quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Luiz Poeta (Urutu)


A Maria-Fumaça partiu sonolentamente, arrastando-se, soltando fungados abafados até sumir na primeira curva quilômetro adentro, margeada pelo verde da Mata Atlântica.

De uma das janelas de madeira, a mãozinha pálida de Angélica era um lenço miúdo e frágil acenando a esmo. Depois, o silêncio, o ermo se instalando gradativo... no coração.

Um pio de juriti, mugido longe de vaca desgarrada, tiro de bala de caça no meio da mata, latido de cão lebreiro e o talo de bambu pingando água mineral nas pedras da lagoinha.

A bota esmagou folhas secas no primeiro passo, até que o caboclo sumiu no mato denso. 

O sol perfurava os cipós entrelaçados e alumiava de manso, acordando os insetos rasteiros de uma inércia de sombras geladas.

Ele andava sem pressa. No ombro, a espingarda, o embornal nas costas suadas, o facão e o punhal atados à coxa. Pensava em Angélica... cantando cantiga de roça, o riso fácil e brejeiro por trás daquele silêncio tão bonito... esfregando roupa no riacho, cintura apertada no vestido de chita, cabelo vazando loirinho do lenço encarnado...

Eram estalos de folhas sob suas botas.

Preás, lagartos e serpentes rasteiras mexiam no capim–navalha, mas o pé pisava fundo e rasteiro no sabugo de manga jogado a esmo pelos macacos.

Angélica na cabeça.

O rosto avermelhado nas bochechas e o narizinho de porcelana, as argolas vermelhas nas orelhas combinando com o lenço, descalça, o vento soprando livre e gelado, descobrindo as pernas delas… branquinhas...

Sonambulando o dia, ele seguia no sem-destino dos fatos, a mão arrancando as folhas de goiabeira, os olhos sobre o tiziu pretinho saltando no arame farpado.

Então, o apito longe, mexendo com o abandono.

Nunca mais Angélica tirando o esmalte, lixando a unha, ouvindo estação da cidade no radinho…

- Frita esse bagrinho, Anja ! Fresquinho ! Peguei na curva do rio, embaixo da sombra do pé-de-jaca.

Ela ia largando o bordado - sempre rindo Angélica - às vezes meio maluca correndo atrás de mim, mas boa na cozinha e sensual no amor.

Também... quem mandou provar da caninha da fazenda? Eta cachacinha sem-vergonha, sô!

Ela não gostava mesmo era do bafo do álcool, dissera várias vezes a ele, fazendo dengo. Mas ele queria amor, afagos, carinhos, quis deitar com ela sujo de rua, suado, seboso...

– Ocê nunca me bateu... era Angélica... a mão alisando a face vermelha de espanto e medo.

E Anja fugiu. Dormiu no mato; ele, no tapete de palha... vomitado.

Dia seguinte, ela voltou, picada por muriçoca, riscada de murubu, inchada de bofetada. O homem se desculpou, pediu, implorou, chorou... ela não disse nada, apenas arrumou as roupinhas delicadas em uma mala rota… profundissimamente silenciosa, os olhos mirando o nada.

Meio-dia. Inexorável, o trem gemendo no trilho - menos que no peito dele, respirando arrependimento e mudos monossílabos sem perspectiva de palavras... Angélica embora.

Aí... a urutu !

Aquele chocalho ele conhecia. Urutu das grandes, prima da cascavel, mexendo nas folhas secas da jabuticabeira.

O caboclo estacou mirando o réptil. Belo espécime… seduzindo, hipnotizando, deslizando na terra preta, sonolentamente... a língua dividida no meio, a cabeça levantada a meio metro e recuando... como um elástico prestes a arrebentar-se… apavorante...

Outro apito. Talvez outro trem. Por uns segundos, ele esqueceu-se da víbora, demarcando o território num último aviso.

Num átimo, pensava em Angélica mexendo no violão, tocando guarânia… esfregando o lençol, cozinhando galinha-d'angola com batata inglesa, sempre cantando, assobiando cantiga de roda...

Angélica nunca mais, amor nunca mais… vida... nunca mais.

E a urutu ameaçava, esperando apenas um movimento para o golpe fatal, o voo repentino inevitável, as presas de três centímetros aparecendo palidamente molhadas pelo veneno pingando gotas mortais na boca amarela, escamosa... os olhos hipnoticamente diabólicos percorrendo a anatomia da presa, aguardando um pequeno movimento...

Também, Que importava agora uma picada? Sem Angélica, nada mais interessava. Seria morte certa, gradativa, de tédio, solidão, tristeza... abandono.

Todavia, a vida respirava em volta. O vento no capim, os zumbidos dos insetos nas flores perfumando o ar, a água escorrendo do olho-d'água.

A mão foi descendo cínica, milimetricamente rumo à faca na coxa, a cobra movendo-se magnética, expectante, perigosamente muda… o chocalho parara.

Os dátilos atingiram o cabo da arma, esta foi sendo levantada quase que imperceptivelmente, como um ponteiro de horas, a urutu preparando-se para o impulso fatídico, sinuosamente bela...

A faca foi finalmente segura, agora era ser mais rápido que o relâmpago - era como matar uma mosca com um tapa, num milésimo de segundo.

E Angélica? Onde Angélica? ...olhando a ravina? Vendo a pequenina choupana no vale, deserta, calada, triste... sozinha?

Um estalo de mato perto.

A serpente mexeu-se perigosamente.

Num canto do olho, o animal, no outro, o ruído; as pupilas movimentando-se tímidas e preocupadas com o inusitado rumor.

Mas não tardou a repentina imagem saindo de dentro da lágrima; era ela, vivinha, o mesmo vestido rodado, a mala apertada contra o peito, presa por aqueles bracinhos de porcelana, os cabelos dourando a tarde, soltos no vento frio da capoeira...

Anja! Angélica!

E a cobra?

Foi uma fração.

A lâmina riscou o ar simultânea ao bote. Cabeça prum lado, corpo pro outro, o punhal cravado no tronco da jabuticabeira, urutu dividida no rio de sangue riscando o caminho, o veneno escorrendo gosmento das mandíbulas abertas.

O jagunço sentou-se num toco de galho de jatobá, a respiração afundando no peito, os olhos apunhalando - como pétala - a pálida mulher estática mas firme - mulher do mato não desmaia à toa.

Ela olhava a serpente entre admirada e apavorada, serenando aos poucos, a pele amorenando com suavidade sob a sombra das árvores.

- Por que voltou?

Ela mudou de conversa.

- Quase que ela lhe pica.

- Era picar e matar.

- Ocê num viu?

- Como ia ver? ...só via teu corpo, tua mão sumindo na curva... acenando adeus.

- Mas eu voltei.

Ele não acreditava no que ouvia.

- Voltou?

- Voltei.

- Pra ficar?

- Pra ficar,

Ele estava perplexo.

- Mas eu te bati, eu… bebi e..

- Não vai bater mais.

Pausa.

...e nem beber mais.

O jagunço levantou-se aos prantos, os olhos embotados de uma ternura indizível.

- Eu te juro, nunca mais vou beber, nunca mais vou brigar contigo, nunca mais vou te bater... nunca mais.

- Ocê jura?

- Por essa luz que me alumia. Quero ser picado por cem urutus se um dia te puser a mão outra vez.

- Então, vão bora.

- E a urutu?

- Traz o couro, vai dar um bom cinto.

Ele limpou a lâmina do punhal na folha de bananeira, após cortar o couro do réptil.

Abraçou a mulher e seguiu com ela rumando pela trilhazinha que dava até a cabana.

- Por que voltou ?

- A ponte quebrou.

Não falaram mais nada. Não carecia.

A noite desceu serenamente escurecendo a casa. Na janela do quarto de casal, apenas luzinha de lampião... bem fraca.

[Texto Premiado pela Academia Niteroiense de Letras]

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

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