sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Katherine Mansfield (A Vida da Mã Parker)


Quando o senhor escritor, cujo apartamento a velha Mã Parker limpava todas as terças-feiras abriu-Ihe a porta naquela manhã, perguntou de seu neto. Mã Parker ficou no capacho dentro do pequeno vestíbulo escuro e estendeu a mão para ajudar seu patrão a fechar a porta, antes de responder.

- Enterramos ele ontem, senhor - disse em voz baixa.

- Oh, céus! Lamento saber - disse o senhor escritor em tom chocado.

Estava em meio ao desjejum. Usava um robe muito puído e tinha na mão um jornal amarfanhado. Mas se sentiu desconfortável. Não podia voltar à sala de estar agradavelmente aquecida sem dizer alguma coisa - alguma coisa mais. Então, como aquele pessoal dava tanto valor a funerais, disse bondoso:

- Espero que o funeral tenha ido bem.

- Discurpe, senhor? - perguntou Mã Parker em voz rouca.

Pobre velha! Parecia mesmo destroçada.

- Espero que o funeral tenha sido um... um sucesso - disse ele.

Mã Parker não respondeu. Curvou a cabeça e foi mancando para a cozinha, segurando a velha cesta de pescaria que continha seus materiais de limpeza, um avental e um par de chinelos de feltro. O senhor escritor ergueu as sobrancelhas e voltou ao desjejum.

- Acabrunhada, imagino - disse em voz alta, servindo-se de geleia.

Mã Parker tirou os dois grampos e pendurou a touca atrás da porta. Desvencilhou-se do casaco surrado e pendurou-o também. Então amarrou o avental e sentou-se para tirar as botinas. Era um suplício para ela por ou tirar as botinas, mas um suplício que já vinha de muitos anos. De fato estava tão acostumada à dor que, antes mesmo de soltar os cadarços, já contraíra e contorcera o rosto preparando-se para a aguilhoada.

Feito isso, encostou-se na cadeira com um suspiro e esfregou levemente os joelhos…

"Vó! Vó!" O netinho ficou de pé em seu colo, com as botas de abotoar. Acabava de voltar das brincadeiras na rua.

"Veja o estado em que você deixou a saia da sua avó, seu menino malvado!"

Mas ele lhe abraçou o pescoço e esfregou sua bochecha na dela.

"Vó, dá um pence!", pediu agradando a avó.

"Deixe disso, a vó não tem nenhum pence."

"Tem, tem sim."

"Não tenho não."

"Tem, tem sim. Dá um!"

E já estava lá ela apalpando a bolsa velha e amassada de couro preto.
 
"Bom, e o que você vai dar pra sua vó?"

Ele deu um risinho tímido e a abraçou com mais força. Ela sentiu os cílios dele vibrando na sua face.

"Não tenho nada", ele murmurou...

A velha se levantou de um salto, pegou a panela de ferro no fogão a gás e levou até a pia. O barulho da água correndo na panela parecia amortecer a dor. Ela encheu o balde e a tigela de água também.

Seria preciso um livro inteiro para descrever o estado daquela cozinha. Durante a semana, o senhor escritor "se virava" sozinho. Quer dizer, de vez em quando despejava as folhas de chá num pote de geleia vazio que ficava ali para isso e, se acabavam os garfos limpos, ele passava um ou dois no rolo de toalha. Tirando isso, como explicava aos amigos, seu "sistema" era muito simples e não conseguia entender por que as pessoas faziam tanto escarcéu a respeito das tarefas domésticas.

"Você simplesmente usa tudo o que tem, pega uma velha uma vez por semana para limpar, e pronto."

O resultado parecia uma enorme lata de lixo. Até o chão ficava cheio de farelos, envelopes, tocos de cigarro. Mas Mã Parker não levava a mal. Tinha pena do pobre rapaz, o senhor escritor, que não tinha ninguém que cuidasse dele. Pela janela pequena e encardida dava para ver uma enorme faixa de céu tristonho e, quando havia nuvens, pareciam muito gastas, velhas, esgarçadas nas beiradas, cora buracos no meio ou manchas escuras como de chá.

Enquanto a água esquentava, Mã Parker começou a varrer o chão. "E", pensou enquanto batia a vassoura, "entre uma coisa e outra tive meu quinhão. Tive uma vida dura."

Mesmo os vizinhos diziam isso. Muitas vezes, voltando para casa, mancando com sua cesta de pesca, ouvia dizerem entre si, parados na esquina ou debruçados nas grades: "Ela tem uma vida dura, a Mã Parker, se tem". E era tão verdade que não sentia o menor orgulho disso. Era como dizerem que morava nos fundos do subsolo do número 27. Uma vida dura!...

Aos dezesseis anos saíra de Stratford e viera para Londres como ajudante de cozinha. Sim, nascera em Stratford-on-Avon. Shakespeare, senhor? Não, as pessoas sempre lhe perguntavam. Mas nunca tinha ouvido falar nele antes de ver seu nome nos teatros.

Não sobrou nada de Stratford, exceto que, "sentando junto à lareira de noite, dava para ver as estrelas pela chaminé" e "a mãe sempre tinha um pedaço de toucinho, pendendo do forro". E tinha alguma coisa – uma planta, era - na porta da frente que sempre cheirava muito gostoso. Mas a lembrança da planta era muito apagada. Lembrara apenas uma ou duas vezes no hospital, quando caiu doente,

Era um emprego pavoroso - o seu primeiro. Nunca podia sair. Nunca subia a não ser para as rezas da manhã e do final da tarde. Era um porão grande. E a cozinheira era maldosa. Costumava pegar suas cartas de casa antes de ler e jogava no fogão porque ficava sonhadora... E os besouros! Dá para acreditar? - antes de vir para Londres, nunca tinha visto um besouro preto. Aqui Mã sempre dava uma risadinha, pois imagine só: nunca ter visto um besouro preto! Era como dizer que nunca tinha visto o próprio pé.

Quando aquela família foi despejada, ela foi ser "ajudante" na casa de um médico e depois de dois anos lá, na correria de manhã até a noite, casou-se com o marido. Era um padeiro.


– Um padeiro! - disse o senhor escritor. Pois de vez em quando ele deixava seus livros e emprestava um ouvido, pelo menos, a essa coisa chamada Vida. - Devia ser muito bom ser casada com um padeiro.

A sra. Parker não parecia ter tanta certeza.

- Um ofício tão limpo! - disse o senhor.

A sra. Parker não parecia muito convencida.

- E a senhora não gostava de entregar os pães frescos aos fregueses?

- Bem, senhor, eu não ficava muito na loja. Tivemos treze filhos e enterramos sete. Se não era o hospital, era a enfermaria, por assim dizer!

- Pois é, de fato, sra. Parker! - disse o escritor estremecendo e retomando a caneta.

Sim, sete se foram e, quando os seis ainda eram pequenos, o marido adoeceu de tuberculose. Farinha nos pulmões, disse o médico na época... O marido estava sentado na cama com a camisa levantada, e o médico desenhou com o dedo um círculo nas costas.

- Se cortássemos e abríssemos aqui, sra, Parker – disse o médico – a senhora ia ver os pulmões entupidos de pó branco. Respire, meu bom homem!

E a sra. Parker nunca soube com certeza se viu ou se imaginou ver uma grande pazada de poeira branca saindo pela boca do pobre marido morto...

Mas que luta foi criar aqueles seis filhos pequenos e guardar tudo para si! Terrível, foi sim. Então, quando todos alcançaram a idade de ir para a escola, a irmã do marido veio ficar com eles para ajudar, e estava lá não fazia mais de dois meses quando caiu da escada e machucou a coluna. E durante cinco anos a Mã Parker teve de cuidar de mais um bebê - e este, que bebê mais chorão! Então Maudie, mocinha, se desencaminhou e levou a irmã Alice junto com ela; os dois meninos emigraram, o jovem Jim foi para a Índia com o exército, e Ethel, a caçula, se casou com um garçonzinho imprestável que morreu de úlcera no ano em que o pequeno Lennie nasceu. E agora o pequeno Lennie, meu neto...

Os montes de xícaras sujas, de pratos sujos, estavam lavados e enxugados. As facas pretas feito carvão foram esfregadas com uma rodela de batata e polidas com um pedaço de cortiça. A mesa foi escovada, bem como o armário e a pia onde antes nadavam caudas de sardinhas...

Nunca foi um menino forte - nunca, desde o começo. Tinha sido um daqueles bebês bonitos que todo mundo achava que era menina. Lindos cachinhos prateados, olhos azuis, uma pequena pinta que parecia um diamante num dos lados do nariz. Que trabalheira tinham tido para criar aquele bebê, ela e Ethel! As coisas dos jornais que experimentavam com ele! Todo domingo de manhã, Ethel lia em voz alta enquanto a Mã Parker lavava roupa.

"Prezado Senhor: Apenas algumas linhas para informar que minha pequena Myrtil estava à beira da morte... Depois de quatro frascos... ganhou quatro quilos em nove semanas e continua a engordar."

E então o tinteiro saía do anuário, a carta ficava pronta, e a Mã, indo para o trabalho na manhã seguinte, comprava um selo. Mas não adiantava. Nada fazia Lennie ganhar corpo. Nem mesmo levá-lo ao cemitério jamais lhe trazia cores ao rosto; uma bela chacoalhada no ônibus jamais melhorava seu apetite.

Mas era o menino da vó desde o começo...

"De quem é este menino?", perguntava a velha Mã Parker, endireitando-se ao pé do fogão e indo até o vidro encardido da janela. E uma vozinha, tão quente, tão próxima, como que a sufocava - parecia estar dentro do peito, sob o coração - ria e dizia; "Sou o menino da vó!".

Naquele momento ouviram-se passos, e o senhor escritor apareceu, vestido para sair.

– Sra. Parker, estou saindo.

– Sim, senhor.

– Sua meia coroa está na base do tinteiro.

– Obrigada, senhor.

– Oh, aliás, sra, Parker- perguntou rapidamente o senhor escritor a senhora não jogou fora nenhum cacau em pó da última vez que esteve aqui, não é mesmo?

– Não, senhor.
 
– Que estranho. Seria capaz de jurar que deixei uma colherada de cacau em pó na lata.

Interrompeu-se. Falou em tom suave e firme:

– A senhora sempre me avise quando jogar alguma coisa fora, entendido, sra. Parker?

E saiu muito satisfeito consigo mesmo, realmente convencido de que mostrara à sra. Parker que, sob seu aparente desleixo, era tão vigilante quanto uma mulher.

A porta bateu. Ela levou seus panos e escovas para o quarto de dormir. Mas, quando começou a fazer a cama, alisando, esticando, afofando, a lembrança do pequeno Lennie foi insuportável. Por que ele tinha de sofrer tanto? Era isso que ela não conseguia entender. Por que um anjinho como aquele tinha de arfar e lutar para respirar? Não fazia nenhum sentido uma criança sofrer daquela maneira,

...Do pequeno peito de Lennie saía um som que parecia alguma coisa fervendo. Havia uma grande massa de alguma coisa borbotando no peito da qual ele não conseguia se livrar. Quando tossia, o suor lhe molhava a testa, os olhos saltavam, as mãos se agitavam e a grande massa borbotava como uma batata numa panela fervendo. Mas o mais horrível de tudo era que, quando não tossia, ficava sentado apoiado ao travesseiro, sem falar nem responder ou sequer mostrar que ouvia. Parecia apenas ofendido.

- Não é culpa da sua pobre e velha vovó, meu querido - dizia a velha Mã Parker, afastando o cabelo úmido de suor de suas orelhinhas rubras. Mas Lennie afastava a cabeça de repelão. Extremamente ofendido com ela, parecia - e solene. Curvava a cabeça e olhava a avó de soslaio, como se não conseguisse acreditar que ela era capaz de uma coisa dessas.

Mas no fim... A Mã Parker estendeu a colcha na cama. Não, simplesmente não conseguia pensar naquilo. Era demais - a vida dela já tinha sido pesada demais. Aguentara até agora, guardara para si e nunca ninguém a vira chorar, Nunca, ninguém. Nem mesmo seus filhos jamais viram a Mã ceder. Sempre se mantivera firme. Mas agora! Lennie se fora - o que ela tinha?

Não tinha nada. Ele era tudo o que ela tinha na vida, e agora lhe fora tirado também.

– Por que tudo isso tinha que acontecer comigo? -perguntou-se – O que eu fiz? - disse a velha Mã Parker. – O que eu fiz?

Ao dizer estas palavras, soltou de repente a escova. Viu-se na cozinha. Era tão grande sua infelicidade que prendeu a touca, pôs o casaco e saiu do apartamento como se sonhasse. Não sabia o que estava fazendo. Parecia uma pessoa tão atordoada pelo horror dos acontecimentos que simplesmente vai embora para qualquer lugar, como se, andando, conseguisse escapar...

Fazia frio na rua. O vento estava gelado. As pessoas passavam rápido, muito depressa; os homens andavam como tesouras, as mulheres, como gatos. E ninguém sabia - ninguém se importava. Mesmo que ela cedesse, que finalmente, depois de todos esses anos, chorasse, a prisão seria a mesma.

Mas, à ideia de chorar, foi como se o pequeno Lennie saltasse para os braços da avó. Ah, é isso o que ela quer fazer, meu querido. A vó quer chorar. Se pelo menos pudesse chorar agora, chorar por muito tempo, chorar por todas as coisas, começando pelo primeiro emprego e a cozinheira maldosa, passando para a casa do médico, e então para a perda dos sete pequeninos, a morte do marido, os filhos indo embora e todos os anos de infelicidade, até Lennie. Mas chorar devidamente por todas essas coisas tomaria muito tempo. Mesmo assim, chegara a hora. Precisava. Não podia guardar mais; não podia esperar mais... Aonde podia ir?

"Ela tem uma vida dura, a Mã Parker, tem sim."

Sim, uma vida dura, de fato! Seu queixo começou a tremer; não havia tempo a perder, Mas onde? Onde? Não podia ir para casa; Ethel estava lá. Ethel morreria de susto, Não podia se sentar num banco qualquer; as pessoas viriam fazer perguntas, Não podia voltar ao apartamento do senhor escritor; não tinha o direito de chorar na casa dos outros. Se sentasse em algum degrau, algum policial viria falar com ela.

Oh, não havia nenhum lugar onde pudesse se esconder, estar sozinha, ficar o quanto quisesse, sem perturbar ninguém, sem ninguém a incomodá-la? Não havia nenhum lugar no mundo onde pudesse chorar finalmente?

A Mã Parker ficou ali parada, olhando um lado e outro. O vento gelado empinou seu avental como um balão. E então começou a chover. Não havia nenhum lugar.

Fonte:
Os melhores contos de Katherine Mansfield. Porto Alegre/RS: LP&M, 2016.

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