quinta-feira, 17 de outubro de 2019

David Martins (O Alcaide do Castelo de Faria)


Convido-o, caro leitor, a empreender uma viagem no tempo. Assim, imagine-se transportado ao ano de 1373 da era cristã. A paisagem que o rodeia é aquela que ainda hoje é típica do Norte de Portugal, serranias atrás de serranias, ora áridas e pedregosas, ora vastidões de prados e florestas a perder de vista na lonjura do horizonte.

No cimo de um ermo monte, ergue-se uma fortaleza de grossas e altas muralhas de escuro granito encimadas de torres e ameias. Não lhe faltam alçapões, postigos, a ponte levadiça e o fosso circundante.

Você encontra-se diante do Castelo de Faria, uma construção fortificada muito antiga.  Às pedras dos seus robustos muros não faltam recordações de glórias passadas.

O Reino de Portugal é governado pelo rei Dom Fernando, um homem cujo caráter não prima nem pelo cumprimento das promessas feitas nem pelos compromissos assumidos. Foi, assim, que em vez de se casar com a filha do rei de Castela conforme tinha sido acordado entre os dois soberanos, Dom Fernando decidiu casar com Leonor Teles, uma mulher muito bela, mas casada, que se tornara sua amante.

Com o pretexto de vingar tão grave e ofensiva afronta pela quebra do contrato, o exército do rei de Castela invade o território de Portugal, atravessando a fronteira em locais distintos. Um desses batalhões castelhanos composto por muitos soldados, uns a pé, outros a cavalo, entra pela fronteira Norte. À sua passagem, os soldados vão incendiando, saqueando, violando e matando tudo e todos os que se deparam no seu caminho, deixando atrás de si um rasto de destruição e sofrimento nos aldeões e camponeses que não têm culpa das desavenças contratuais entre os dois reis vizinhos.

Os exércitos particulares comandados pelos senhores feudais daquelas terras, súditos do rei de Portugal, não são suficientes para fazerem frente aos espanhóis, a quem nada nem ninguém consegue deter o avanço por terras de Portugal. Num destes confrontos participou o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno Gonçalves, que caiu prisioneiro das tropas castelhanas.

Na ausência do alcaide, o castelo é governado pelo seu filho. O pai teme que, sabendo da sua desgraça, o filho ofereça o castelo ao inimigo para resgatar a liberdade do seu progenitor. Este receio fez com que o velho alcaide se lembrasse de montar um ardil para impedir que uma tal situação viesse a acontecer: Nuno Gonçalves pede ao comandante das tropas castelhanas que o conduza até às muralhas do seu castelo para que ele fale ao filho e, assim, possa convencê-lo a entregar a fortificação sem derramamento de sangue para nenhum dos lados.

Diante dos seus olhos, caro leitor, desfila agora um numeroso grupo de homens que acompanha o velho alcaide. Chegam às cercanias do castelo e formam como que um cordão humano que rodeia completamente a construção. O exército vitorioso prepara-se para tomar posse do castelo, conforme lhe prometeu o prisioneiro.

Agora você usa as roupas de lã, iguais às de todos os habitantes da aldeia de Faria. São vestimentas grosseiras de gente que apenas vive daquilo que a terra lhes dá. De facto, neste momento, você é um deles. Vê brilhar ao longe, tal como os seus vizinhos, o metal das armaduras dos soldados inimigos, refulgentes sob a luz intensa do Sol, e as suas coloridas bandeiras que esvoaçam ao vento. Você, juntamente com todos os seus companheiros, homens, mulheres e crianças, está assustado e juntamente com eles, todos abandonam os campos e as vossas casas e correm a refugiar-se dentro das muralhas, num terreiro onde toscas choupanas de teto de colmo se apoiam umas nas outras.  Todos pensam que aí vão encontram proteção contra a violência e a brutalidade que sempre acomete os homens quando lhes põem uma arma nas mãos e lhes dão impunidade para cometerem toda a espécie de atrocidades.

Sobre as muralhas, os sitiados desenvolvem intensa atividade. Os homens que estão de atalaia nas torres vigiam atentamente os movimentos do inimigo, enquanto outros correm ao longo das ameias, colocando-se em posições estratégicas de defesa.

Um grupo de castelhanos armados aproxima-se das muralhas levando consigo o velho alcaide. Os besteiros do castelo, escondidos por detrás das ameias, retesam as bestas e apontam-nas na direção da comitiva. Os homens que acionam as armas de arremesso e outros engenhos bélicos preparam-se para cumprir a sua tarefa. 

Do grupo de combatentes castelhanos, destacou-se um arauto que se aproximou das muralhas exteriores.  Nas ameias as bestas inclinaram-se para o chão e ouviu-se o ranger das máquinas de lançar projéteis. Fora isto, o silêncio é profundo.  Por fim, ouve-se, ao longe, a voz grossa e altissonante do arauto que chama o filho de Nuno Gonçalves, bradando-lhe que saia do castelo e vá até junto de seu pai que quer falar-lhe.

O filho do velho alcaide, de nome Gonçalo Nunes, aparece no alto da muralha exterior e responde-lhe:

- Diz a meu pai que eu o espero aqui e que Nossa Senhora o proteja.

O arauto regressa para junto dos seus superiores e, após alguma agitação entre eles, o grupo aproxima-se da muralha ladeando o alcaide-mor que fala ao filho:

- Sabes tu, meu filho, de quem é este castelo?

- Sei que é de El Rei de Portugal, que o confiou à vossa guarda.

- Então se sabes, com Judas o traidor sejas tu sepultado no inferno se os castelhanos entrarem nele sem passar primeiro por cima do teu cadáver.

Compreendendo o sentido do diálogo entre os dois, logo ali o comandante castelhano ordena que matem o velho alcaide, que caiu trespassado por muitas espadas.

- Defende-te, alcaide! - tem ainda forças para gritar ao filho o pai moribundo.

O novo alcaide corre como um louco ao longo das muralhas, gritando por vingança.

Do alto das muralhas chovem flechas sobre os soldados castelhanos, que atingem mortalmente muitos deles.

O batalhão castelhano reúne todas as suas forças e ataca o castelo. As casas de colmo onde os mais desprotegidos, você e os seus vizinhos da aldeia se abrigaram, começaram a arder, resultado das flechas incendiadas desferidas do exterior do castelo. A confusão é enorme. Por todo o lado se ouvem os gritos das mulheres, o choro das crianças, as imprecações dos velhos. Um homem em chamas sai a correr, desvairado, dos abrigos de colmo e rebola-se no chão a gritar por socorro. Despejam-lhe baldes de água em cima, mas tudo o que fica é um corpo enegrecido, a estrebuchar, agonizante. Os gritos de terror dos feridos elevam-se no ar juntamente com os rolos de fumo do incêndio e o forte e repugnante cheiro a carne carbonizada.

O jovem alcaide não consegue esquecer a terrível visão do seu pai, morto a golpes de sabre, nem as últimas palavras que ele lhe gritou antes de entregar a alma ao Criador: - “Defende-te, alcaide!”

O cerco dura vários dias. A carnificina de ambos os lados das muralhas foi atroz, o sofrimento é indizível. Tanta dor e destruição que razão alguma justifica. Você e todos dentro das muralhas deambulam exaustos, esfomeados e com sede, revoltados por terem sido os peões no tabuleiro de xadrez onde se jogaram questões que não vos dizem respeito. O orgulhoso comandante das tropas invasoras acaba por ver a sua soberba abater-se contra os muros do castelo de Faria, quando o desalento atinge os poucos homens que lhe restam. 

Você e os seus companheiros de infortúnio regressam à aldeia de Faria onde encontram as vossas casas assaltadas, o gado tresmalhado pelos campos ou roubado para alimentar os sitiantes. O desânimo é grande, mas a vida tem que continuar e está tudo para refazer quase a partir do nada.

Passados dias, o jovem alcaide recebe um mensageiro do rei que muito o louva pela sua tenacidade e feitos guerreiros na defesa do castelo. Sensível e impressionável, ele não consegue esquecer as imagens horrorosas, dignas do Inferno, que durante dias presenciou. Troca as vestes de cavaleiro pelas de monge, troca o mundo conturbado regido pelas leis dos homens pela paz do convento e da oração.

Terminou, caro leitor, a sua viagem no tempo. Você está de regresso ao presente. Do sofrimento e da glória deste acontecimento não ficou para a posteridade uma pedra que os testemunhe, apenas sobrevivem ainda na memória dos historiadores.

Fonte:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar

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