O homem perfeitamente infeliz tem saúde de ferro; check-up e estação de águas todos os anos; seus males físicos são apenas dois: dor de cabeça (não toma comprimido porque ataca o coração) e azia (não toma bicarbonato porque vicia o organismo).
O pai e o avô do homem infeliz morreram quase aos noventa anos - e ele o diz frequentemente.
Banho frio por princípio, mesmo no inverno, e meia hora de ginástica diária.
O homem perfeitamente infeliz julga-se ameaçado: ao norte, pela queda do cabelo; ao sul, pela desvalorização da moeda; a leste, pelo acúmulo de matéria graxa; a oeste, pela depravação dos costumes.
Não empresta dinheiro; não deve nada a ninguém; toma notas minuciosas de todas as despesas; nunca pagou nada para os outros; não avaliza nota promissória nem para o próprio filho; tem manifesto orgulho disso tudo.
Não tomou conhecimento de qualquer revolução artística ou literária depois de 22: gênio é o Rui; brasileiro é o Rui; saber português é o Rui*.
Iniciar oração com o pronome oblíquo é para ele um crime contra o idioma pátrio, embora seja esta toda a sua ciência a respeito de gramática.
Em sua sala de jantar, um quadro a óleo: o ipê florido, moldura dourada, assinatura de Josimar ou Asdrúbal.
A força de vontade do homem perfeitamente infeliz é tremenda: deixou de fumar há onze anos, três meses, cinco dias. Se não deixou, poderá deixar a qualquer momento.
Racista, embora só o confesse aos mais íntimos; admite vagamente todas as religiões; não pratica nenhum culto, mas considera o catolicismo um freio. Sem simpatia política em aparência, vota por instinto nos candidatos mais reacionários.
Antigamente, para ele, era muito melhor que hoje: um dos erros fatais do Brasil foi derrubar Dom Pedro II.
Acha-se (e infelizmente é verdade) insubstituível em seu trabalho; sem ele, o escritório não anda.
Sempre o primeiro a chegar a enterros de parentes, amigos, conhecidos, colegas; também o primeiro a saber e divulgar que abriram e fecharam Fulano, não há nada a fazer.
Ver televisão é o seu recreio mental mais importante; resolver problemas de palavras cruzadas desenvolve o raciocínio e enriquece o vocabulário - uma de suas teses preferidas.
O homem perfeitamente infeliz sabe o que é enfiteuse** e pignoratício***.
Conhece os preços de todos os gêneros e de todos os objetos usuais; está sempre de olho em qualquer transação imobiliária lucrativa; se possui imóveis alugados (quase sempre os possui), é mestre em fabricar um contrato desvantajoso para o inquilino; mestre ainda em sonegar imposto de renda; dá aula sobre a maneira mais efetiva de se proceder a uma ação de despejo.
Sua psicologia: todo homem tem seu preço.
Economia: poupar os tostões.
Sociologia: o povo não sabe o que quer.
Filosofia: o seguro morreu de velho.
O homem perfeitamente infeliz ama os seus de um amor incômodo ou francamente insuportável.
Considera-se dono de excelente bom humor; em família, porta-se com severidade, falta de graça e convencionalismo; cita provérbios edificantes e ditos históricos; sua glória é poder afirmar, diante de alguém em desgraça: "Bem que te avisei!"
Arrola o futebol, o samba e a cachaça entre as vergonhas nacionais.
Não diz "minha mulher", mas "minha esposa"; a esposa do homem perfeitamente infeliz é muito mais perfeitamente infeliz do que ele, que nada percebe.
O mal profundo do homem perfeitamente infeliz é julgar-se um homem perfeitamente feliz.
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Notas do Blog:
* Rui: Rui Barbosa (1849-1923).
** Enfiteuse: A enfiteuse é instituto do Direito Civil e o mais amplo de todos os direitos reais, pois consiste na permissão dada ao proprietário de entregar a outrem todos os direitos sobre a coisa de tal forma que o terceiro que recebeu (enfiteuta) passe a ter o domínio útil da coisa mediante pagamento de uma pensão ou foro ao senhorio. Assim, pela enfiteuse o foreiro ou enfiteuta tem sobre a coisa alheia o direito de posse, uso, gozo e inclusive poderá alienar ou transmitir por herança, contudo com a eterna obrigação de pagar a pensão ao senhorio direto. (fonte: JusBrasil)
*** Pignoratício: pertinente ao contrato do penhor.
Fonte:
Paulo Mendes Campos. Homenzinho na Ventania. Publicado em 1962.
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