quarta-feira, 16 de outubro de 2019

David Martins (O Sacristão e o Diabo)


Era uma vez um sacristão que, todas as noites, se dirigia ao altar da sua igreja e acendia velas diante das imagens dos santos para que as trevas não invadissem o local e as santas criaturas não deixassem de proteger o povo daquela vila.

Um dia, lembrando-se de ter ouvido dizer que o Diabo está sempre atrás da porta, pensou: “Se for verdade que o Diabo está atrás das portas e que ele, quando quer, não é tão mau rapaz como dizem, então deixa-me cá pôr-lhe também uma vela, que às vezes... ainda pode ser que algum dia me ajude”.

Alumiou uma vela e foi colocá-la atrás da porta da igreja.

Findo o seu trabalho, dirigiu-se à estalagem onde jantou ovos cozidos. Quando ia pagar, pediram-lhe seis mil réis. Voltou-se, então, para o estalajadeiro e disse-lhe:

- Olhe lá, seis moedas por três ovos cozidos não é muito dinheiro?

- Não é, não! - respondeu o outro.

- Não é? Então, como é isso? - perguntou o sacristão.

- É que você não está a pagar só o preço dos ovos que comeu. Você tem também que pagar os pintos que de lá haviam de sair, haviam de crescer e tornar-se galinhas que valeriam bom dinheiro. E agora, vossemecê já está a perceber quanto valiam os ovos que comeu?

- Esta agora, não querem lá ver! Mas se eu só comi os ovos, não comi nem pintos, quanto mais galinhas... E logo seis moedas... eu tenho lá seis moedas!

- Ah, não tem? Vocemessê não quer pagar? Então amanhã vamos ao juiz, que ele logo lhe diz quem é que tem razão.

O sacristão estava estupefato, tanto mais que o estalajadeiro era considerado um homem rico, que na igreja oferecia esmolas para os pobres com gestos largos para que todo o povo o visse. E agora, estava a exigir-lhe, a ele, um pobre sacristão, que pagasse por três ovos o preço de um lauto banquete. Como é que aquilo podia estar a acontecer-lhe?

O sacristão não tinha aquele dinheiro todo, foi-se embora muito aflito. Dirigindo-se para casa, saiu-lhe ao caminho um homem muito alto, envolto numa capa preta. O sacristão recuou, assustado, mas o outro disse-lhe:

- Nada receies, não estou aqui para te fazer mal. Sei o que se passou na estalagem e quero dizer-te que não precisas de te preocupar. Confia em mim. Eu posso muito, acredita que posso. Amanhã vou ao tribunal defender-te. Espera lá por mim, que à hora marcada eu apareço.

O pobre homem ficou todo contente por ter aparecido alguém que iria intervir a seu favor. 

No dia seguinte, quando chegou ao tribunal já lá se encontravam o juiz e o estalajadeiro. Só faltava o homem que lhe tinha prometido que iria defendê-lo. Esperaram, esperaram, mas o outro continuava sem aparecer. O juiz estava a ficar muito aborrecido com aquela demora. Era quase hora da janta, e ele não conseguia pensar noutra coisa que não fosse a paparoca que o esperava lá em casa, até já lhe estava a crescer água na boca, e que aborrecimento, a defesa tardava em chegar... se é que viria! O juiz começava a ficar de muito mau-humor, que isto de uma pessoa sentir o estômago vazio era o diabo.

Eis que entra na sala o embuçado da véspera, dando grandes passadas.  À luz do dia, o homem ainda parecia maior. As tábuas do chão do tribunal vibravam e rangiam sob as sua botas pesadas.

Dirigindo-lhe a palavra, o juiz perguntou:

- Olhe lá, então isto é que são horas de você aparecer? O que é que você esteve a fazer até agora para chegar tão tarde?

- Estive a cozer favas para os meus criados semearem - respondeu o homenzarrão, com a sua voz de timbre profundo.

- Ah, sim? E onde é que já se viu favas cozidas a germinarem? - perguntou o juiz.

- Então, e onde é que já se viu ovos cozidos darem pintos? - perguntou o outro à laia de resposta.

O juiz não sabia o que responder. Olhou para o estalajadeiro que estava boquiaberto.

O homem da capa preta deu meia volta sobre os tacões das pesadas botas e saiu majestosamente.

Na rua, riu-se para o sacristão, deu-lhe uma palmadinha no ombro e disse-lhe:

- Estás a ver? Eu quando quero também sou um rapaz simpático. E também ficaste a saber por mim que há gente que, embora pareça praticar o bem e querer ajudar os seus semelhantes, não perde uma oportunidade para os enganar e roubar. Neste mundo é preciso ter sempre os olhos bem abertos!

Fonte:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar

Nenhum comentário: