Era uma vez um sacristão que, todas as noites, se dirigia ao altar da sua igreja e acendia velas diante das imagens dos santos para que as trevas não invadissem o local e as santas criaturas não deixassem de proteger o povo daquela vila.
Um dia, lembrando-se de ter ouvido dizer que o Diabo está sempre atrás da porta, pensou: “Se for verdade que o Diabo está atrás das portas e que ele, quando quer, não é tão mau rapaz como dizem, então deixa-me cá pôr-lhe também uma vela, que às vezes... ainda pode ser que algum dia me ajude”.
Alumiou uma vela e foi colocá-la atrás da porta da igreja.
Findo o seu trabalho, dirigiu-se à estalagem onde jantou ovos cozidos. Quando ia pagar, pediram-lhe seis mil réis. Voltou-se, então, para o estalajadeiro e disse-lhe:
- Olhe lá, seis moedas por três ovos cozidos não é muito dinheiro?
- Não é, não! - respondeu o outro.
- Não é? Então, como é isso? - perguntou o sacristão.
- É que você não está a pagar só o preço dos ovos que comeu. Você tem também que pagar os pintos que de lá haviam de sair, haviam de crescer e tornar-se galinhas que valeriam bom dinheiro. E agora, vossemecê já está a perceber quanto valiam os ovos que comeu?
- Esta agora, não querem lá ver! Mas se eu só comi os ovos, não comi nem pintos, quanto mais galinhas... E logo seis moedas... eu tenho lá seis moedas!
- Ah, não tem? Vocemessê não quer pagar? Então amanhã vamos ao juiz, que ele logo lhe diz quem é que tem razão.
O sacristão estava estupefato, tanto mais que o estalajadeiro era considerado um homem rico, que na igreja oferecia esmolas para os pobres com gestos largos para que todo o povo o visse. E agora, estava a exigir-lhe, a ele, um pobre sacristão, que pagasse por três ovos o preço de um lauto banquete. Como é que aquilo podia estar a acontecer-lhe?
O sacristão não tinha aquele dinheiro todo, foi-se embora muito aflito. Dirigindo-se para casa, saiu-lhe ao caminho um homem muito alto, envolto numa capa preta. O sacristão recuou, assustado, mas o outro disse-lhe:
- Nada receies, não estou aqui para te fazer mal. Sei o que se passou na estalagem e quero dizer-te que não precisas de te preocupar. Confia em mim. Eu posso muito, acredita que posso. Amanhã vou ao tribunal defender-te. Espera lá por mim, que à hora marcada eu apareço.
O pobre homem ficou todo contente por ter aparecido alguém que iria intervir a seu favor.
No dia seguinte, quando chegou ao tribunal já lá se encontravam o juiz e o estalajadeiro. Só faltava o homem que lhe tinha prometido que iria defendê-lo. Esperaram, esperaram, mas o outro continuava sem aparecer. O juiz estava a ficar muito aborrecido com aquela demora. Era quase hora da janta, e ele não conseguia pensar noutra coisa que não fosse a paparoca que o esperava lá em casa, até já lhe estava a crescer água na boca, e que aborrecimento, a defesa tardava em chegar... se é que viria! O juiz começava a ficar de muito mau-humor, que isto de uma pessoa sentir o estômago vazio era o diabo.
Eis que entra na sala o embuçado da véspera, dando grandes passadas. À luz do dia, o homem ainda parecia maior. As tábuas do chão do tribunal vibravam e rangiam sob as sua botas pesadas.
Dirigindo-lhe a palavra, o juiz perguntou:
- Olhe lá, então isto é que são horas de você aparecer? O que é que você esteve a fazer até agora para chegar tão tarde?
- Estive a cozer favas para os meus criados semearem - respondeu o homenzarrão, com a sua voz de timbre profundo.
- Ah, sim? E onde é que já se viu favas cozidas a germinarem? - perguntou o juiz.
- Então, e onde é que já se viu ovos cozidos darem pintos? - perguntou o outro à laia de resposta.
O juiz não sabia o que responder. Olhou para o estalajadeiro que estava boquiaberto.
O homem da capa preta deu meia volta sobre os tacões das pesadas botas e saiu majestosamente.
Na rua, riu-se para o sacristão, deu-lhe uma palmadinha no ombro e disse-lhe:
- Estás a ver? Eu quando quero também sou um rapaz simpático. E também ficaste a saber por mim que há gente que, embora pareça praticar o bem e querer ajudar os seus semelhantes, não perde uma oportunidade para os enganar e roubar. Neste mundo é preciso ter sempre os olhos bem abertos!
Fonte:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar
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