quarta-feira, 2 de outubro de 2019

André Kondo (A Montanha)


Subo a montanha. Não procurei saber o seu nome, como costumava fazer. Nas montanhas que escalei, sempre havia algum sentido no esforço. Não era apenas pela vista ou mero exercício, que minhas pernas não obedeceriam a coisas tão vãs. No Japão, todas as montanhas são sagradas. No alto, encontrei portais xintoístas que separavam o profano do sagrado. No alto, o sagrado. Era isso o que eu buscava?

Hoje, a última subida. Sinto-a bem, mesmo sabendo que ainda não encontrei o que procurei durante toda a vida. Mas o que fazer, se as pernas me desobedecem? A montanha que subo agora não tem nome. Não para mim. Estou velho, é o que pensam. E, para os velhos, nomes são coisas raras. Ainda mais para quem passa a sofrer da memória, como dizem os médicos. Eu discordo do diagnóstico: sofrer. De fato, essa doença da qual não me recordo o nome, na verdade, não é sofrimento. Afinal de contas, esquecer é um consolo. Na vida, todo o sofrimento vem do ato de lembrar. Lembra-se de um trauma, de palavras duras vindas de pessoas amadas ou para elas proferidas, de fracassos, de dores. E a maior dor causada pelo ato de lembrar se chama saudade. Portanto, por não me lembrar, não sinto saudades de nada. Não há dor.

Porém, apenas uma coisa insiste em permanecer dentro de mim: esse desejo de subir montanhas. Talvez tenha sido apenas isso que me restou. A memória agora é um deserto, e a única coisa a se avistar é o alto de uma montanha no horizonte de areia.

Nunca havia compreendido totalmente o sentido de meus passos. Creio que a vida seja como subir montanhas. Alguns o fazem apenas pela vista lá do alto, outros o fazem pelo gosto da conquista e ainda há outros, como eu, que tentam alcançar algo além do que a vida pode proporcionar, como se o cume de uma montanha pudesse revelar o que a planície do cotidiano, vista de tão perto, esconde. O que parece grande — e importante — do chão, no alto toma-se apenas pequenina parte de algo muito maior. A vista do topo revela o todo.

Os homens se esgotam, sempre escalando montanhas, sempre procurando o alto das coisas. Sempre...

Muitos disseram que eu não conseguiria. Eu dizia que ainda escalaria a última montanha. Ainda descobriria o sentido da vida. Muitos riram. Não riram na minha cara, mas um velho sabe quando riem dele. Agora, sou eu quem ri. Sorrio.

Subo a montanha. Subo na horizontal.

Deitado na cama, corpo preso a estes tubos e fios... Todavia, meus olhos, espelhos da alma, refletem a liberdade. Vejo a montanha. Ela é linda, ela não tem nome. Subo a montanha.

Só quando, finalmente, fecho os olhos, eu chego ao topo, pela última vez. E compreendo que o destino de um homem não se prende aos seus passos. O destino de um homem é escalar a própria alma: é ser a própria montanha.

[Vencedor do Prêmio da Academia de Letras da Região Oceânica de Niterói/RJ; destaque do 3. Prêmio Literário Legislativo de Caçapava do Sul – Casa do Poeta (RS).]

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

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