sábado, 5 de outubro de 2019

Monteiro Lobato (O Plágio)


— Você sai, Nenesto, com um tempo destes?

— Não há outro.

— Dia de São Bartolomeu, inda mais?...

— Importa-me lá o santo.

— Está bem. Depois não se arrependa...

Isto dizia dona Eucaris ao “queixo-duro” do seu marido Ernesto d’Olivais, ao vê-lo tomar o chapéu do cabide para sair.

Fora, remoinhava o vento, anunciando tempestade próxima.

Por castigo, nem bem caminhara o teimoso duzentos passos e desaba o aguaceiro. Tão repentino que mal teve tempo de barafustar por um sebo adentro, no instante preciso em que o belchior cerrava a última folha da porta. Mesmo assim resfriou-se e foi com três espirros que retribuiu à saudação do homem.

— Atchim!...

— Viva!

— Atchim!…

— Viva!

— Atchim… Brr! Pra burro! Espirro pra burro. C’est le diable.

(Século trinta! Se por acaso um exemplar deste livro chegar ao conhecimento dos teus fariscadores de antigualhas, não se assombrem eles com a expressão curralina do meu Ernesto. Nem quebrem a cabeça a interpretá-la com ajuda da filologia comparada, da veterinária e mais ciências conexas. Cá fica a chave do enigma. A expressão “pra burro” viveu correntio pelas imediações da Grande Guerra, com significação de abundante, excessivo ou estupendo. Nascida nalguma cocheira, alargou-se às ruas e passou destas aos
salões. Penetrou até na retórica amorosa. Romeus houve que, pintando a formosura das respectivas Julietas, substituíram o arcaico linda como os amores por este soberbo jato de impressionismo cavalar: É linda pra burro! Não obstante, as Julietas casavam com eles e eram felizes. Lá se entendiam.)

O belchior era francês, e Ernesto taramelava na língua adotiva do senhor Jacques d’Avray o necessário para embrulhar língua com um belchior francês. Sabia diferençar femme sage de sage femme, distinguia chair de viande e alambicava a primor os uu gauleses. Além disso tinha ciência de vários idiotismos, usando amiúde o qu’est-ce que c’est que ça?; sabia de cor a história do Didon dit-on, além de uma dúzia de prosopopeias de alto calibre, forrageadas nos Miseráveis de Victor Hugo — o que já é bagagem glóssica de peso para um carrapato orçamentário com seis anos de sucção.

Tais conhecimentos, mensalmente postos em jogo, bastavam para espezinhar a paciência do livreiro, a quem Ernesto, em todo dia 2 de cada mês, tomava alugado um bacamarte de Escrich, matador das horas vazias da repartição.

Naquela tarde, porém, Ernesto não queria livros, sim um teto, razão pela qual falhou o usual encetamento da seca. (Esse ritual começava assim: Qu’est-ce que vous avez de nouveau, monsieur?)

Fora, em rogougos sibilantes, o vento pulverizava a chuva.

Tinha de esperar.

Ernesto esperou. Esperou a remexer as estantes, a folhear revistas, a ler a meia-voz os títulos dourados. De longe em longe tomava dum volume e perguntava ao francês acurvado na escrituração de um livro de capa preta:

— Combien, monsieur?...

E a resposta do homem repicava invariavelmente:

— C’est très salé, c’est très salé, c’est très salé — estribilho trauteado em surdina até que novo livro lhe empolgasse a atenção. Empolgou-lha, logo depois, uma brochura esborcinada: A maravilha, de Ernesto Souza.

— Olé! Um xará! Combien, monsieur?

O livreiro, sem maior atenção, rosnou qualquer coisa, enquanto Ernesto, absorto no manuseio do livro, ia murmurando maquinalmente o très salé... Leu-lhe o período inicial e o final, vezo antigo adquirido no colégio, onde colecionava num caderninho a primeira e a última frase de quanto livro lhe transitava pela carteira. A maravilha era um desses romances esquecidos, que trazem o nome do autor à frente duma comitiva de identificações, à laia de passaporte à posteridade, muito em moda no tempo do onça:

alfredo maria jacuacanga
(Natural do Recife)
3º- anista da Escola de Medicina da Bahia
ou
doutor cornélio rodrigues fontoura
Ex-lente disto, ex-diretor daquilo, ex-membro do Pedagogium, ex-deputado
provincial, ex-cavaleiro da Cruz Preta etc. etc.

Romances descabelados, onde há lágrimas grandes como punhos, punhais vingativos e virtudes premiadíssimas de par com vícios arquicastigados pela intervenção final e apoteótica do Dedo de Deus — livros que a traça rendilhou nos poucos exemplares escapos à função, sobre todas bendita, de capear bombas de foguetes.

O período final rezava assim: “E um rubro fio de sangue correu do níveo seio da donzela apunhalada como uma víbora de coral num mármore pagão”.

Ernesto, né de Oliveira mas d’Olivais por contingências estéticas, enrubesceu de apolíneo prazer. E assoou-se, demonstração muito sua de entusiasmo chegado a ponto de arrepio.

— Sim, senhor! Está aqui uma frase soberba! “Como víbora de coral...”.

Magnífico! E este “mármore pagão”...

Foi ter com o monsieur e leu-lha “com alma”; mas o tipo, absorvido numa edição, miou apenas o oui, oui, sem sequer erguer a cabeça.

Ernesto não comprou o livro (não era 2 do mês), mas escondeu-o num desvão para que até o dia aquisitivo ninguém lhe pusesse a vista em cima.

Entrementes a chuva amainara.

Ernesto entreabriu a porta para a rua murmurejante e resolveu abalar.

— Monsieur, au revoir!

— Oui, oui — miou pela última vez o belchior.

Na rua endireitou para casa, ruminado que, sim, senhor, era ter fogo sagrado! Uma frase daquelas fazia um nome. O xará tinha talento. Bem dizia Victor Hugo nos Miseráveis que o gênio... é o gênio.

E foi pelo caminho a redizê-la com cariciosa unção, a remirá-la de todos os lados, sob todas as luzes. Degustou-a em surdina inúmeras vezes; pela forma, revendo o jeito com que a fixaram no papel os caracteres tipográficos; pelas correções associadas, evocando vagos helenismos clássicos que o padre mestre Jordão lhe embutira no cérebro a palmatoadas — Frineia, o cão de Alcebíades, as Termópilas, o barril de Diógenes.

Por fim, à noite, já a preciosa frase se lhe incrustara nos miolos, no lugar onde costumavam encruar as ideias fixas. Chegou a repeti-la à dona Eucaris. Mas dona Eucaris, uma criatura sovada, toda virtudes conjugais e preocupações caseiras, interrompeu-o prosaicamente:

— E você trouxe, Ernesto, o pavio de lampião que encomendei?

Ernesto d’Olivais arrepanhou a cara num assomo de dó ante a chinfrinice mental da companheira. Dó, despeito e meia cólera, coisa rara em seu imo de amanuense gomoso e manso.

— Que pavio? Que me importa o pavio? Quem fala aqui de pavio? Ora, não me aborreça com histórias de pavio!

E voltando-se para o canto (que a cena se passava na cama) embezerrou.

O sono dessa noite não foi bom conselheiro, e no dia seguinte Ernesto andou pela repartição mais meditativo que do costume, com olhos parados — olhos de cobra morta que olham sem ver.

É que uma ideia...

Não era bem uma ideia ainda, mas células vagas, destroços vogantes de ideias mortas, lampejos de ideias futuras, coisas tão afins que ao cabo de três dias se englobavam numa ideia-mãe de imperiosa vitalidade.

— Escrever um conto, uma simples “variedade”, em linguagem bem caprichada, com floreados bem bonitos, arabescos de alto estilo... Duas ou três personagens — não gostava de muita gente. — Um conde, uma condessa pálida, a cidade de Três Estrelinhas, o ano de 18... Como enredo, uma paixão violenta da condessa de X pelo pintor Gontran —, gostava muito deste nome. A cena, já se sabe, passava-se na França, que nunca achara jeito em personagens nacionais, vivendo em nosso meio, ao nosso lado. Perdiam o encanto. A narrativa vinha crescendo até engastar-se naquele final... oh, sim!... naquele final, porque, em suma, o conto só viveria para justificar a exibição daquela joia de “celinio lavor”. E logo abaixo o seu nome por extenso: Ernesto da Cunha Olivais.

Esse remate furtado ao xará d’A maravilha insinuou-se aos poucos na consciência de Ernesto como coisa muito sua, propriedade artística indiscutível.

A maravilha, ora! Um miserável caco de livro cuja existência ninguém conhecia...

Plágio? Como plágio? Por que plágio? É tão comum duas criaturas terem a mesma ideia... Coincidência apenas... E, além disso, quem daria pela coisa?

Ernesto era literato.

“Fazer literatura” é a forma natural da calaçaria indígena. Em outros países o desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui beletra. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de literatura, onde se adjetiva sonoramente uma aparência de ideia, sempre feminina, sem pés e raramente sem cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma. A gramática sofre umas tantas marradas, os tipógrafos lá ganham sua vida, as beldades se saboreiam na cândi-adjetivação e o sujeito autor lucra duas coisas: mata o tempo, que entre nós em vez de dinheiro é uma simples maçada, e faz jus a qualquer academia de letras, existente ou por existir, de Sapopemba a Icó.

Ernesto não fugira à regra. Em moço, enquanto vivia às sopas do pai à espera de que lhe caísse do céu amanuensado, fundara A Violeta, órgão literário e recreativo, com charadas, sonetos, variedades e mais mimos de Apolo e Minerva. Redigiu depois certa folha “crítica, científica e literária” com dois tt, O Combatente, que morreu aos sete meses, combatendo a gramática até no derradeiro transe. Compôs nesse intervalo, e publicou, um livro de sonetos, cuja impressão deu com o pai na miséria.

Incompreendido pelo público, que não percebia o advento de um novo gênio, Ernesto amargou como peroba da miúda, deixou crescer grenha e barba, esgrouviou-se, virou-se e disse cobras cascavéis do país, do público, da crítica, de José Veríssimo e da “cambada” da Academia de Letras. Citava amiúde Schopenhauer e Kropotkin, mostrando tendências para saltar dum pessimismo inofensivo ao perigoso niilismo russo. Foi quando o pai, farto das atitudes teatrais do filho, meteu-o numa roda de guatambu e pô-lo fora de casa com um valente pontapé:

— Vá ganhar a vida, seu anarquista de borra!

Ernesto, jururu, achegou-se a um tio influente na política e afinal cavou o empreguinho. No empreguinho amou, casou e tomou a seu cargo a seção “Conselhos Úteis” d’O Batalhador. Estava nisso quando ventou, choveu, entrou no sebo, pilhou A maravilha e patinhou como Hamlet no pego da indecisão, até que... Ernesto, em tiras de papel de Governo, lançou em belo cursivo um lindo começo bem arredondado:

“Era por uma dessas noites de abril, em que o céu recamado de estrelas lembra um manto negro com mil buraquinhos...”

Na roda de orçamentívoros que domingueiramente bebericavam o chá com torradas de dona Eucaris, todos afinados pela cravelha do Ernesto — vítimas imbeles da incompreensão —, o conto estampado n’O Lírio causou agradável surpresa. O João Damasceno foi o primeiro a dar-lhe um abraço num vai e vem de café.

— Olha, li o teu “Never more” n’O Lírio. Esplêndido! O final, então, divino! Tens miolo, meu caro! Pagas o chope?

Nesse dia Ernesto contou à esposa toda a vida do João, terminando cismático:

— É um caráter, Eucaris, um nobilíssimo caráter...

O capitão Prelidiano, chefe da sua seção, foi comedido e pausado como convinha à eminência do seu tamanco:

— Li o seu trabalho, senhor Ernesto, e gostei; termina com brilhantismo; continue, continue...

E o Claro Vieira? Fora brutal, esse.

— Que ótimo fecho arranjaste para o teu conto! O resto está pulha, mas o final é un morceau de roi!

O que nessa noite dona Eucaris ouviu relativo ao caráter baixo, infame e vil do Claro...

Ernesto entrou-se de receios. Pareceu-lhe que o Claro estava no segredo do “encontro de ideias”. Como medida de precaução deu busca aos sebos em cata de quanto exemplar d’A maravilha empoava por lá. Encontrou meia dúzia, adquiriu-os e queimou-os, com grande assombro de dona Eucaris, que duvidou da integridade dos miolos maritais ao vê-lo transfeito em Torquemada de inocentes brochuras carunchosas.

Mas nem assim sossegou.

— Quem me assegura não existirem outras, espalhadas aí pelas bibliotecas públicas? Se ao menos houvesse eu variado a forma, conservado apenas a ideia...

Fora audacioso, não havia dúvida. Fora tolo, pois não.

— Sou uma besta, bem mo dizia o pai...

Ernesto arrependeu-se do plagiato — sim, porque, afinal de contas, vamos e venhamos, era um plágio aquilo! Sua consciência proclamava-o de cabeça erguida, reagindo contra as chicanas peitadas em provar o contrário. E Ernesto arrependia-se, sobretudo por causa do “Dizem...” d’O Cromo. Constava ser Claro o enredeiro daquelas maldades — e Claro era impiedoso na mofina. Sabia revestir as palavras dum jossá urente de urtiga.

Fizera mal, sim, porque, afinal de contas, um plágio... é sempre um plágio.

Quando no domingo seguinte recebeu O Cromo, tremeu ao correr os olhos pelo “Dizem...”. Mas não vinha nada e respirou. No “Recebemos e Agradecemos” havia boa referência ao conto, muito elogiosa para o remate.

Também A Dalila desse dia trouxe algo: “O conto do senhor F. é um desses etc. etc. O final é uma dessas frases que chispam beleza helênica etc.”.

— O final, sempre o final! Estão todos apostados em fazerem-me perder a paciência. Ora pistolas!

Ernesto deblaterou contra os jornalistas, contra os amigos, contra os dez exemplares d’O Lírio em seu poder — dez arautos do seu crime. E queimou-os. Na repartição, a um novo elogio do Damasceno Ernesto rompeu desabridamente.

— Ora vá ser besta na casa da sogra!

Damasceno abriu a boca.

Nas palavras mais inocentes o pobre autor via alusões irônicas, diretas, claras, brutais. Num simples “bom dia” enxergava risinhos de mofa. O próprio capitão Prelidiano, honestíssima cavalgadura incapaz de ironias, afigurava-se-lhe o chefe da tropa.

Conspiravam contra ele, não havia dúvida.

Ernesto pôs-se em guarda. Fugiu dos amigos. Deu cabo do mate domingueiro. Não podia sequer ouvir falar em literatura, o assunto dileto de tantos anos. Emagreceu.

Dona Eucaris, meditabunda, matutava:

— Serão lombrigas?

E deu-lhe quenopódio às ocultas.

— Afinal...

Afinal? É o diabo ser a vida tão pouco romântica como é! Os casos mais interessantes descambam a meio para o mais reles prosaísmo. Este do Ernesto d’Olivais, por exemplo. Merecia fim trágico, duelo ou quebramento de cara. Quando nada, uma remoçãozinha a pedido. Mas seria mentir. Nem toda gente encontra, como Ernesto, remates de estrondo à mão.

É o caso deste caso.

Ernesto adoeceu, mas sarou. O quenopódio revelou-se um porrete para o seu mal. Depois, com o decorrer do tempo, esqueceu o plágio. Os amigos esqueceram o “Never more”. O Lírio morreu como morrem Lírios, Dalilas e Cromos: calote na tipografia. Ernesto engordou. Já é major. Tem seis filhos. Continua a fazer literatura — clandestinamente, embora. E, se encontrar a talho de foice um novo final de estrondo, plagiará de novo. Moralidade há nas fábulas. Na vida, muito pouca — ou nenhuma...

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

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