quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Francisca Júlia (O Senhor Cura)


O senhor cura era o homem mais caritativo e generoso que havia na aldeia.

Velho já, os cabelos brancos como a neve, quando o viam atravessar as ruas, a cabeça trêmula, o passo incerto, a velha batina de pano grosseiro cheia de rasgões e remendos, os aldeões acompanhavam-no com olhar respeitoso e cumprimentavam-no, sorrindo.

As crianças corriam a tomar-lhe a bênção. Ele afagava-as, alisando-lhes os cabelos; perguntava pela saúde dos pais e dava-lhes moedas em cobre. Todos o amavam.

Quando uma rapariga se ia casar, partia o cura a visitá-la, a dar-lhe bons conselhos, como si fosse pai. Se a moça era pobre, o cura ia de casa em casa angariando esmolas e presenteava-a com o enxoval e objetos úteis.

À cabeceira do doente, era, ao mesmo tempo, médico e enfermeiro: — preparava as tisanas e aplicava-as. No leito do agonizante era confessor e amigo: — aconselhava ao arrependimento, ensinando o caminho do céu, e chorava aos primeiros anseios da agonia.

Nas horas vagas, depois de haver rezado e feito as suas obras de caridade, ensinava às crianças a doutrina cristã e dava-lhes gulodices.

À noite, quer nas chuvas do estio ou no frio do inverno, ia visitar a miséria da aldeia. A este dava o azeite para a lamparina, àquele um pedaço de pão, e a todos, em geral, bênçãos, conselhos e carinhos.

E no entanto, quanta vez a velha criada que o servia não o ia encontrar sentado à beira da estrada, morto de fadiga e quase moribundo de fome! Ralhava-lhe então com palavras afetuosas e amargas:

— Isto já não tem jeito! Viver por aí a socorrer a pobreza, a pedir esmolas para dar aos outros e não se lembrar de que é pobre também, que está com a batina em trapos, o calçado roto e que em casa não há nem um naco de pão para a nossa boca! É de mais! Vamos, saia daí, apoie-se em meu braço e vamos para casa! Até parece que Deus vira seu santíssimo rosto!

E lá iam os dois, estrada fora, de braços dados, como dois mendigos.

Era assim o pobre cura — bom até à dedicação, caridoso até ao sacrifício.

Houve um dia em que uma febre contagiosa e mortal atacou os habitantes do lugar.

Os ricos fugiram; alguns abandonaram suas casas; muitos, porém, preferindo morrer da febre a sofrer miséria em terra estranha, ou, talvez, na esperança de ser protegidos pela providência, deixaram-se ficar na aldeia, a trabalhar.

Quem passava pela rua ouvia no interior das casas gemidos de dor e gritos de desespero.

O cura, então, saiu, foi de casa em casa em socorro dos doentes, consolando os aflitos, confessando os agonizantes, sempre solícito, sempre carinhoso, sem se importar com o cansaço que lhe invadia o corpo e nem com a fome que lhe devorava as entranhas.

Houve um instante em que, não podendo mais sofrer o cansaço e a fome, se deixou cair no chão, e, tirando do bolso um pedaço de pão duro, dispôs-se a comer.

Um mendigo, que passava, pediu-lhe a bênção e disse-lhe:

— Senhor cura, estou quase morto de fome e mal posso sustentar-me nas pernas. Socorrei-me.

— Toma, pobre homem, este pedaço de pão. É o único que me resta, mas a minha fome está satisfeita. — Toma.

O mendigo comeu e partiu.

Minutos depois o velho cura tinha morrido.

Fonte:
Iba Mendes

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