quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Gumercindo Saraiva ( O Cão na Literatura Popular) - 1 -

Maya e Mel (mãe e filha), arte por José Feldman

O cão, esse mamífero carnívoro, andando geralmente nas pontas das dedos compreendendo as espécies chacal e lobo, é um animal inteligente, hábil, quando domesticado. É o irracional que tem mais afeição ao homem, conciliando com o afeto, a gratidão e o reconhecimento, dentro do reino dos animais. Evidentemente que nos referimos ao cão familiar, servidor, uma espécie de sentinela, vigiando dia e noite o patrimônio do seu dono.

Na Zoologia, parte da história natural que se ocupa dos animais, encontramos o cão doméstico por natureza carniceiro, mai podendo tornar-se também onívoro, dependendo da educação recebida dos seus donos. Natural, que ele com fome chega a comer imundícies, por uma questão que está às nossas vistas. Mesmo nessas condições, o cão recusa terminantemente frutas e legumes, chegando a morrer esfomeado.

A prenhez da fêmea, dura sessenta e cinco dias, chegando a partir até dez filhos, de acordo com a raça, e estes, nascem completamente cegos, abrindo os olhos somente aos noves dias de nascido. È notável a memória, a fidelidade e a inteligência do cão e em todos os tempos, ele tornou-se companheiro do homem.

Não obstante ser o animal reverenciado no velho mundo até com estátuas em praça pública, existem povos que antigamente não domesticaram o cão, e os indianos chegaram a repudiá-lo. Limitando-se esperar a viverem uns quinze anos, o cão como o gato, estão sujeitos a uma grande contaminação de doenças conseguidas facilmente. Ainda hoje na Índia, se odeia o cão e dizem que sua sombra é capaz de manchar a dignidade de um brâmane. Em certa região, entretanto, uma pequena minoria chega a adorar o cão, juntamente com o dono.

Já no Egito, o cão possui cemitério apropriado sendo tratado como pessoa humana. Na Zooética egipciana, lemos que “Veem-se” representadas as diversas raças nos seus monumentos, assim como nos cemitérios de cães sagrados se tem encontrado os esqueletos ou múmias de todas as variedades. Empregavam-no na caça havendo-os que não temiam atacar o leão. O cão, encarnava dois gênios secundários que também eram representados pelo chacal. As múmias são, em geral, enroladas em cilindro, a cabeça metida numa máscara de cartão que dá a fisionomia do animal”.

O cão na literatura brasileira

A personalidade do cão no Brasil, foi trazida pelos africanos, daí, temos o animal como sinônimo de Diabo, Belzebu, Lúcifer, Satanás, e outros termos popularizados pelo nosso povo. Como um anjo das trevas, o cão vem atravessando séculos no praguejar de determinada classe, aproveita de sua vivência na maldição injustificável, advinda de uma lenda oriental.

No Rio Grande do Norte, vários poetas e escritores personificaram o cão, e vale lembrar no fomento, um livro primoroso do escritor José Pinto Júnior, Cão de luxo, cujo conteúdo é o reflexo não somente de uma expressividade literária, como grandiosa realização na cultura ficcionista do nosso estado, tão bem representada numa obra de estilo, pureza e perfeição. O escritor José Melquíades , bacharel, conferencista aprimorado, escreveu uma de suas melhores obras, “Os Estados Unidos, A mulher e o cachorro”.

História de um cão

Luis Guimarães, escritor, poeta e diplomata brasileiro, nasceu no Rio de Janeiro em 1847, falecendo em Lisboa no ano de 1898. Sua obra fabulosa é quase desconhecida pela nova geração que chegou a empastelar os versos, os dramas, os contos, as poesias soltas, envolvendo-as na cultura de seu filho, Luis Guimarães, também escritor, poeta, diplomata e uma das figuras mais representativas do movimento cultural brasileiro. Luis Guimarães Filho nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1878 e como diplomata esteve representando o Brasil até no Japão, onde colheu subsídios para um de seus melhores livros, intitulado Samurais e mandarins (1911).

Por este motivo o poema História de um cão, encontra-se como sendo para uns, de Luis Guimarães (1847) e para outros, assim como nós, de Luis Guimarães Filho (1878). Por mais que ouvíssemos grande número de intelectuais norte-riograndenses, estes não souberam identificar o autor, o que é uma pena. Pela beleza dos versos, pela tragédia enfocada na história, pela sensibilidade que o poeta envolve a figura de um simples cão, demonstrando a lealdade, fidelidade, meiguice, carinho, indulgência que procurou dar-lhe fim, é que publicamos essa jóia primorosa da poesia brasileira.

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos de um camarada,
Na hora da partida. O cão gemendo
Enfim — mau grado seu — o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo mudo
Olhava-o… o sol nas ondas se abismava…
“Adeus” — me disse — e ao afagar Veludo,
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

“Trata-o bem. Verá que o rafeiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.”

Veludo a custo habituou-se à vida
Sua rugosa pálpebra sentida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Chorava o amigo que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante
Febril, convulso, trêmulo, agitando
A sua cauda — caminhava errante
À luz da lua — tristemente uivando.

Toussenel Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda trouxe o correio
Cinco meses depois do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Era uma artigo.

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Prata.
Falava em rios, árvores gigantes.

Gabava o steamer que o levou: dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Toda sorte de risos e beleza.

Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota bem do melhor cursivo
Recomendava o pobre cão Veludo
Pedindo que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplou e — creia que é verdade.
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejaram de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente
Estendeu-se aos meus pés atencioso
Movendo a cauda — e adormeceu contente
Farto dum puro e satisfeito gozo.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada, Veludo me servia
Dei-o à mulher dum velho carvoeiro.

E respirei: Graças a Deus já posso
Dizia eu “viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil a um feio cão imundo.”

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Uma alazão inglês, de sela ou tiro.
Ou uma gata branca cinzadora.

Mas respirei porém: Quando dormia,
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver que era. Abri. Era Veludo.

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo.
Farejou toda a casa satisfeito;
E — de cansado — foi rolar dormindo,
Como uma pedra junto do meu leito.

Praguejei furisco. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo,
Arrebentava em uivos e lamentos…
De instante a instante o tufão crescendo.

Chamei veludo: ele seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto.
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vagamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo — e com furor remamos.

Veludo à proa olhava-me choroso,
Como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui o nos meus braços,
E arremessei-o às ondas de repente…
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte! Era pungente!

Voltei à terra — entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.

Mas, ao despir dos ombros meus, o manto
Notei — oh grande dor! Haver perdido
Uma relíquia que eu rezava tanto!
Era um cordão de prata: eu tinha-o unido.

Contra o meu coração constantemente.
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além do mar profundo
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah! se Veludo

Duas vidas tivera — duas vidas
Eu arrancara aquela besta morta,
E aquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto senti uivar à minha porta.

Corri, abri… Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se aos meus pés — e docemente
Deixou cair da boca que espumava,
A medalha suspensa da corrente.

Fora incrível, oh Deus! — Ajoelhado
Junto ao cão — estupefato absorto,
Palpei-lhe o corpo, estava enregelado
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.

Fonte:
Gumercindo Saraiva. O cão na literatura popular. Tribuna do Norte. Natal/RN, 29/09/1974.

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