segunda-feira, 23 de julho de 2012

Machado de Assis (Badaladas – 22 de setembro de 1872)

O Jornal do Comércio publicou há dias uma interessante notícia, que talvez escapasse à atenção do leitor.

Noticiou o Jornal que o Mikado (soberano espiritual do Japão) promulgara uma nova religião, formada do resumo e extrato de várias seitas do país.

Deve ser um singular povo, o japonês. Receber uma religião pelo Diário Oficial, como quem recebe uma nova tarifa da alfândega, é levar o culto da administração muito mais longe do que um povo do nosso conhecimento.

Deita-se um homem acreditando que a gula é um pecado mortal e que as boas obras são necessárias à salvação.

No dia seguinte, entre o café e o charuto, noticia-lhe o Boletim das Leis que a gula passa a ser um pecado meramente venial, em certos casos uma ação indiferente, em alguns — raríssimos — um feito virtuoso, e que, a respeito das boas obras, são elas tão necessárias à salvação como duas apólices a um defunto, tudo com a rubrica de Sua Majestade.

Bem vejo que a religião assim constituída é essencialmente progressiva, e não haveria razão para que não entrasse no programa dos partidos constitucionais se o Japão os houvesse no sentido em que os tem a civilização do ocidente.

Os liberais, por exemplo, prometeriam, ao lado da reforma do correio, a supressão de uma doutrina relativa às potências da alma.

Os conservadores, entretanto, não só proclamariam a excelência do correio (falo do Japão) como a necessidade de conservar e até desenvolver a doutrina das potências da alma.

Determinou esse homem no testamento que o seu corpo fosse pesado, e que o valor do seu peso em cera fosse dado a certa ordem a que ele pertencia.

É difícil perscrutar a razão de semelhante minuciosidade.

A intenção foi de certo boa, e se devemos respeitar a intenção dos vivos, muito mais devemos respeitar a intenção dos mortos.

Nem por isso é menos embaraçosa a situação em que ficamos.

Se acode ao peso na salvação o peso do corpo, o reino do céu fica fechado aos magros.

Quem for gordo tem certeza de não ir ao purgatório, pelo menos de não ir por muito tempo. Não acontece o mesmo ao magro; o magro mal poderá dar de si com que purgar dois ou três pecados.

E pecados tanto os comete o magro como o gordo. Quero crer até que o magro é mais pecador.

Há na gordura certa pachorra, certa preguiça, que até de pecar afasta a criatura. O gordo bufa, vegeta, joga o solo e faz muitas outras coisas inocentes, que o magro não faz ou faz raramente.

Portanto, leitor, se queres que te pesem o cadáver, engorda primeiro, faz-te arroba, faz te tonelada, e irás ao céu.

Ao céu irá provavelmente a nova câmara municipal se mandar corrigir a ortografia do nome da rua do Passeio, esquina da rua das Marrecas. Rua do Passeio e o que está, ali escrito. Não se usa.

Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.

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