quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Aparecidos Raimundo de Souza (Bizarro)


OITO E MEIA DA MANHÃ.

Dona Cecília está sentada confortavelmente na enorme mesa da sala tomando seu desjejum. A campainha toca. De má vontade se levanta. Caminha a passos lerdos devido à idade e alcança o hall que antecede a grande sala de estar. Estica o corpo. Na ponta dos pés, espia pelo buraquinho do olho mágico. Vê um homem de costas. Esse é um dos muitos, ou melhor, o principal defeito que os desconhecidos, de um modo geral, fazem questão de carregar. Ao baterem na porta de alguém (principalmente em prédios de apartamentos, onde não se conta com serviços de portaria), ao invés de permanecerem com a cara virada para o olho mágico, a fim de serem prontamente reconhecidos, optam por se distraírem mirando um ponto qualquer, ao acaso. Geralmente escolhem os pés, como a se certificarem se os sapatos não saíram correndo.

Dona Cecília fica um instante, quieta, imaginando que o sujeito logo desistirá. Volta à mesa. Renova o café. A campainha volta a tocar. Desta feita, três vezes consecutivas. Furiosa, a sessentona retorna ao hall. Todavia, não se dispõe a perder tempo perscrutando o corredor. Destranca e abre de vez. Ao fazê-lo, contudo, solta um grito medonho, ao tempo que bate a porta estrepitosamente na cara do inesperado visitante. Rosilda, a empregada, vem da cozinha, às carreiras. Atrás dela, acode também Nancy, a sobrinha e a filhinha Ciane, de oito anos. Rosilda se benze ao ver a velhota à beira de um ataque de nervos.

— Que foi dona Cecília? Que bicho lhe mordeu?

As duas amparam a anciã e a carregam para o quarto.

— Por Deus! — quer saber Rosilda. — O que foi que aconteceu?

Nancy igualmente curiosa, segura carinhosamente a mão da espantada e boquiaberta velhinha.

— Que diabo fez a senhora se assustar tanto assim?

Como dona Cecília perdera a voz momentaneamente, a jovem refaz os passos da tia. Volta à sala e escancara a porta, de supetão. Agarrada a sua saia, está a espevitada Ciane, tomada igualmente pela curiosidade de saber o que arriou a idosa a cair cheia de medo e pavor. O sujeito parado no umbral se condensa e compõem a figura de um cidadão vestido impecavelmente. Usa terno preto, camisa branca e gravata marrom, combinando com os sapatos. Na mão esquerda uma pilha enorme de livros.

— Pois não, senhor?

— Om ia, enhorita — diz a visita com a voz fanhosa. — Eu ome é Eporace. Ou endedor ambuante e íblias agradas.

— O que? Como!?

Nessa hora, e só nessa hora, Nancy percebe que o infeliz não tem nariz. Como se momentaneamente uma agulha rombuda estivesse perfurando seu coração, a bela dá um passo atrás, acometida de um medo infundado, mas tão forte, que o impulso imediato não é outro senão o de bater a porta com toda força na fuça do infeliz. Quando um ser humano não tem um olho, a coisa complica um pouco, ou melhor, complica muitíssimo. Sem orelha, passa. Com um ouvido só, engana. Sem um braço, ou perna, idem. Sem os dois, vexa, oprime, acanha, embora as pessoas olhem de soslaio, ficando inteiramente penalizadas. No fim, se acaba aceitando. Contudo, um rosto feio, de homem, e ainda por cima, sem o nariz, é de deixar qualquer filho de Deus assustado. A bem da verdade, assustado seria pouco. Assustadíssissimo, ou qualquer outro qualificativo ou coisa parecida, cairia de excelente tamanho.

Ciane, todavia, se adianta às intenções da mãe e aquiesce com ela, envolta num sorriso infantil repleto da mais pura inocência.

— Mãezinha, atende ele. Coitado, não tem nariz!

Nancy fica estática. Alguns segundos se queda paralisada. Sem nenhum tipo de ação. Rosilda chega de novo, bisbilhotando. Por pouco, ao pregar os olhos no cidadão bem ali a alguns passos dela, não segue o mesmo caminho da patroa, tendo um piripaque súbito e fulminante. Atordoada, volta, aos gritos, no passo que veio e some no fim do corredor que acessa os aposentos de dona Cecília, não sem antes fechar atrás de si à porta a chave.

Enquanto isso, na sala Nancy se recobra do susto. Ou pelo menos tenta.

— O senhor não quer entrar?

— Uito obriado.

— Pode repetir o que disse antes e me explicar a que veio?

O desnarigado coloca sobre uma mesinha de centro os volumes que carrega. Nancy lhe indica o sofá.

— Por favor, tome assento.

A figura extravagante obedece. Fala.

— Ou endedor e Íblias Agradas — diz a guisa de explicação. – Ostaria e icar om um eemplar ara e ajuar? Ez eais — completa numa cortesia quase diplomática.

Nancy não consegue entender uma palavra sequer. Ciane, esperta e arisca, socorre a mãe e a tira de um embaraço prestes a tomar corpo e forma.

— Mamãe, o tio vende Bíblias Sagradas.

— É!?

— Ele falou que cada livro custa dez reais. O nome dele é Leporace.

O coitado olha para a menina visivelmente contrafeito, porém, com ternura incontida. Sorri um sorriso feio e deformado, mas franco e verdadeiro. Em seguida desvia o rosto para a mãe. Balança a cabeça de modo a confirmar as palavras da miúda.

— Arotinha eserta. Enza Eus!

Sem saber o que responder, a moça encara a filha.

— O tio falou que sou esperta. Disse mais: Benza Deus!

Nancy chacoalha a cabeça feita vaquinha de presépio.

— Compra, mãe. É livro de Jesus.

— Como é que você sabe?

— Minha professora, na escola, outro dia, falou sobre isso. A senhora compra?

Tanto a jovenzinha insiste que Nancy, condoída e compadecida do estado lastimável do vendedor, acaba adquirindo dois exemplares.

— Tome, um é seu. Este outro dê a Rosilda.

Apanha a bolsa. Tira o dinheiro e estende ao rapaz.

— Aqui está. Aceita um café?

— E ão or inômodo...

Nancy vai até a cozinha e retorna com uma bandeja. O café é servido. Ao terminar, o vendedor retira de um bolso interno do paletó um maço de panfletos. Puxa um e estende a guria. De um lado, está impressa a oração do Pai Nosso, do outro, os Dez Mandamentos.

— Rá ocê! Embrança o io...

O homem feio termina o café em silêncio. Faz uma referência com a cabeça, em agradecimento. Então se levanta, passa a mão nos livros. Acena um adeus silencioso a Ciane. Vira as costas e ganha o corredor.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

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