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Ao atravessar, naquela tarde, a secular praça de El-Madhi, avistei um jovem e elegante cheique, de turbante verde, que saía do "ha-mã" (1) acompanhado de dois escravos negros. Mal pousara em mim os olhos, o desconhecido veio ao meu encontro e saudou-me à maneira clássica dos árabes nobres:
- Allah badich, ia sidi! Deus vos conduza, senhor!
- Katter quhairag - respondi, agradecendo. - Que Allah torne felizes os dias de tua vida, ó jovem!
E certo de que não me seria difícil, num rápido "haddis" (2) descobrir a identidade daquele amável muçulmano, disse-lhe com a intenção de provocá-lo a uma ligeira palestra:
- Já sabes, meu amigo, que amanhã, ao nascer do sol, se Allah quiser, partirei para Basra chefiando a grande caravana de mercadores?
- Já sei, sidi - respondeu-me. - Estou bem-informado de todos os recursos de que dispõe a nossa caravana!
E o cheique acentuou bem a expressão "nossa caravana", fitando em mim os seus olhos vivos, com o disfarçado desejo de ler nos meus a surpresa que suas palavras deveriam causar-me.
Ualá! Nossa caravana? Eu conhecia todos os mercadores, guias e cameleiros; não havia, entre os homens que me acompanhavam - desde o beduíno sem nome ao mais orgulhoso chamir (3) um só que me fosse estranho. Como admitir que aquele desconhecido pertencesse ao número dos "meus viajantes"?
- Sou o cheique Fauzi Jabor, auxiliar do sultão Al-Mamum! - disse-me. - Devo ir a Basra levar uma ordem secreta para o governador. O grão-vizir já não vos falou a meu respeito?
Sim, era verdade. Recebera, dias antes, do primeiro-ministro, uma ordem para conduzir até Basra um emissário do califa. Já não era, aliás, a primeira vez que me acontecia levar nos ricos cheqdefs (4) da caravana mensageiros, escribas e agentes da corte muçulmana.
- Sinto-me feliz, ó cheique - tornei eu - por saber que vou tê-lo como companheiro de jornada. Que as grandes alegrias e os violentos simuns nos encontrem sempre juntos. A amizade desinteressada dos nobres só pode honrar aos aventureiros do deserto!
E, enquanto conversávamos alegremente como velhos amigos, íamos caminhando, lado a lado, pelas ruas mais movimentadas. A pequena distância, os dois escravos negros, os braços cruzados sobre o peito, nos acompanhavam solenes.
- Em que pretendeis ocupar, afinal, as vossas horas, em Bagdá, até o momento da partida? - perguntou-me o cheique.
- Penso em despedir-me de alguns amigos.
- Despedidas? - É tarde demais para tão ingrato passatempo! Informado pelos meus auxiliares de que seria obrigado a partir amanhã, à hora do "sefer" (5) já apresentei aos bagdalis (6) o meu salã (7) da ausência. Vou ver agora a famosa bailarina hindu que chegou ontem de Mossul. Dizem que é linda como a gazela. Queres ir comigo, chefe?
E vendo-me indeciso, insistiu, risonho, puxando-me pelo braço:
- Emchi narruhh! Vamos! Emchi narruhh!
Há duas coisas que o árabe não sabe recusar: a tâmara quando é doce, e o convite interessante quando é amável!
- Emchi naíhbad! - respondi. - Vamos!
* * *
A escrava que nos recebeu à porta, ao ouvir o nome do cheique, deixou-nos entrar imediatamente e conduziu-nos por um longo corredor, até uma sala espaçosa, ricamente
decorada, onde já se achavam três outros visitantes.
Fauzi Jabor conhecia os presentes e a cada um deles dirigiu um afetuoso sala:
- Masa al-qhair, cheique!
- Kif el-solha, cheique!
Sentei-me numa grande almofada. Uma circassiana trouxe-me belo narguilé de prata com a brasa já preparada. Sentia-se no ar um cheio embriagador de fumo e haxixe.
Um dos visitantes, depois de trocar algumas palavras com um velho que se achava a seu lado, descruzou, lentamente, as pernas, levantou-se vagaroso como um elefante e veio acomodar-se junto de mim. Era barrigudo e disforme; usava turbante alto, malfeito, sob o qual aparecia um rosto redondo, esverdinhado, cheio de máculas escuras. Tinha os olhos vidrados, acéticos, tristonhos.
- Uma palavra, cheique - disse-me, quase em segredo. - És o chamir da grande caravana que parte hoje (8) para Basra?
- Julgo que sim - respondi, sem procurar disfarçar a má vontade com que mal o podia tolerar.
Insistiu, impertinente, com a voz cada vez mais elevada.
- Dize-me, então, que ordem misteriosa é essa que o jovem Fauzi Jabor vai levar ao governador de Basra?
- Lamento não poder informar-vos. Excelência (9) - retorquiu, abespinhado. - Não sou um "djin" (10), nem aprendi com os marabus da Pérsia a descobrir pela cor da lua o segredo das coisas ocultas. Posso assegurar-vos que nem mesmo o meu nobre amigo Fauzi Jabor conhece os termos da carta de que é portador. É uma ordem secretíssima do nosso amo e senhor, o glorioso califa Al-Mamum, Emir dos Crentes. Só Allah sabe a verdade!
O meu inquiridor fez-se cor de cal, levantou-se visivelmente contrariado e foi retomar o lugar em que se achava, rosnando contra mim ameaças descabidas:
- Algum dia, "chamir", a tua discrição será causa de uma desgraça!
E ia eu intimamente desejar que a alma daquele estúpido fosse presa de Cheitã (11), o Execrável, quando Fauzi Jabor, o cheique, surgiu conduzindo, orgulhoso, pela mão, a formosa dançarina hindu.
Ao vê-la, fiquei deslumbrado. Jamais o destino fizera com que se me deparasse na vida criatura mais sedutora. Não fosse a barreira do pecado, não teria dúvida em elegê-la, naquele mesmo instante, a sexta mulher perfeita do Islã (12).
Fauzi Jabor não fazia empenho em ocultar que estava apaixonado pela infiel. E quem seria capaz de censurá-lo? A dançarina tinha, a meu ver, as treze perfeições que Allah, o Clemente, concede às huris do Paraíso. Treze? Treze, não. Treze menos uma, com certeza!
Com espanto dos circunstantes, a bailarina apontou para mim com seu braço nu:
- É aquele, Fauzi, o teu amigo chefe da grande caravana?
Levantei-me, respeitoso, e disse-lhe:
- Lála (13), não passo de um humilde beduíno do deserto. Seria, entretanto, capaz de enfrentar uma legião de panteras, se depois de tal proeza houvesse de ter por prêmio, a honra de ser incluído no número de vossos escravos!
Nazira - assim se chamava a bailarina - sorriu, lisonjeada.
- Mach Allah! Se me permitissem os distintos amigos aqui presentes, eu gostaria de dizer algumas palavras, em segredo, ao chamir da caravana!
- Pois não! Pois não! - exclamaram os cheiques.
Fauzi Jabor disse-me:
- Acompanhai Nazira, ó beduíno feliz! Ela confidenciou-me que tem um pedido a fazer-vos!
Atravessei a sala contando meus passos pela indizível timidez que me dominava. Ao passar junto do indiscreto barrigudo esverdinhado, o repelente cheique segurou-me pelo braço e bafejou no meu ouvido:
- Cuidado, chamir! Essa mulher tem um mistério qualquer na vida! Cuidado!
Levou-me a bailarina para um aposento vizinho. Uma escrava persa, com gestos lânguidos, ofereceu-me, num prato dourado, frutas, doces secos e um delicioso vinho de Chipre.
A bailarina, cruzando as pernas, numa atitude graciosa, sentou-se a meu lado. Um perfume esquisito evolava-se de rico hattarak (14); pequenina lâmpada azul, sobre um camelo de bronze, derramava pelas coisas uma aparência de mistério.
Chegava vagamente aos meus ouvidos o som triste de um alaúde.
- Já te disseram, chamir - começou Nazira, num tom mavioso de paciência - que eu tenho na vida um mistério? É inútil negar. Ouvi perfeitamente a insinuação daquele detestável chacal, que desde Mossul me vem perseguindo com suas toleimas. Infelizmente não é mentira. Pesa sobre a minha existência o tormento de um segredo. Já colhi a teu respeito, chamir, várias informações; estou certa de que és honrado, valente e discreto.
- Senhora! Outra recompensa não quero senão os elogios que brotam dos vossos lábios bondosos!
Nazira prosseguiu:
- Preciso do teu auxílio, chamir. E para que possas, com segurança, dispensar-me o teu amparo, é mister que conheças previamente o tão falado "mistério" de minha vida.
- Aos treze anos - começou, com suave mágoa - casei-me, por imposição de meu pai, com um gramático de Medina, homem perverso, avarento e sem escrúpulos. Antes mesmo que nascesse o nosso primeiro filho, meu marido vendeu-me a um aventureiro sírio, chamado Kaslã, que exibia pelas cidades bailarinas escravas. Foi então que aprendi o triste ofício que hoje exerço. Quando nasceu o meu filho, resolvi consultar sobre o seu futuro um certo marabu de Medina, que sabia ler na areia o destino das criaturas. Disse o marabu: - "Tua beleza, mulher, será a causa da morte de teu filho!" Chorei, desesperada, ao saber que o Destino havia escrito na página de minha vida tão trágico sucesso. Dizem os cristãos que é possível, às vezes, alterar-se a marcha dos acontecimentos. Que fazer? Mutilar-me? Sim, pensei nessa solução desesperada. Com dois ou três golpes seguros de punhal eu conseguiria, como uma selvagem africana, deformar para sempre as linhas perfeitas do meu rosto. Kaslã, informado desse hediondo projeto, ameaçou-me de morte! Por Allah! O gramático avaliara a minha beleza em vinte camelos de sela! - "Se tens medo do Destino - dizia-me - separa-te de teu filho. Manda-o para outra cidade, para outro país. Longe de ti ele estará salvo da previsão do marabu; a tua beleza não lhe poderá fazer mal algum". Segui tal conselho, que me pareceu razoável e certo. Mandei meu filho para Basra com alguns bons peregrinos que regressavam de Meca. E desde esse dia nunca mais tornei a vê-lo. Sei que vive ainda; é forte, e belo! Tem agora dezoito anos; chama-se Tasib Zalã e é muito estimado pela honrada família que o adotou.
- E agora, chamir - concluiu Nazira, com voz trêmula - que estás de posse do grande segredo de minha vida, vou dizer-te qual o favor que espero merecer da tua boa-vontade. Quero que procures em Basra meu filho Tassib; perguntarás por ele ao muezim da mesquita de Shara-Sawa. A meu filho entregarás esta pequena caixa na qual reuni, durante dez anos, algumas economias. Com esse auxílio meu filho poderá casar-se sem recear as mil dificuldades da vida.
E a bailarina colocou-me nas mãos uma pequena caixa repleta de moedas de ouro.
- Lála - exclamei - o filho querido receberá o prêmio da dedicação materna! Juro por Allah, o Exaltado, que empregarei todos os esforços a fim de fazer com que esta valiosa dádiva chegue às mãos daquele a quem é destinada!
E voltamos em silêncio para o salão. Fauzi Jabor e os outros cheiques divertiam-se com uma jovem escrava que cantava ao som de um alaúde um belo poema de Antar.
Todos os olhares convergiram, curiosos, sobre mim.
Assaltaram-me com desencontradas perguntas:
- Que te disse a bailarina? Qual é o mistério de Nazira? Que desejava ela, antes de partir a caravana?
- Não sei - respondia sempre aos importunos. - Não sei.
E não houve quem percebesse que eu escondia, sob o meu largo "keffié" de seda, a pequenina caixa cheia de ouro.
Nazira - a pedido dos cheiques - resolveu executar a chamada Dança do Dragão.
Aproximei-me de Fauzi e disse-lhe:
- Vou deixar-vos, cheique! Já vai adiantada a noite. Pouco falta para que o muezim chame os fiéis à primeira prece. Quero verificar se os camelos estão carregados, as tendas arrumadas e se os guias estão nos seus lugares.
- Está bem - respondeu-me o cheique. - Vou ficar aqui, neste delicioso refúgio, mais algum tempo. Na hora da partida - é certo - lá estarei com meus ajudantes e servos.
- Por Allah! Qualquer atraso será grande transtorno para a caravana!
A formosa dançarina, com seus trajes coloridos e vistosos, executava, diante de um grande tapete, onde aparecia a figura fabulosa de um dragão, uma das danças características da Pérsia antiga.
Tive a impressão de que o dragão fantástico rondava a bailarina, prestes a devorá-la. A fatalidade - dizia El-Hadira (15) - é como o dragão da lenda; cai de repente sobre a vítima para esmagá-la com as garras do Infortúnio!
* * *
A caravana estava pronta. Até os ajudantes de Fauzi Jabor, com os seus trinta e cinco camelos perfilavam-se já nos seus lugares.
Terminada a prece, disse aos guias da frente:
- Não é possível partir neste momento. O emissário do califa - pessoa da mais alta distinção, - ainda não chegou, mas não deve tardar. Sem ele a caravana não partirá. Esperemos.
Fauzi Jabor, entretanto, apesar do prometido, não aparecia.
Sentia-se que a impaciência agitava os beduínos. Um dos mercadores perguntou-me:
- Por quem esperamos, chamir? Será possível que a caravana fique o dia inteiro parado ao sol, à espera de um príncipe folgazão que se diverte com bailarinas?
Respondi-lhe, num tom áspero, que não admitia réplica:
- Aqui quem manda sou eu! Se não te serve a caravana, o deserto é livre! Podes ir!
E submissos, sem revolta, os homens por mim chefiados esperaram.
Infelizmente, porém, só no dia seguinte, ao pôr-do-sol, foi que Fauzi Jabor deixou a casa da formosa bailarina.
E a grande caravana, com um dia e meio de atraso, ganhou lentamente a estrada do deserto.
Os cameleiros resmungavam, maliciosos:
- A bailarina é bela! A caravana que espere! Os grandes albornozes brancos, soltos no ar, pareciam pássaros gigantescos que surgiam da terra.
* * *
Depois de uma jornada feliz - assim quis Allah, - entramos em Basra.
Havia, quando chegamos, na praça de Moalhim, um grande ajuntamento de populares. Informaram-me de que ali também se achava o governador Ahme-Ibn Makula, com seus auxiliares e escribas. Sem perda de tempo fui ter à presença do cádi, saudei-o respeitosamente e apresentei-lhe, em seguida, o chefe Fauzi Jabor, que se achava, então, a meu lado.
- Allah conserve o cádi! - exclamou o jovem Fauzi, aproximando-se. - O califa Al-Manum, Emir dos Crentes, ordenou-me que fizesse chegar às vossas mãos esta mensagem. Que Allah conserve o cádi!
O poderoso governador de Basra tomou da carta que o cheique trouxera, tirando-a com vagar do sobrescrito.
- Lamentável! - exclamou o governador, mal havia terminado a leitura do breve documento.
- Não posso infelizmente atender ao que determina aqui o glorioso califa Al-Mamum, nosso amo e senhor! Esta ordem chegou-me tarde às mãos!
- Como assim? - interroguei, assustado. - O atraso com que chegamos teria sido causa de alguma desgraça?
- É verdade, chamir - concordou o cádi.
- Lamentável! - exclamou o Governador, mal havia terminado a leitura do breve documento. Esta ordem chegou-me tarde às mãos.
- A mensagem que o jovem Fauzi Jabor trouxe de Bagdá era da maior importância; tratava-se de uma ordem do sultão para que fosse comutada a pena de morte de um condenado. O perdão do nosso generoso califa nada mais adianta; o infeliz prisioneiro foi executado hoje, pela manhã!
Naquele momento - sem que eu pudesse explicar o motivo -, um terrível pensamento atravessou-me o espírito. Era bem verdade que a famosa bailarina tinha sido, indiretamente, culpada da morte do condenado, pois fora ela quem, com seus encantos, prendera o cheique em Bagdá, retardando por muitas horas a partida da caravana!
- E como se chamava - perguntei - o infeliz que foi executado por não ter chegado a tempo a ordem do califa?
Um dos oficiais do cádi respondeu:
- Chama-se Tassib Zalã, o poeta, e era natural de Medina!
Ouviu-se um forte ruído metálico. Era a caixa de Nazira, que eu trazia oculta, presa sob o braço, e que por descuido meu caíra inesperadamente ao chão. As moedas de ouro espalharam-se pela areia. Fiz com que o valioso presente fosse repartido entre os pobres. Na verdade, a pessoa, a quem era destinado aquele ouro rutilante, não precisava mais das recompensas do mundo, pois já havia comparecido ao julgamento de Deus!
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Notas
1- Ha-mã – Casa de banhos.
2- Haddis - Conversa ligeira. Troca de palavras.
3- Chamir - Chefe de caravana.
4- Cheqdef - Espécie de palanquim, colocado sobre o camelo.
5- Sefer - Prece feita ao nascer do sol.
6- Bagdali - Indivíduo natural de Bagdá.
7- Sala - Saudação dentro do Islã.
8- Para os árabes a noite precede o dia. A noite do dia 7, por exemplo, começa ao pôr-do-sol do dia 6.
9- Excelência - Tratamento dado aos vizires do sultão. Aplicado a qualquer pessoa é ironia.
10- Djin - Gênio dotado de grande poder.
11- Cheitã - Demônio.
12- Segundo as crenças muçulmanas, as mulheres perfeitas foram em número de cinco, e figuram, imortais, no Alcorão.
13- Lála - Tratamento respeitoso; significa senhora.
14– Hattarak – Vaso especial em que se queimam perfumes.
15– El-Hadira – Antigo poeta árabe.
Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.
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