PREMONIÇÃO CIGANA
Aquela que me lia
Irmã da outra
A que me sorria
Roda de saia
Lenda de céu
Seu anel de prata
Ausente respaldo
Desdobro estandarte
A glória desse tempo
Ao sol azul de quando
Premonição de cores
Recorte à sombra
Pairando ao deixado
Minha lua de papel.
MEDIOCRIDADE CONFORTÁVEL
De longe a voz do mercado
O barulho das correntes
O grande portão de ferro
Na calçada vazia o silêncio óbvio
Dormem os bêbados
Sonsos
Vagam gatos mansos
Pisam macio
Adorno de noite escura
Momento de consistência frágil
Valor afetivo
Mediocridade confortável.
UM CISCO NO OLHO
Caminhante silente
Gesto cuidado
Desvio do olhar
Incômoda atenção
Bela canção à esquina
Mas ninguém ali o conhecia
Desconfia-se
De cigano vagante.
BLOCO DE JUDAS
Dançariam seus ódios mútuos
A mulher dos cabelos ruivos e a serviçal judiada
Eis que o dia final havia chegado
Era tão somente um bloco engraçado
De fêmeas e machos tolos
E os importantes seriam então judiados
E ela, pretensiosa pecadora
Ao som de bumbo e tambor
Em seus vermelhos estonteantes
Retornaria à perversidade escura de antes
Ao socavão dos seus desejos malvados
Arderia no fogo do seu juízo final
Regozijo inútil.
UM RASTRO SEFARDITA
No almoço do cristão galego
Cordeiro não é imolado
Mas sua faca é aí amolada
E perus são aí degolados
À luz do sol do meio-dia
O sacrifício malvado
Rubra agonia da morte
Coalha no prato ao vinagre
Manchadas são as pedras
Do pátio da minha infância
No rastro de penas deixado
Deitam palavras vestidas
Nessas minhas linhas nuas
Poema das minhas entranhas.
UM QUASE NADA
À loja da esquina
Alegria de panos
Meus suspiros aí deixados
Seu Salim e seu riso de marfim
Armazém das cores
Quantas vezes aí voltei
Em meus ecos suspirados
Hoje perdidas tramas
Quase um fiapo
Um fio de pouca coisa
Alegria de quase nada
Em seu riso de marfim
Subiu aos céus suspirado.
DESORDENADA LUZ ORIENTAL
Os mais ricos pigmentos
Despeja o céu ao poente
Cores damascenas
Desordenada luz oriental
Seda persa de outrora
Cavalos do espectro
Em asas de luz ao rapto
Fio da trama por desatar
Sobre o aparador da sala de jantar
O suspiro esquecido
O vestido reinado da estátua
Desordenada luz oriental
Fantasma do Bairro Judeu.
FLORES MORRIDAS
Parei. Em esquina contente
Conjunção imaginária
A jogar bola de satisfação
Avistei meninos folgados
Sem dengos. Contudo plenos
Voltei. À Rua das Flores
Pálida lembrança de meus encantos
Avistei para desgosto meu
Mulheres sem alegrias
A carpir evidências
Mulheres antes meninas. Como eu
Nas mãos, suadas e mornas
Flores sozinhas traziam. Só Angélicas
Murchas outrora perfumadas.
ALMA DEVASSADA
Um pedaço de pão
Um naco de peixe
Contou um pouco de si
Despida sua fraqueza cabeluda
Sentia-se um pouco nu
Talvez deselegante
Um fratello amigo
Espiava dentro da sua alma
Mas ninguém ali o conhecia
Cobria-lhe o manto opaco
Dos pensamentos desolados
Devassada alma.
A FRAGILIDADE DA COERÊNCIA
Teço a minha trama
E a do meu companheiro
As linhas são muito finas
Escanteada é a luz suspeita
Fios necessários por separar
Até percebo a agonia
Da sombra fugidia
E na clareza na certeza
Vejo que linhas tênues se partem fácil.
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