domingo, 6 de outubro de 2019

Maurício Cavalheiro (O Segredo de Boas Histórias)


No intervalo vespertino, deixo o escritório para combater a fome na padaria da praça. Peço pão na chapa e pingado. Junto à mesa, na calçada, observo o movimento.

As 15 horas, precisamente, ele aparece com o livro à axila. Caminha lento, apoiado na bengala, até se acomodar no banco ao lado do coreto. Ajeita o chapéu, apruma os óculos, pigarreia. Dizem que no início tagarelava para os pombos. Mas estes preferiam bicar resíduos de alimentos no chão a ter que ouvi-lo.

Por um bom tempo foi considerado destrambelhado. Por isso os pais criavam medo nos filhos, para não se aproximassem do velho "doido". Mas como toda invencionice tem prazo de validade e criança é um bicho impertinente, o enredo se desfez. Há muitos anos, o filho rebelde do prefeito resolveu importunar o 'Velho doido". Tentou de todas as maneiras. Fez isso, fez aquilo, e mais um pouco. Não adiantou: acabou pacificado pelas histórias do nonagenário. Desde então, o degredo perdeu forças e o velho ganhou popularidade.

Ainda menino, inúmeras vezes ouvi histórias contadas por ele. Histórias que não se repetem. Naquele livro mágico nasciam - e nascem - reinos, galáxias, monstros, florestas e muito mais. Naquele livro há passados e futuros inimagináveis. Confesso que, de vez em quando, deixo o café para ouvi-lo, como neste instante.

Atravesso a rua e me aproximo da plateia; crianças e adultos sentados na grama. Ele me reconhece. Cumprimento-o com um aceno. Ele dá uma piscadela e encosta o indicador no nariz me pedindo para manter o segredo. Meneio a cabeça assentindo.

Depois de pigarrear mais uma vez, abre o livro e começa a contar, elaborando gestos e expressões faciais para cada momento da história. Sua voz, embora rouca e um pouco enfraquecida, tempera com sabedoria cada palavra. Crianças e adultos, literalmente, viajam nas histórias.

Ao fim da oratória, recebe aplausos e outras manifestações de carinho. E vai embora.

Dentro de mim, o menino continua maravilhado. Dentro de mim, reina o segredo inviolável: ele é analfabeto e conta histórias guardadas no coração,

Fonte:
Maria Eliana Palma (org.). Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

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