segunda-feira, 24 de maio de 2021

Eduardo Affonso (A alma das palavras)

Sou aquele sujeito que lê dicionário como quem lê romance. Cada verbete é um personagem, uma subtrama.

Sou aquele cara estranho que não acredita na alma da Bíblia, mas nas almas do Aurélio, do Michaelis, do Houaiss.

Porque a estrutura de arame e madeira das esculturas de gesso, o elemento de sustentação em torno do qual se modelam as de barro é alma.

A parte correspondente à altura dos perfis metálicos é alma.

A peça de couro colocada entre a palmilha e a sola do calçado para reforçá-lo é alma.

A parte de um estopim que contém o núcleo de explosivo é alma.

Nos dicionários estão não somente os poemas que esperam para ser escritos, mas as palavras no palco onde podem ser outras, ser tantas.

Viúva é a última linha de um parágrafo impressa sozinha na parte superior de uma página. A primeira linha de um parágrafo impressa sozinha na parte inferior de uma página é uma linha órfã.

Adoçar é o ato de nivelar, aplainar, desbastar saliências ou alisar e aplainar madeiras.

Cada uma das folhas de uma dobradiça é uma asa.

O apêndice em forma de argola, ou semicircular, de certos utensílios, que serve para os segurá-los é asa.

São asas as duas pétalas laterais da flor das papilionáceas; o apêndice sedoso de certas sementes que permite ao vento disseminá-las.

É asa a ala lateral de um prédio, a nave lateral de uma igreja.

A viga onde engastam-se os degraus das escadas é banzo. A peça em pedra ou madeira, em balanço, que dá sustentação aos beirais e ao piso de sacadas ou balcões é um cachorro.

A pequena peça de madeira, em forma de cunha que evita o deslocamento das vigas ou dos sarrafos é uma espera. Num encaixe, a peça que traz uma saliência é macho. A que traz uma reentrância é fêmea.

No dicionário cada palavra –  macho, fêmea, cachorro, banzo, asa, viúva, órfã – tem uma multidão de almas à sua espera.

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