— Quer comprar o meu banco? Ele não está à venda.
Falava com superioridade de banqueiro que se sabe forte na praça, capaz de resistir à pressão de grupos econômicos poderosos. Tornou-se arrogante:
— Não vendo ele de jeito nenhum. Já recusei muitas propostas. Por que havia de vender? Gosto dele, não vai mudar de proprietário enquanto eu for vivo.
— Perdão, eu não queria comprar.
— Queria então o quê?
— Queria permissão para ver. Estou estudando mobiliário barroco, e soube que o senhor tem em casa uma peça valiosa.
— Valiosa? Pra mim ele não pode ser avaliado em cruzeiros. Nem em dólar, que aliás hoje não é mais lá essas coisas. O senhor quer ver apenas?
— Ver e, com sua licença, fotografar.
— Ah, fotografar pra quê? Pra botar no jornal?
— Não trabalho em jornal.
— Então, trabalha pro governo, já vi tudo. Vem ver o meu banco, tira retrato, faz relatório, depois, pimba: o governo desapropria o meu banco por essa tal de utilidade pública. Muito bonito.
— O senhor está completamente enganado. Não sou funcionário público, sou estudante e trabalho no escritório da Light. Olhe aqui as minhas carteiras.
— Carteiras? Carteira não prova nada.
— Bem, se não acredita…
— Prefiro acreditar na sua cara, que me parece de gente de bem. Pode entrar.
A salinha era pobre, só o banco impunha sua classe, misturado a trastes sem estilo.
— Século XVII, no duro. Joia.
— Eu sei, eu conheço o que é meu.
— O senhor permite que eu tome as medidas?
— Pra que tirar medida? Não chega tirar retrato?
— Para documentar bem a peça. Vou fazer um sucesso danado lá na Escola, com o trabalho sobre este banco.
A desconfiança voltou a acinzentar os olhos do dono:
— Sei não. Este seu interesse pelo meu banco…
— O senhor está pensando que eu vim a mando de algum antiquário? Dou minha palavra de honra que faço uma pesquisa escolar.
— Bom, pode tirar as medidas.
O rapaz aproximou-se, alisou o couro lavrado, com carinho. Banco de igreja nordestina, jacarandá venerando, oito pés retorcidos, duas traves torneadas, como é que um tesouro desses foi parar naquela casinha vulgar de Madureira?
— Vou dar ao senhor cópias das fotos.
— Não carece, moço. Prefiro olhar pro meu banco do que olhar pro retrato dele.
— O senhor… posso saber como essa coisa linda veio ter às suas mãos?
— Olha só a curiosidade dele. Eu não falei? Agora tem fiscalização de móveis na casa da gente?
— Não precisa responder, é claro. Está se vendo que isto é um bem de família, o senhor herdou de seu pai.
— E meu pai de meu avô. Meu avô do pai dele, ou da mãe, sei lá. Negócio muito do antigório.
— Mas este banco não é do tempo do seu bisavô. É muito mais antigo.
— Como é que eu posso saber quem foi a primeira pessoa da minha família que possuiu este banco? Não sou adivinhão.
— Bem, ele saiu duma igreja.
— Isso eu sei.
— Não estou duvidando de sua família, claro. Absolutamente. Mas seus pais não lhe contaram nada, nada, não lhe falaram de uma tradição da família em torno deste banco?
Ficou pensativo, coçando a testa.
— Parece que tinha um padre…
— Lógico que tinha um padre.
— Vou confiar no senhor. Negócio perdido na fumaceira do tempo, né? a gente pode contar.
— Isso.
— Uma dona da nossa família era casada com ele. Naquela base, entende? O padre morreu, a comadre guardou o banco de lembrança. O senhor vê que este banco é sagrado. Não vendo ele pra Onassis nenhum. Ninguém tem o direito de sentar nele. Nem eu. Sou pobre mas sustento a honra do passado. Agora que já sabe tudo, o senhor aceita uma xicra de café coado na hora?
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.
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