Tomava dois banhos por ano, na fonte da praça.
— Sapucaia! — os garotos gritavam, quando ele passava, exalando um mau cheiro desagradabilíssimo.
Não respondia mal aos meninos. Limitava-se a sorrir, quando lhe gritavam o apelido. Talvez por isso os gritos se repetissem pela rua inteira, à sua passagem malcheirosa.
— Sapucaia!
Não era velho. Poderia ter 35 anos, calculando-se por cima. Os cabelos crescidos, sebosos, caíam-lhe pelos ombros, misturavam-se com a barba nunca cortada; o bigode, jamais aparado, entrando pela boca. A roupa, um amontoado de molambos, rasgões nas calças, sapatos furados.
Aqui e ali alguém se apiedava e lhe dava um prato de comida, que ele devorava como bicho. Não usava a colher que lhe estendiam. Comia com a mão, fazendo bocados disformes.
No sábado de Aleluia os meninos fizeram um Judas que era um réplica dele. De barba e bigode, além da cabeleira onde nunca um pente deslizara, supunha-se.
De longe, viu-se malhado. Os garotos corriam e davam pauladas no boneco de pano que era ele. Furavam os olhos do Judas, rasgavam-lhe a roupa, deixando a palha saindo. De longe, ele via a malhação do Judas, quase sofrendo na carne o que acontecia com o bruxo pregado no poste. Doeu-lhe muito quando atearam fogo ao boneco. Os gritos da garotada saudando a queimação do Judas feriram-lhe os tímpanos. Com as mãos nos ouvidos, correu. Escondeu-se debaixo da ponte, canto onde morava, e chorou.
Um cachorro velho, cego de um olho, aproximou-se. Lambeu-lhe a mão, e isto lhe deu conforto. Puxou o cachorro, estreitando-o nos braços. O cachorro deixou-se ficar ali, esquecido, livre do frio que vinha do rio. Dormiram.
À noite saiu, na cata de comida. Não. Não passaria pela rua onde lhe tinham feito aquela maldade. Andou pela praça, estendendo a mão, no pedido da esmola.
— Vai trabalhar.
— Sai, fedor!
O cachorro o acompanhava. Ele quis enxotá-lo, não conseguiu. Por mais que tentasse, o cachorro não se afastava. Quando o espezinhava, o cão retirava-se alguns metros e depois voltava a segui-lo. Deixou de o expulsar. Admitiu-o como amigo. Como companheiro, pelo menos. Temeu a presença do cachorro.
— Outra boca pra alimentar...
Mas o cão, fiel como um velho amigo, seguia-o, manso e cativo.
No bar ganhou um pão. Com esforço, dividiu ao meio. Sentou no meio-fio, dando metade do pão ao cachorro. Comeram com sofreguidão. Negaram-lhe a água que pediu.
— Depois eu tinha que quebrar o copo... — comentou o dono do botequim, explicando a negativa.
Todos ficaram de acordo.
Tinha sede. O portão da casa estava aberto e ele viu a torneira, no jardim. Ninguém por perto. O cachorro entrou primeiro. Ele abriu a bica e esperou que o cachorro bebesse. Depois, com a mão em concha, serviu-se da água, quase gelada, reconfortante.
— Um ladrão!
O grito do menino assustou o cachorro. O pulo do animal foi tão rápido que ele não pôde evitar. Cravou os dentes na perna do menino que, aos gritos, correu para casa. Ele fugiu para debaixo da ponte. O cachorro já estava lá.
— Você fez muito mal. Então, é certo morder uma criança? O que foi que o menino lhe fez, pra você dar aquela mordida nele? Eu devia bater em você.
O cachorro parecia entender. Abria e fechava os olhos, boca escancarada, língua de fora, arfando.
Pensava no menino. O que estaria sofrendo, coitadinho, àquela hora?
O menino escondeu dos pais a mordida. Tratou, ele próprio, de passar mercúrio cromo na ferida da perna. Estava com medo de ser castigado. A vizinha vira o molambento no jardim. Imaginou que fosse roubar.
— Vou avisar a polícia — disse o dono da casa.
Considerou um abuso aquele mendigo entrar na sua casa, mesmo não tendo passado do jardim. Não sabia o que fazer ali. Talvez roubar, como a vizinha supunha. Era preciso que tomasse uma providência.
Recebeu adesões. Todos, na rua, de acordo. Tinham raiva dele, do cheiro dele, do aspecto dele, do perigo enorme que ele representava para a sociedade. Aquele bicho!
— Lincha! — berrou uma voz, menos humana.
Apanharam lanternas e saíram na busca do monstro.
— Eu sei onde ele mora! — ofereceu-se uma mulher.
Cercaram a ponte. O mendigo quis falar, tentou correr.
Fecharam as saídas possíveis. Tinha gente com achas de lenha e barras de ferro. Não lhe davam tempo para explicações, nem jeito de fuga. Tentou alcançar o alto da ponte. Bateram-lhe nos dedos. Ele caiu na terra onde antes dormia. Fizeram um cerco em volta dele. Eram mais de quarenta, ninguém poderia ser culpado. Deram e espancaram como de manhã tinham feito com o Judas.
Foram atirados no rio os dois: o cachorro e ele. A correnteza os levou. O cachorro morreu, certamente, sem sentir. O mendigo sofreu muito antes de morrer. Queria ter tido tempo de avisar que o cão estava hidrófobo.
Quando o pai chegou de volta, satisfeito com o que fizera, tinha tanta alegria que nem notou que o filho estava com febre.
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.
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