quinta-feira, 26 de julho de 2012

Teresa Lopes ( Hélix, o Caracol)

Quando se nasce caracol nunca se pode prever o destino.

Uns passeiam-se languidamente pelos campos de verde-primavera, outros pelos jardins-do-alheio e outros são caracóis-de-cidade, o que faz com que sobrevivam mais a custo já se vê.

Hélix era um caracol-de-província. Terra pequena, mas farta de jardins e de quintais que até dava gosto morder.

E foi bem no meio de um canteiro cercado de buxo que o nosso amigo nasceu. Ninguém sabe bem como, mas a verdade é que, um belo dia de sol, lá estava Hélix, pela primeira vez na sua vida, entre dois pequenos pés de jarros, a deitar os corninhos à brisa da manhã.

Espera-me uma bela vida, pensou Hélix, não deve haver nada como esta luz quente para me aquecer a casa.

Mas quando umas nuvens escuras foram entrando pela manhã e o ar ameaçou uns pinguitos de chuva, corninhos para dentro, que ele não era flor e não precisava de rega.

Dormiu todo esse dia. Pudera, não é a toda a hora que se nasce. Já muito fizera ele aventurando-se a espreitar o mundo.

E a vida de Hélix foi prosseguindo à volta disto: ora espreitava o sol, ora fugia da chuva. A sua única distracção era a figura humana mais pequena lá de casa, duas tranças a escorrer pelos ombros, saia plissada, sapato de verniz acabado de estrear, que volta e meia parava à sua frente, aninhava-se à espera não se sabia de quê, e cantava uma lenga-lenga que, aos ouvidos de um caracol, soava assim:

Tu itica, tu incói,
Tem cóninhos como um bói,
Lagarato num é tu,
Fomiguinha tamém não.
Que bichinho será tu?
Eu sou um cacarói!

Verdade, verdadinha, Hélix não achava piada nenhuma àquilo. Mas desde que aquela criatura minúscula não o incomodasse nem o calcasse, tudo bem, que cantasse o que lhe desse na real gana.

E como os caracóis não sabem o que são dias, nem meses, nem anos, o nosso amigo lá foi contando muitos sóis e muitas chuvas, que só ouvia de dentro da sua casota, muito encolhidinho.

Não era mundano nem se dava a conversas. Queria lá saber se as rosas tinham florido, se as ameixoeiras estavam carregadinhas de frutos vermelhos. Se os jarros onde morava tinham tido um destino fatal quando foram precisos para enfeitar uma sala lá de casa. Queria lá ele saber o nome dos pássaros que debicavam à sua volta e por todo o jardim, enchendo o ar com melodias que os ouvidos de Hélix não conseguiam descodificar. Queria lá ele saber.

Ele nascera só, pois só viveria. E aquele canteiro chegava e sobejava. Conhecer mais mundo, para quê?

Mas o destino tem destas coisas. Numa bela tarde de Dezembro, quando Hélix se preparava para ver que tal estava o tempo do lado de fora da sua mansão, viu cair do céu umas pérolas muito pequenas, da cor mais pura que ele alguma vez vira.

Eram leves como o esvoaçar das borboletas. Gelavam-lhe as antenas e permaneciam no chão, como que a querer chamá-lo.

Admirou-se. Nunca na sua longa vida tal fenómeno vira. E extasiou-se de tal maneira, que se esqueceu de recolher os corninhos e de se fechar a sete chaves em sua guarita.

Como a vida é bela, pensava Hélix.

E os pensamentos iam fluindo cada vez com mais lentidão.

Que felizardo que eu sou. Pois estão a ver que o céu veio visitar-me? Que as
nuvens desceram das alturas só para me cumprimentar?

E sem dar por isso, enquanto olhava os cristais de água, com aqueles olhos que só os caracóis possuem, Hélix adormeceu, penetrou no sono mais doce que uma vida de nuvens pode dar... E nunca mais acordou.

Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.

Um comentário:

MariaChiquinha disse...
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