quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 3


Uma vez Laurindo Rabelo estava na porta. Um mascarado, vestido de capim, aproxima-se. O poeta fá-lo parar e diz-lhe, torcendo o bigode:

– Meu amigo: o senhor, depois de divertir-se, come a roupa, não é assim?

Ao que o interlocutor nada respondeu, perturbado, por certo.

O imperador, a imperatriz, e as princesas observavam do passadiço do palácio a animação dos festejos, esperando um pouco retirados pelas Sumidades, cuja tardança os impacientava.

Por volta das 5 horas da tarde, a turba tomava as saídas de onde o clangor dos clarins e o tropel dos cavalos avizinhavam-se. O povo abria-se em fileiras defronte do paço; ao redor da multidão os velhos cabeçudos, de cajado e luneta, suspendiam no ar as enormes máscaras de papelão, saracoteando; os diabinhos barbudos reviravam a máscara, enrolando à cinta a cauda vermelha... A expectativa era inexcedível! E os sons se escutavam de perto, de muito perto...

A família imperial chegava às sacadas, e os vivas e urras, como uma pirâmide sonora, que enfiasse a grimpa na imensidade, tinham por base ondulante o pasmo de toda aquela população.

Logo após, transpunha o Largo do Paço a banda marcial do Congresso das Sumidades Carnavalescas, vestida com o pitoresco costume dos cossacos da Ucrânia.

Os clarins escoceses do regimento dos highlanders formavam-lhe a retaguarda, antecedendo ao carro de D. Quixote, o cavaleiro da Mancha, que fazia tremular, com a galhardia de um herói de Cervantes, o pendão admiravelmente trabalhado das Sumidades.

Todos os caleches – e deviam ser mais de doze – eram puxados a duas parelhas lindíssimas, ajaezadas com grandeza. Sobre cada carro desenrolava-se rica colcha de damasco coberta de rendas alvíssimas; e, em cima das almofadas, ou aos pés dos personagens, cestas com pequenos buquês, caixinhas com estalos fulminantes, grãos-de-bico e feijões confeitados, que cada um atirava aos espectadores das janelas e à gente aglomerada nas ruas.

No meio de bravos e flores, o primeiro grupo de cavaleiros foi de um sucesso maravilhoso. Era um grupo histórico, reproduzido com tanta propriedade e luxo no trajar, que não há quem o tivesse visto que dele não se recorde deslumbrado. Esses cavaleiros eram Nicolau I, Imperador de todas as Rússias, Abdul-Metjid, o senhor de Istambul, um grego, o Almirante Duguay-Trouin, Marco Spada e um dragão prussiano da Morte.

Parando a instantes, refreando os ginetes ariscos, jogavam às senhoras, durante o trajeto, ramos de flores, dentro dos quais metiam um cartão de visita, que tinha por fim declarar o nome dos personagens que representavam. Por exemplo:

Nicolau I cumprimenta a V. Exª, por quem morre de amores.”

Caleches com bayaderas, mandarins, nobres do Cáucaso, Benvenuto Cellini, Fernando o Católico, o Duque de Guise; grupos a cavalo, caracterizados como o Duque d’Alba, Carlos V, o Conde de Provença, Tadeu Kosciusco; faetones em que se repimpavam o Dr. Dulcamara, pregoeiros, etc., constituíam o pomposo préstito do Congresso que, em sua marcha triunfal por uma estrada de folhas verdes e aromáticas, ao dardejar das luzes que assemelhavam-se a abóbadas de fogo, às aclamações populares e às catadupas de flores e harmonias, entrava vitoriosamente no grande carnaval.

Impossível fora descrever o entusiasmo das multidões! Para caminhar no passado, só a imaginação esclarece a treva!

Na noite antecedente, o baile das Sumidades marcava notável acontecimento, por isso que, como baile à fantasia, ainda nenhum outro
enlaçou com tanto brilho e formosura, a nobreza e o talento.

O Clube Fluminense, adornado com o maior esplendor, era o palácio das representações fidalgas. As moças mais belas, membros do Ministério, do Senado, do corpo diplomático, generais, poetas, literatos, jornalistas, funcionários públicos, etc., aí se achavam dando mais realce à grandiosa festa.

Sem roteiro determinado, a passeata daquele ano realizou-se ao acaso; e depois de percorrerem o Catete, voltaram à chácara da Floresta, de onde saíram, dispersando-se afinal.

Na terça-feira fizeram o enterro do carnaval. As pompas funerárias do deus Momo não podiam ser mais solenes. O préstito seguiu a pé: carregado por dominós, o féretro simbólico foi deposto num cadafalso erguido debaixo das arcadas iluminadas da Rua das Violas. A banda militar tocou a marcha fúnebre, um membro da comissão dos festejos recitou um discurso, terminado o quê, foi transportado o ataúde, escoltado pelo Congresso, ao teatro Provisório.

Durante o trajeto, as estrondosas demonstrações excediam do entusiasmo. Vivas, poesias, alocuções burlescas na Petalógica, iluminação das ruas e do edifício do clube, bandeiras e músicas, assinalavam-lhe os triunfos.

À entrada do Lírico, as saudações da plateia e dos camarotes não foram menos significativas. Quando o Congresso das Sumidades Carnavalescas banqueteava-se nos salões, as polcas, os galopes, as quadrilhas e as valsas respiravam apenas, sufocados pelos sons dos guizos e das trompas, dos gritos estrídulos, da vozeria confusa e do bater dos pés de um louco em delírio – o Baile Mascarado!

Destarte inaugurada a festa, fora debalde querer detê-la nas suas celebrações anuais.

As Sumidades, erguendo arcos triunfais, preparavam o caminho até hoje trilhado pelo carnaval do Rio de Janeiro, em busca do templo do deus Momo, uma das mais palpitantes individualizações das bizarrices do espírito humano. E a União Veneziana, que aparecera mais tarde, chama o Congresso de irmão, e disputam-se a primazia. Ambos têm nas mãos a taça dos três dias, que ferve de risos e de esquecimento.

Com a fronte engrinaldada das rosas pálidas da folia, como as mulheres da Babilônia, o Congresso e a União antecipam-se no requinte do prazer.

A Euterpe Comercial, sociedade de música, transforma-se em Zuavos e, ano por ano, o carnaval adianta-se nas suas jornadas ruidosas. Entretanto, o Congresso, durante o seu reinado, campeou absoluto. Os seus bailes e os seus préstitos ficaram únicos.
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Continua… parte final.

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

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