No tempo em que os animais falavam, nesse mesmo tempo chamado do Onça, em que se amarravam os cachorros com linguiça, achava-se uma onça dormindo a sesta, enganchada num galho de árvore, quando exclamou:
– Qual! isto assim não tem jeito! Estou há longo tempo a procurar cômodo neste pau, e nada de poder dormir! Vou fazer uma casa para morar.
Foi a um lugar da floresta, e depois de procurar bem, disse:
– É aqui mesmo; melhor lugar não poderia encontrar.
Roçou o mato que ali havia, capinou tudo muito bem.
Mestre Cabrito também andava com vontade de fazer casa de moradia. Saindo, uma vez, em busca de local apropriado, deu com o roçado que dona Onça tinha feito horas antes, e disse:
– Bravo! Que belo sítio este aqui! Parece feito de propósito para uma casinha!
Dizendo isso, pôs-se logo a cortar grossos paus para servirem de esteios à casa; fincou no chão, e foi descansar.
No dia seguinte chegou dona Onça, e vendo os esteios já fincados, exclamou:
– Com certeza é Deus quem me está ajudando. Ontem, apenas limpei o mato, e hoje já venho encontrar os esteios da casa!...
Cortou mais paus; fez a cumeeira; pôs as travessas e retirou-se.
Quando o sr. Cabrito chegou, e viu aquele progresso na construção, exclamou:
– “Qual! Decididamente Deus Nosso Jesus Cristo está me ajudando! Estou encantado de graça... Não pode ser outra coisa. Por isso, mãos à obra, sr. Cabrito, quanto mais depressa melhor.
Então colocou caibros* na casa, e nesse dia deu por findo o serviço, achando que havia trabalhado muito.
Quando dona Onça veio, ainda mais admirada ficou. Nada disse, todavia. Pregou as ripas e os enchimentos, e foi-se embora.
O cabrito pôs as varas, os portais e as janelas, e saiu.
A onça cobriu a casa de telhas.
O cabrito assoalhou, e fez o teto.
Um dia, um, outro dia, outro, trabalharam sucessivamente os dois animais, sem no entanto jamais se encontrarem, cada um pensando que era Deus que o protegia.
Ficando pronta a casa, dona Onça fez a cama e deitou-se.
Ainda não tinha ferrado no sono, quando chegou também o cabrito, que, vendo a onça, disse:
– Não, comadre onça; esta casa é minha. Fui eu que finquei os esteios, pus os caibros, os portais, as janelas, etc.
Depois de muita discussão, a onça, que já estava com vontade de comer o cabrito falou:
– Bem, compadre, não é preciso fazer questão; vivamos juntos, como bons amigos.
O cabrito, embora com muito medo, aceitou a proposta da onça, mas, por precaução, armou a cama longe, perto da janela, para poder escapulir ao primeiro sinal de perigo.
Achava-se ainda na cama, aos primeiros albores da madrugada, quando a onça se virou para ele, e lhe disse:
– Vou dizer-lhe uma coisa, compadre Cabrito: quando estou zangada, começo a franzir o couro da testa. Tome cuidado.
– E eu, comadre Onça, – respondeu o outro, fazendo-se forte, mas, com verdadeiro pavor, – quando estou com raiva, começo a sacudir as minhas barbinhas, e se der algum espirro, então fuja, porque não estou para brincadeiras.
Vendo que o outro não fugia, a onça saiu, dizendo que ia buscar alguma coisa para comerem.
Meteu-se atrás de uma moita, num mato muito cerrado, pertinho de um regato, onde os outros bichos costumavam ir beber água.
Apareceram diversos animais, mas a onça não se mexeu. Quando, porém, chegou um cabrito grande, muito gordo, de um salto caiu-lhe ela em cima e matou-o.
Arrastou-o até a casa e, de fora, já vinha gritando;
– Abra a porta compadre Cabrito, para eu poder passar com a minha caça!
Mestre Cabrito, já desconfiado daquele barulho, imaginando ser alguma cilada que lhe armava ela, respondeu no mesmo tom:
– Está aberta, comadre; basta empurrá-la.
Quando o cabrito viu o seu companheiro teve muito medo, e disse consigo mesmo:
– Se ela matou este, que é maior e mais que eu, como não procederá para comigo?
E protestou ficar cada vez mais alerta.
Ofereceu-lhe a onça um bocado de carne, mas o cabrito não aceitou, dizendo já ter almoçado.
No outro dia foi ele quem disse à onça:
– Agora, comadre, sou eu quem vai à caça. Vou arranjar alguma coisa para comermos.
Embrenhou-se pela floresta adentro, quando viu uma onça muito grande e gorda. Disfarçou, e começou a cortar cipós fortes.
A onça, chegando perto, indagou:
– Amigo cabrito, para que é que está você cortando tanto cipó?
– Oh! Amiga onça, não sabe do caso? Então não sabe que o mundo está para vir abaixo, que um grande dilúvio e grande ventania vem cá para a terra? Trate de si, que é o que deve fazer. Eu vou-me amarrar com estes cipós, porque não quero morrer já.
A onça, com medo, escolheu um pau bem grosso, e pediu ao cabrito por tudo quanto havia que a amarrasse.
O cabrito amarrou-a perfeitamente, com uma porção de cipós, e, quando a viu bem segura, matou-a.
Desatou o cipó que a prendia, e começou arrastá-la até à casinha. Quando chegou, disse à sua comadre, que ficara em casa:
– Comadre onça, trago comida para dois dias, venha ver, e vamos esfolar o bicho, que está gordo que faz gosto.
A onça, quando viu uma companheira sua morta pelo cabrito, teve muito medo, mas nada disse.
***
Começaram os dois a ter medo um do outro.
Um dia, o cabrito estava perto da janela tomando fresco, quando viu a onça com o couro da testa todo enrugado, o que nela era sinal raiva.
Teve receio. Começou a sacudir as barbinhas e deu um grande espirro.
A onça ouvindo-o e lembrando-se que era sinal da zanga do cabrito, pulou de cima da cama e começou a correr como uma desesperada, por este mundo afora.
O cabrito, por seu lado, fugiu também, em direção oposta, com medo da onça.
E os dois ainda hoje se evitam.
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Nota:
* Caibros – Estrutura de madeira de um telhado, sobre o qual se colocam as telhas.
Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.
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