quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 4, final


Até 1877, a fisionomia do carnaval era mais expansiva, mais popular. Todos os teatros davam bailes; as ruas e praças decoravam-se com amplitude e profusão; carros de máscaras percorriam as ruas; os grupos fantasiados eram inúmeros; e os máscaras isolados faziam rir pela originalidade das ideias, destacando-se pelo espírito.

Enquanto um préstito desfilava e um ou outro grupo mais avultado exibia-se vistoso pela ruas principais, os máscaras de todas as categorias entretinham, em quantidade prodigiosa, todas as atenções.

Sentia-se que a cidade saía fora de sua vida habitual, e que seu aspecto exterior era um reflexo pálido da alegria pública.

Os teatros embandeirados, o comércio das vestimentas, coretos, músicas e rumores generalizados, constituíam o clima do domingo, que, desde as duas horas, transmitia o contágio da loucura à população inteira.

Durante os três dias havia o carnaval das ruas, dos teatros, do Clube, dos salões. Muitos grupos organizaram-se, cada qual com mais elegância e acentuada característica.

A Boêmia, precedendo os Cromáticos, apresentou-se nos teatros com estranho luzimento. O vestuário era o seguinte: blusa de seda, de mangas curtas, franjada de ouro, manoplas de verniz, calção de camurça e justo, botas à Fernando, faixa de cores vivas, argolões de metal nas orelhas, cabeleira crespa, distinguindo-se pelos capacetes encima dos porpássaros, lanternas, quimeras, etc., cujo efeito era admirável.

Recordamo-nos de um desses chicards, que sobre o capacete de couraceiro prussiano ostentava um penacho escarlate e branco, de mais de um metro de altura.

Esses boêmios anunciavam-se pelo grito especial, de que fala Henri Murger. O Clube X, do qual ainda se fala com saudades, compunha-se igualmente de riquíssimos e espirituosos chicards, iniciadores dos carros de ideias, que com tanta vantagem foram apropriados pelas sociedades ulteriores. As damas do Clube X fantasiavam-se com esmero e primavam pelo conjunto das formas. Da passeata que fez o clube, acompanhado de camelos, há muito quem se lembre. O distintivo dos sócios era um C e um X no alto do capacete e nos escudos.

Não nos preocupando de grupos vulgares, falemos de uma antiga sociedade, que retirou-se das folias carnavalescas, porque já não tinha mais louros a colher – os Estudantes de Heidelberg.

E quem eram estes estudantes?

Na primitiva, rapazes do curso médico, alguns empregados públicos, e poucos, mas de boa colocação, do comércio. Esta sociedade não fazia passeatas: dava seus bailes, ou concorria aos do Lírico, Ginásio e S. Pedro.

Pelo pessoal escolhido, percebe-se o sucesso de sua existência. Quando os Estudantes de Heidelberg transpunham os salões, a fina crítica, a intriga espirituosa, a pilhéria inofensiva, entravam em contribuição. As famílias nos camarotes e os máscaras que flanavam nos intervalos da dança, punham-se em guarda para o riso e para o desapontamento. O seu trajar era especial, segundo o estilo universitário. Eis o uniforme: sobrecasaca curta abotoada, calção-camurça, botas de montar, faixa, espada, boné sem aba, mas circulado por larga fita, em que realçavam as cores da bandeira do país ao qual cada um aparentava pertencer. O rei destoava, porque substituía o boné pelo chapéu armado e vestia irrepreensível casaca.

Todos traziam porta-voz, com que atroavam céu e terra. As mulheres que os seguiam, vestidas a capricho e interessantes, ajudavam-lhes a atravessar a noite, no meio das danças e das gargalhadas argentinas. Em qualquer das tardes, máscaras avulsos faziam-se célebres pela originalidade das lembranças.

Um vez apareceu um galo bastante vistoso, que cantava, abrindo as asas, junto a um figurão, que sobre o abdômen deixava ler o seguinte letreiro: Aqui dentro há alguma cousa.

No S. Pedro, no Provisório, depois de ter debicado nas ruas a todo o mundo, apresentou-se um indivíduo, corretamente trajado, vestido à corte, como vulgarmente se diz, de óculos, cabeleira e nariz postiços, de um espírito surpreendente, falando francês, inglês, alemão, italiano e português.

Não houve quem não o admirasse, já pelo chiste, já pela pureza da pronúncia nas línguas em que se exprimia.

Por baixo dos arcos pintados e de luzes; ao açoite das bandeiras suspensas, abalroando-se nos coretos; e, à noite, ao fogo dos archotes, os zés-pereiras, a Morte, de campainha e foice, os princeses de máscara de arame e de papelão, os ranchos com tocatas e os diabinhos de rabos e chifres, agitavam-se, moviam-se, dando a esses quadros um aspecto verdadeiramente encantado.

De súbito, uma banda de música assomava, precedida de fogos de bengala e da multidão dando vivas. Eram as Sumidades, a União Veneziana, os Zuavos, ou qualquer outra sociedade, conforme os tempos, que na terça-feira enterrava o carnaval...

Nos esquifes, com rodelas de limão, ouriçados de palitos, guarnecidos de archotes, carregados ao ombro, os leitões assados, os perus, as galinhas e o fiambre para as ceias no teatro.

O féretro parava em determinados lugares, entoava-se um De profundis, tocavam-se marchas fúnebres, recitavam-se discursos cômicos, poesias disparatadas, em honra do carnaval e da comezaina.

Estas festas foram mais ou menos assim até o ano de sessenta e tantos, em que a Pauliceia Vagabunda compareceu nos festejos.

Foi este o último carnaval clássico, estrondoso. O Imperador desceu, na última tarde, ao paço da cidade.

À exceção do Congresso e da União Veneziana, as mais sociedades existiam: parte da população mascarava-se, e os teatros e clubes eram paraísos artificiais.

Sem podermos firmar as datas da fundação das sociedades de hoje, recordamo-nos de um fato que determinou o renascimento do carnaval, que ia em decadência: o incêndio de uma farmácia ou drogaria da Rua Direita, no ano de 1861. Os teatros estavam cheios e a notícia espalhou-se. Os Zuavos, supondo que o fogo se havia declarado em casa de um dos sócios, para lá correram, e, com o seu uniforme carnavalesco, auxiliando o corpo de bombeiros, portaram-se com a maior valentia. Extinto o incêndio, levantaram-se para eles as labaredas do prestígio. Novos sócios entraram; o entusiasmo aviventou-se, e não longe desse batismo de fogo, que lhes consagrou o nome, receberam no crisma de Momo o de Tenentes do Diabo.

Nos carnavais posteriores a 1869, uma outra geração, trazendo consigo novas ideias, veio ocupar o cenário pouco povoado do passado e assistir à agonia das derradeiras associações que faleciam.

Da altura de suas aspirações, recolheu o que lhe pareceu útil, acumulando os cabedais de que presentemente dispõe.

Os Fenianos, grupo dissidente dos Tenentes do Diabo, exemplificam o que dizemos.

A partir de 1870, o carnaval concentrou-se nas grande sociedades, absorvendo os máscaras. Pequenos ranchos, foliões dispersos e de pontos distantes, para verem o desfilar de um préstito suntuoso, afluíam aos lugares indicados no itinerário, abandonando assim seus passeios, seus centros, seu meio; mas como tanto gozavam fantasiados como sem disfarce, opinaram pela conveniência, e o máscara de ontem tornou-se o curioso de hoje.

Não sabemos se com isso ganhou ou perdeu o carnaval; como regozijo popular, não é mais o que era. Os teatros, ficando vazios, porque as cavernas e as casas próprias locupletavam-se, apagaram seus lustres, fecharam suas portas; e os curiosos, depois que as sociedades passam, voltam aos seus lares, como nos dias comuns.

Entretanto, cumpre confessar que os Democráticos, Fenianos e Tenentes são justamente dignos da gloriosa reputação que lhes dispensa o público, reputação adquirida pelo espírito sutil de suas ideias, pelo aparato grandioso de seus préstitos.

Margeando as correntes modernas, substituíram as cavalgadas numerosas, os carros de máscaras, os personagens disfarçados, a mascarada geral, pelas suas custosas bandas de música, pelas alegorias do porta-estandarte, pelos carros de ideias, cada qual mais espirituoso e original, ou mais rico.

Debaixo das rodas destes carros, entretanto, ficaram esmagados os  arlequins, os polichinelos e outros tipos, que outrora tanto nos divertiram. E a alusão deixou de ser pessoal para abranger um círculo, um fato, uma ação. Aplaudidas muitas das suas críticas pela felicidade das reproduções, os acontecimentos mais ridículos e frisantes do ano são transportados para aqueles cenários ambulantes como para um baixo-relevo executado por mestre. O povo ri-se a bom rir, porque, conhecendo o assunto, pode dar aos personagens os nomes autênticos. Depois das ruidosas Alegorias em que todas as sociedades se empenham por exceder-se, seguem-se os carros de ideias, em que os Fenianos, Democráticos e Tenentes têm-se coroado de lauréis, na realidade deslumbrantes. A passagem de Vênus, em que aparecia um célebre astrônomo armado de telescópio; A mancha de Júpiter, alusão magnífica à escravidão; Braços à lavoura, As barraquinhas, a Questão dos bispos, etc., conquistaram tão vivas manifestações que a impressão produzida restou inapagável na memória pública.

Os Fenianos, os Tenentes e os Democráticos, empunhando o cetro da tradição, representam atualmente o carnaval do Rio de Janeiro.

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

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