quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Moacyr Scliar (O ladrão)


Quem descobriu o ladrão na garagem foi o meu irmão mais moço. Veio correndo nos contar, e a princípio não queríamos acreditar, porque embora nossa casa ficasse num bairro distante e fosse meio isolada, era uma quinta-feira à  tarde e nós não podíamos admitir que um ladrão viesse nos  roubar à luz do dia. Em todo caso fomos lá.

Espiamos por uma frincha da porta, e de fato lá estava o  ladrão, um velhinho magro - mas não estava roubando  nada, estava olhando os trastes da garagem (que era mais um  depósito, porque há tempo não tínhamos mais carro). Rindo  baixinho e nos entendendo por sinais nós o trancamos ali.

À noite voltou a mãe. Chegou cansada, como sempre  - desde a morte do pai trabalhava como costureira - e resmungando. Que é que vocês andaram fazendo? - perguntou, desconfiada - vocês estão rindo muito.

Não é nada, mãe,  respondemos, nós os quatro (o mais velho com doze anos).  Não estamos rindo de nada.

Naquela noite não deu para fazer nada com o ladrão,  porque a mãe tinha o sono leve. Mas espiávamos pela janela  do quarto, víamos que a porta da garagem continuava trancada - e aquilo nos animava barbaridade. Mal podíamos esperar que amanhecesse - mas enfim amanheceu, a mãe foi  trabalhar e a casa ficou só para nós.

Corremos para a garagem. Olhamos pela frincha e ali estava o velho ladrão, sentado numa poltrona quebrada, muito desanimado.

Aí, seu ladrão! - gritamos.

Levantou-se, assustado.

Abram, gente - pediu, quase chorando - abram, me deixem sair, eu prometo que não volto mais aqui.

Claro que nós não íamos abrir e dissemos a ele, nós não  vamos abrir.

Me deem um pouco de comida, então - ele  disse - estou com muita fome, faz três dias que não como. 

O que é que tu nos dás em troca, perguntou o meu irmão  mais velho.

Ficou em silêncio um tempo, depois disse: eu faço uma  mágica para vocês. Mágica!

Nos olhamos.

Que mágica, perguntamos.

Ele: eu transformo coisas no que vocês quiserem.

Meu irmão mais velho, que era muito desconfiado, resolveu tirar a limpo aquela história. Enfiou uma varinha pela  frincha e disse: transforma esta varinha num bicho.

Esperem um pouco - disse o velho, numa voz sumida.

Esperamos. Daí a pouco, espremendo-se pela frincha,  apareceu um camundongo.

É meu - gritou o caçula, e se  apossou do ratinho. Rindo do guri, trouxemos uma fatia de  pão para o velho.

Nos dias que se seguiram ele transformou muitas coisas  - tampinhas de garrafa em moedas, um prego em relógio  (velho, não funcionava) - e assim por diante. Mas veio o  dia em que batemos à porta da garagem e ele não respondeu.  Espiávamos pela frincha, não víamos ninguém.

Meu irmão  mais velho - esperem aqui, vocês - abriu a porta com toda  a cautela. Entrou, pôs-se a procurar o ladrão entre os trastes:

- Pneu velho, não é ele... Colchão rasgado, não é ele... 

Enfim, não o achou, e esquecemos a história. Eu, particularmente, fiquei com certas dúvidas: pneu velho, não era ele?

Fonte:
Moacyr Scliar. Histórias da terra trêmula. SP: Vertente, 1977.

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