obedecer aos teus superiores. Fazer tudo que te mandam, ouviste bem?
– Sim, senhor, que bem ouvira e que bem entendera. Que tudo faria a gosto de suas senhorias. Pois não era para isso que ali estava?
Depressa passou o tempo da recruta. Tolentino, bem mandado e forte como era, foi considerado um dos melhores. E que orgulhoso que ele estava. Não podia esperar mais pela hora de ir para a guerra, lutar contra o inimigo.
– Onde está ele, meu capitão? Onde fica a guerra, meu sargento? Quero ver a cara desse malandro já, meu cabo!
Os três entreolharam-se, admirados. Tanto empenho e tanta dedicação daquele soldado durante a recruta deviam ter-lhe afetado o pensar. E depois de uns segundos de silêncio, disse o capitão a Tolentino:
– A guerra acabou, bom homem. Tu, bravo soldado, mataste o inimigo.
– Mas como, se nunca eu vi a cara do safado?!
– Pois tu não sabes como o inimigo era esperto? Como ele se escondia atrás de cada colina por onde andaste? Entre os barcos que alvejavas escondido no pinhal? No meio das nuvens para onde descarregavas a tua arma?
Ainda incrédulo, Tolentino teve de se render às evidências. E, sempre bem mandado, lá arrumou o seu saco, pô-lo às costas e regressou a casa, bem no alto de uma serra, não sem antes ter feito um pequeno desvio.
Foi dia de festa quando o avistaram. A mãe deu-lhe um grande abraço, o pai, esse fez-se de forte e para que todos da aldeia ouvissem, perguntou-lhe:
– Então, meu filho, que tal a guerra? Que é do inimigo?
– Saiba meu pai e toda esta gente, para vosso descanso, que a guerra acabou e que o inimigo jaz no campo de batalha. E fui eu, Tolentino Esteves da Silva, que pus fim a tudo. Assim disseram o meu capitão, o meu sargento e o meu cabo.
Todos pasmaram com tamanha bravura e logo quiseram saber pormenores.
Tolentino tirou o saco das costas, meteu a mão com muito cuidado por um pequeno orifício da abertura e mostrou para que vissem bem e nunca mais esquecessem:
– Aqui está um pedaço de erva de uma colina onde o inimigo se escondia. Esta madeira são restos de um barco que afundei.
E abrindo completamente o saco, soltou-se no ar um nevoeiro espesso e húmido que a todos assustou.
– Não temais, sossegou Tolentino, neste pedaço de nuvem jazem em pó os restos mortais do último inimigo deste país.
O nevoeiro dispersou-se no ar e quanto mais subia mais os habitantes da aldeia erguiam as suas cabeças.
O silêncio pesava quando Tolentino Esteves da Silva juntou a erva e o pedaço de madeira e os meteu de novo no saco. Pegando na enxada de seu pai começou a subir o monte e, voltando-se para todos, esclareceu:
– Vou ao pico mais alto da serra enterrar estes despojos da guerra. Nunca vi a cara do inimigo, mas também ele merece paz e descanso. Amanhã, meu pai,... amanhã tratamos da sementeira. Amanhã.
E continuou a subida, curvado, como se no saco que sentia tão pesado, estivessem os restos mortais do feroz inimigo que ele nunca vira e que tanto atormentara o sono merecido da gente daquelas paragens.
Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.
Na noite em que veio ao mundo, seu pai logo profetizou: um rapagão assim só pode servir nosso mestre e nossa pátria.
Não podiam ser para ele os rebanhos que a família guardava havia séculos, nem o amanho da terra que a alimentava. Destino maior teria Tolentino e assim estava decidido.
Quando completou dezoito anos, o pai mandou-o inscrever-se no exército, conforme prometera à sua nascença. E poucos meses volvidos chegou a carta que mandava Tolentino apresentar-se no quartel mais próximo. A mãe juntou-lhe alguma roupa, um pedaço de presunto, meia dúzia de chouriças, um naco de pão e enfiou tudo num saco. Lágrima de mãe no canto do olho, disse-lhe que fosse em paz e pediu-lhe que nunca se esquecesse dela.
O pai, esse estava orgulhoso.
Tinha, finalmente, chegado o dia de mostrar àquela aldeia, que ficava nos confins da serra, que dali também partiam homens guerreiros, como sempre ouvira dizer que tinham sido seus antepassados.
Por isso ninguém lhe viu uma lágrima que fosse, embora elas estivessem todas a correr para dentro do peito e a magoarem-lhe a alma.
Dois dias e duas noites foi quanto Tolentino levou a chegar ao quartel. Apresentou-se, deram-lhe uma farda, uma arma, um número para pôr ao pescoço e disseram-lhe:
– Tens que obedecer aos teus superiores. Fazer tudo que te mandam, ouviste bem?
– Sim, senhor, que bem ouvira e que bem entendera. Que tudo faria a gosto de suas senhorias. Pois não era para isso que ali estava?
Depressa passou o tempo da recruta. Tolentino, bem mandado e forte como era, foi considerado um dos melhores. E que orgulhoso que ele estava. Não podia esperar mais pela hora de ir para a guerra, lutar contra o inimigo.
– Onde está ele, meu capitão? Onde fica a guerra, meu sargento? Quero ver a cara desse malandro já, meu cabo!
Os três entreolharam-se, admirados. Tanto empenho e tanta dedicação daquele soldado durante a recruta deviam ter-lhe afetado o pensar. E depois de uns segundos de silêncio, disse o capitão a Tolentino:
– A guerra acabou, bom homem. Tu, bravo soldado, mataste o inimigo.
– Mas como, se nunca eu vi a cara do safado?!
– Pois tu não sabes como o inimigo era esperto? Como ele se escondia atrás de cada colina por onde andaste? Entre os barcos que alvejavas escondido no pinhal? No meio das nuvens para onde descarregavas a tua arma?
Ainda incrédulo, Tolentino teve de se render às evidências. E, sempre bem mandado, lá arrumou o seu saco, pô-lo às costas e regressou a casa, bem no alto de uma serra, não sem antes ter feito um pequeno desvio.
Foi dia de festa quando o avistaram. A mãe deu-lhe um grande abraço, o pai, esse fez-se de forte e para que todos da aldeia ouvissem, perguntou-lhe:
– Então, meu filho, que tal a guerra? Que é do inimigo?
– Saiba meu pai e toda esta gente, para vosso descanso, que a guerra acabou e que o inimigo jaz no campo de batalha. E fui eu, Tolentino Esteves da Silva, que pus fim a tudo. Assim disseram o meu capitão, o meu sargento e o meu cabo.
Todos pasmaram com tamanha bravura e logo quiseram saber pormenores.
Tolentino tirou o saco das costas, meteu a mão com muito cuidado por um pequeno orifício da abertura e mostrou para que vissem bem e nunca mais esquecessem:
– Aqui está um pedaço de erva de uma colina onde o inimigo se escondia. Esta madeira são restos de um barco que afundei.
E abrindo completamente o saco, soltou-se no ar um nevoeiro espesso e húmido que a todos assustou.
– Não temais, sossegou Tolentino, neste pedaço de nuvem jazem em pó os restos mortais do último inimigo deste país.
O nevoeiro dispersou-se no ar e quanto mais subia mais os habitantes da aldeia erguiam as suas cabeças.
O silêncio pesava quando Tolentino Esteves da Silva juntou a erva e o pedaço de madeira e os meteu de novo no saco. Pegando na enxada de seu pai começou a subir o monte e, voltando-se para todos, esclareceu:
– Vou ao pico mais alto da serra enterrar estes despojos da guerra. Nunca vi a cara do inimigo, mas também ele merece paz e descanso. Amanhã, meu pai,... amanhã tratamos da sementeira. Amanhã.
E continuou a subida, curvado, como se no saco que sentia tão pesado, estivessem os restos mortais do feroz inimigo que ele nunca vira e que tanto atormentara o sono merecido da gente daquelas paragens.
Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.
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