O
Jornal do Comércio publicou há dias uma interessante notícia, que talvez
escapasse à atenção do leitor. 
Noticiou
o Jornal que o Mikado (soberano espiritual do Japão) promulgara uma nova religião,
formada do resumo e extrato de várias seitas do país. 
Deve
ser um singular povo, o japonês. Receber uma religião pelo Diário Oficial, como
quem recebe uma nova tarifa da alfândega, é levar o culto da administração
muito mais longe do que um povo do nosso conhecimento. 
Deita-se
um homem acreditando que a gula é um pecado mortal e que as boas obras são
necessárias à salvação. 
No
dia seguinte, entre o café e o charuto, noticia-lhe o Boletim das Leis que a
gula passa a ser um pecado meramente venial, em certos casos uma ação
indiferente, em alguns — raríssimos — um feito virtuoso, e que, a respeito das
boas obras, são elas tão necessárias à salvação como duas apólices a um
defunto, tudo com a rubrica de Sua Majestade. 
Bem
vejo que a religião assim constituída é essencialmente progressiva, e não
haveria razão para que não entrasse no programa dos partidos constitucionais se
o Japão os houvesse no sentido em que os tem a civilização do ocidente. 
Os
liberais, por exemplo, prometeriam, ao lado da reforma do correio, a supressão
de uma doutrina relativa às potências da alma. 
Os
conservadores, entretanto, não só proclamariam a excelência do correio (falo do Japão)
como a necessidade de conservar e até desenvolver a doutrina das potências da
alma. 
Determinou
esse homem no testamento que o seu corpo fosse pesado, e que o valor do seu
peso em cera fosse dado a certa ordem a que ele pertencia. 
É
difícil perscrutar a razão de semelhante minuciosidade. 
A
intenção foi de certo boa, e se devemos respeitar a intenção dos vivos, muito
mais devemos respeitar a intenção dos mortos. 
Nem
por isso é menos embaraçosa a situação em que ficamos. 
Se
acode ao peso na salvação o peso do corpo, o reino do céu fica fechado aos
magros. 
Quem
for gordo tem certeza de não ir ao purgatório, pelo menos de não ir por muito
tempo. Não acontece o mesmo ao magro; o magro mal poderá dar de si com que
purgar dois ou três pecados. 
E
pecados tanto os comete o magro como o gordo. Quero crer até que o magro é mais
pecador. 
Há
na gordura certa pachorra, certa preguiça, que até de pecar afasta a criatura.
O gordo
bufa, vegeta, joga o solo e faz muitas outras coisas inocentes, que o magro não
faz ou faz raramente. 
Portanto,
leitor, se queres que te pesem o cadáver, engorda primeiro, faz-te arroba, faz
te tonelada, e irás ao céu. 
Ao
céu irá provavelmente a nova câmara municipal se mandar corrigir a ortografia
do nome da rua do Passeio, esquina da rua das Marrecas. Rua do Passeio e o que
está, ali escrito. Não se usa. 
Fonte:
Obra
Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938.
Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a
02/02/1873. 

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