Que há um Deus para o namoro e outro para os bêbados está provado — a contrario sensu. Sem eles, como explicar tanto passo falso sem tombo, tanto tombo sem nariz partido, tanta beijoca lambiscada a medo sem maiores consequências afora uns sobressaltos desagradáveis, quando passos inoportunos põem termo a duos de sofá em sala momentaneamente deserta?
Acontece, todavia, que esses deuses, ao jeito dos de Homero, também cochilam: e o borracho parte o nariz de encontro ao lampião, ou a futura sogra lá apanha Romeu e Julieta em flagrante contato de mucosas petrificando-os com o clássico: “Que pouca-vergonha!...”.
Outras vezes acontece aos protegidos decaírem da graça divina. Foi o que sucedeu a Inácio, o calouro, e isso lhe estragou o casamento com a Sinharinha Lemos, boa menina a quem cinquenta contos de dote faziam ótima.
Inácio era o rei dos acanhados. Pelas coisas mínimas avermelhava, saía fora de si e permanecia largo tempo idiotizado. O progresso do seu namoro foi, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, tacitamente concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel. Uma das manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.
Inácio barbeou-se, laçou a mais formosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora. Levou consigo, entretanto, para mal seu, o acanhamento — e daí proveio a catástrofe...
Havia mais moças na sala, afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a benévola curiosidade a que faz jus um possível futuro parente.
Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo um tanto desmontado com o papel de galã à força que lhe atribuíam. Uma das moças, criaturinha de requintada malícia, muito “saída” e “semostradeira”, interpelou-o sobre coisas do coração, ideias relativas ao casamento e também sobre a “noivinha” — tudo com meias palavras intencionais, sublinhadas de piscadelas para a direita e a esquerda.
Inácio avermelhou e tartamudeou palavras desconchavadas, enquanto o diabrete maliciosamente insistia: “Quando os doces, seu Inácio?”.
Respostas mascadas, gaguejadas, ineptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.
Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilíbrio. Por dá cá aquela palha o pobre rapaz mudava-se de si para fora, sofrendo todos os horrores consequentes. A culpada aqui foi a dona da casa. Serviu-lhe dona Luísa um bife de fígado sem consulta prévia.
Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.
Esquisitice do Inácio: nascera com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar de fígado. Seu estômago, seu esôfago e talvez o seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se, repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.
Nesse dia, mal dona Luísa o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, exigir, com império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo, mostrou-lhe que mau momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalmá-lo a goles de clarete, jurando eterna abstenção para o futuro. Pobre Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristã pelos heréticos; contou um, dois, três e glug!, engoliu meio fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a esperar, de olhos arregalados, imóvel, a revolução intestina.
Em redor a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitarem o suplício daquele mártir posto a tormentos de uma nova espécie.
— Você já reparou, Miloca, na “ganja” da Sinharinha? — disse a sirigaita de “beleza” na testa. — Está como quem viu o passarinho verde... — e olhou de soslaio para Inácio.
O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava na auscultação das vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída: tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento.
Era mister atacá-la e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e — um, dois, três: glug! — lá rodou, esôfago abaixo, o resto da miserável glândula.
Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar lorpa dos ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo os rumores do mundo, seu cérebro voltava a funcionar normalmente e seus olhos volveram outra vez às visões habituais.
Estava nessa doce beatitude, quando:
— Não sabia que o senhor gostava tanto de fígado — disse dona Luísa, vendo-lhe o prato vazio. — Repita a dose.
O instinto de conservação de Inácio pulou em guarda. E fora de si outra vez o pobre moço exclamou, tomado de pânico:
— Não! Não! Muito obrigado!...
— Ora, deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos. Coma, coma, que não é vergonha gostar de fígado. Aqui está o Lemos, que se pela por uma isca.
— Iscas são comigo — confirmou o velho. — Lá isso não nego. Com elas ou sem elas, nunca as enjeitei. Tens bom gosto, rapaz. Serve-lhe, serve-lhe mais, Luísa.
E não houve salvação. Veio para o prato de Inácio um novo naco — este formidável, dose dupla.
Não se descreve o drama criado no seu organismo. Nem um Shakespeare, nem Conrad — ninguém dirá nunca os lances trágicos daquela estomacal tragédia sem palavras. Nem eu, portanto. Direi somente que à memória de Inácio acudiu o caso de Nora de Ibsen na Casa de bonecas, e disfarçadamente ele aguardou o milagre.
E o milagre veio! Um criado estouvadão, que entrava com o peru, tropeçou no tapete e soltou a ave no colo de uma dama. Gritos, rebuliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio aproveitou-se do incidente para agarrar o fígado e metê-lo no bolso.
Salvo! Nem dona Luísa nem os vizinhos perceberam o truque — e o jantar chegou à sobremesa sem maior novidade.
Antes da dançata lembrou alguém recitativos e a espevitadíssima Miloca veio ter com Inácio.
— A festa é sua, doutor. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que recita admiravelmente. Vamos, um sonetinho de Bilac. Não sabe? Olhe o luxinho! Vamos, vamos! Repare quem está no piano. Ela... Nem assim? Mauzinho!... Quer decerto que a Sinharinha insista?... Ora, até que enfim! A Doida de Albano? Conheço, sim, é linda, embora um pouco fora da moda. Toque a Dalila, Sinharinha, bem piano... assim...
Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para o pé do piano onde a futura consorte preludiava a Dalila em surdina. E declamou a Doida de Albano. Pelo meio dessa hecatombe em verso, ali pela quarta ou quinta desgraça, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe na sobrancelha, comichando qual importuna mosca. Inácio lembrou-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço vem o fígado, que faz plaf! no chão. Uma tossida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras de instinto, salvam o lance.
Mas desde esse momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera rogar, não queria agora sair do piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguém lho pedisse. É que o acorrentava àquele posto, novo Prometeu, o implacável fígado...
Inácio recitava. Recitou, sem música, o Navio negreiro, As duas ilhas, Vozes da África, O Tejo era sereno.
Sinharinha, desconfiada, abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou O corvo de Edgar Poe, traduzido pelo senhor João Kopke; recitou Quisera amar-te, o Acorda donzela; borbotou poemetos, modinhas e quadras.
Num canto da sala Sinharinha estava chora-não-chora. Todos se entreolhavam. Teria enlouquecido o moço?
Inácio, firme. Completamente fora de si (era a quarta vez que isso lhe acontecia naquela festa) e, falto já de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas.
E declamou As armas e os barões, Estavas linda Inês, Do reino a rédea leve, o Adamastor — tudo!...
E esgotado Camões ia-lhe saindo um “ponto” de Filosofia do Direito — A escola de Bentham —, a coisa última que lhe restava de cor na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamérrima víscera de má morte...
O resto não vale a pena contar. Basta que saibam que o amor de Sinharinha morreu nesse dia; que a conspiração matrimonial falhou; e que Inácio teve de mudar de terra. Mudou de terra porque o desalmado major Lemos deu de espalhar pela cidade inteira que Inácio era, sem dúvida, um bom rapaz, mas com um grave defeito: quando gostava de um prato não se contentava de comer e repetir — ainda levava escondido no bolso o que podia…
Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas. Escrito em 1904, publicado em 1919.
Um comentário:
Sem dúvida, esse Fígado indiscreto, de Lobato, é antológico. Gargallhei com ele quando criança, também quando jovem e ainda hoje alegra meus últimos dias. Quem não se empolga com o drama daquele infeliz? Lobato radiografou-lhe a alma.
Carolina Ramos (Santos/SP)
Postar um comentário