Na varanda de sua habitação, o fazendeiro e a família, desde muito cedo, lombrigavam os convidados que se aproximavam. O fazendeiro, com seu rodaque e calça de brim pardo, seu chapéu-de-chile ou manilha, pondo ao lado a xícara de café, estendia a mão sobre a testa, para melhor distinguir os vultos; a mulher e as meninas, penteadas e prontas, cresciam da ponta dos pés, alongavam o pescoço, aventurando nomes, recordando apelidos. E os primeiros chegavam, os escravos tomavam os animais, as famílias apeavam-se. O fazendeiro e os seus os recebiam, entre gracejos e abraços, riso franco, proporcionando-lhes hospitalidade proverbial e antiga.
Até alto dia era a mesma lufa-lufa: progressivo concurso de povo, a alegria mais sincera, os deveres obsequiosos mais distintos... O bando de moças, as gentis roceiras, tagarelavam, riam de qualquer coisa, fazendo contraste com as que não se levantavam das cadeiras, conservando-se mudas, apalermadas.
As moças da corte e as mais interessantes e inteligentes e da freguesia falavam em namoro com os rapazes, recitavam a balada da Moreninha do Dr. Macedo, tinha de cor as poesias sentimentais dos poetas do tempo.
A fazendeira, com seu vestido de musselina, trepa-moleque, e lencinho ao pescoço, desfazia-se em delicadezas, em oferecimentos aos convidados, procurando-lhes o conforto, a sem-cerimônia mais cordial. Neste ínterim a casa da moenda acabava-se de armar, os escravos estavam a postos, os caldeirões areados e espelhantes, o forno provido de lenha.
A um momento inesperado, a música da vila tocava ao longe, assomando em um carro de bois, todo enfeitado de flores e ramagens, trazendo o guia o chapéu circulado de flores do mato, lindas e vistosas. O prazer, que com as harmonias, mesmo longínquas, se espalhava na fazenda, era indizível: todos corriam às varandas; as mucamas e as crias desciam à porta; os foreiros saíam de suas casas de sapé, chegando-se ao terreiro.
Apesar do prodigioso número de convidados, da parentela sem fim dos donos da casa, do povo que se reunia em festivo convívio, uma nota discordante se percebia, causando geral inquietação e sensível impaciência: a ausência do vigário!
Era da tradição que, não se benzendo o engenho em cada safra do ano, tudo corria mal: os escravos morriam ou decepavam as mãos nas moendas; um desastre qualquer perturbava a paz da família; um acontecimento fatal punha em atraso a vida do fazendeiro.
No pleno domínio desta superstição, que acreditamos uma verdade, o não comparecimento do vigário importava a transferência da festa, ou a procura de outro sacerdote, que nem sempre era fácil, concorrendo esse expediente, embora autorizado, para ressentimentos da parte daquele: o que cumpria evitar.
Como é de prever, as moças faziam promessas, acendiam a Nossa Senhora, pediam a todos os santos para que nada lhe tivesse acontecido, sendo logo enviados pajens a cavalo à freguesia, a fim de indagar do motivo da tardança.
E a música descia... E de um dos carros cobertos de colchas de chita, que se encaminhavam após, apeava-se o folgazão e nédio vigário, trazendo consigo a esparramada comadre e a récua de afilhados...
A recepção, debaixo de vivas, tornava-se estrepitosa; e o velho fazendeiro e sua mulher, as pessoas mais gradas e os primeiros personagens políticos da localidade batiam palmas, dirigiam-se a ele, aos apertos de mão, aos abraços, em expansivas manifestações.
Pouco depois, o vigário e seu sacristão tiravam de uma caixa de folha-de-flandres os seus paramentos, a gente toda seguia para a missa e depois para a casa da moenda, formando um derradeiro grupo o fazendeiro, o vigário o juiz do termo, o juiz de paz, e suas competentes famílias.
Uma vez na casa do engenho, a gente toda ficava embaixo, na grande área ocupada pela almanjarra, as caldeiras, os alambiques, os cochos, o orno, etc., indispensáveis ao fabrico de açúcar e da aguardente.
O vigário, de batina, sobrepeliz e estola, tendo ao lado o sacristão, abria o livro sagrado, ao passo que muitos dos circunstantes recebiam tochas enfeitadas e acesas. As moças e as matronas, em fileiras sucessivas, com seu séquito de belas mucamas, assistiam igualmente ao ato vestidas à moda, sobressaindo em suas vestimentas e nos cabelos lacinhos de fitas verdes e amarelas, flores nativas. E o vigário começava a bênção do engenho, finda a qual fechava o livro e afastava-se, cedendo espaço à cerimônia da inauguração.
A música, em desafinação constante, atroadora a fazer despertar um cataléptico, passava-se da celebração religiosa para a festa profana, ao estouro dos foguetes que se atacavam lá fora, das girândolas que sibilavam intermitentes até a conclusão da cerimônia.
Nesta ocasião, muitos dos circunstantes, homens, senhoras e crianças, subiam para as varandas interiores, aparatosamente ornadas, e dali gozavam da festa da moagem, propriamente dita, da inauguração anual dos trabalhos da fábrica, segundo o ritual observado por nossos lavradores...
E as moças aos cochichos, às risadinhas, nos requebros desconfiados, adiantavam-se para a almanjarra, passando a cada uma delas sua vistosa mucama um feixinho de canas raspadas, presas por laços de fitas, que eram delicada e cuidadosamente colocadas por suas senhoras dentro dos cilindros da moenda.
A música atordoava ainda mais, as palmas choviam, e um molequinho, de roupa bonita e chapéu entremeado de folhas e flores, trepava na boleia fixa a uma das hastes do triângulo da almanjarra, tocava a parelha de burros, fazendo girar todo o maquinismo.
Os escravos empregados nesse trabalho debandavam, cada qual para seu mister especial, com grandes escumadeiras e outros utensílios da indústria.
Então o vigário, o fazendeiro, o madamismo e mais circunstantes, que presidiam a inauguração, reuniam-se aos convidados, que se achavam nas varandas, seguindo todos em ruidosa folia para a casa de vivenda, onde lauta refeição, opípara merenda era servida, trocando-se brindes calorosos, entusiásticos.
E o engenho moía ativíssimo, esgotado o primeiro caldo, lavados os condutores. Em seguida, em riquíssimos bules de prata, levavam as escravas saboroso caldo de cana, geralmente apreciado, sobretudo por ser o da primeira moagem.
Toda a escravatura, os foreiros em tropa e os conhecidos destes, apreciavam, no terreiro e na fábrica, o caldo que se distribuía a granel, em cuias de cabaço amargoso, ao uso da roça.
Nesse dia, à exceção da gente do engenho, ninguém mais trabalhava: os escravos batucavam depois do jantar; os foreiros dançavam e cantavam; os senhores moços presenteavam as crioulas e as mulatas de estimação com belos cortes de vestidos de chita e de cassa, fios de corais, brincos de ouro, etc.
Desde o anoitecer a música preludiava o baile, que começava às nove horas e findava de manhã.
Aos que haviam assistido à inauguração era de costume mandar-se potes de melado e rapaduras, como lembrança da festa.
E enquanto o baile estuava nos salões dos senhores, enquanto a sorte coroava de bens a opulência, à luz fumarenta dos candeeiros do muro externo das senzalas, ao fogo de pequenas fogueiras que ardiam tímidas, os escravos dançavam as suas danças, cantavam as suas toadas, aos tinidos das violas, dos urucungos e das marimbas, tangidas na solidão:
Até alto dia era a mesma lufa-lufa: progressivo concurso de povo, a alegria mais sincera, os deveres obsequiosos mais distintos... O bando de moças, as gentis roceiras, tagarelavam, riam de qualquer coisa, fazendo contraste com as que não se levantavam das cadeiras, conservando-se mudas, apalermadas.
As moças da corte e as mais interessantes e inteligentes e da freguesia falavam em namoro com os rapazes, recitavam a balada da Moreninha do Dr. Macedo, tinha de cor as poesias sentimentais dos poetas do tempo.
A fazendeira, com seu vestido de musselina, trepa-moleque, e lencinho ao pescoço, desfazia-se em delicadezas, em oferecimentos aos convidados, procurando-lhes o conforto, a sem-cerimônia mais cordial. Neste ínterim a casa da moenda acabava-se de armar, os escravos estavam a postos, os caldeirões areados e espelhantes, o forno provido de lenha.
A um momento inesperado, a música da vila tocava ao longe, assomando em um carro de bois, todo enfeitado de flores e ramagens, trazendo o guia o chapéu circulado de flores do mato, lindas e vistosas. O prazer, que com as harmonias, mesmo longínquas, se espalhava na fazenda, era indizível: todos corriam às varandas; as mucamas e as crias desciam à porta; os foreiros saíam de suas casas de sapé, chegando-se ao terreiro.
Apesar do prodigioso número de convidados, da parentela sem fim dos donos da casa, do povo que se reunia em festivo convívio, uma nota discordante se percebia, causando geral inquietação e sensível impaciência: a ausência do vigário!
Era da tradição que, não se benzendo o engenho em cada safra do ano, tudo corria mal: os escravos morriam ou decepavam as mãos nas moendas; um desastre qualquer perturbava a paz da família; um acontecimento fatal punha em atraso a vida do fazendeiro.
No pleno domínio desta superstição, que acreditamos uma verdade, o não comparecimento do vigário importava a transferência da festa, ou a procura de outro sacerdote, que nem sempre era fácil, concorrendo esse expediente, embora autorizado, para ressentimentos da parte daquele: o que cumpria evitar.
Como é de prever, as moças faziam promessas, acendiam a Nossa Senhora, pediam a todos os santos para que nada lhe tivesse acontecido, sendo logo enviados pajens a cavalo à freguesia, a fim de indagar do motivo da tardança.
E a música descia... E de um dos carros cobertos de colchas de chita, que se encaminhavam após, apeava-se o folgazão e nédio vigário, trazendo consigo a esparramada comadre e a récua de afilhados...
A recepção, debaixo de vivas, tornava-se estrepitosa; e o velho fazendeiro e sua mulher, as pessoas mais gradas e os primeiros personagens políticos da localidade batiam palmas, dirigiam-se a ele, aos apertos de mão, aos abraços, em expansivas manifestações.
Pouco depois, o vigário e seu sacristão tiravam de uma caixa de folha-de-flandres os seus paramentos, a gente toda seguia para a missa e depois para a casa da moenda, formando um derradeiro grupo o fazendeiro, o vigário o juiz do termo, o juiz de paz, e suas competentes famílias.
Uma vez na casa do engenho, a gente toda ficava embaixo, na grande área ocupada pela almanjarra, as caldeiras, os alambiques, os cochos, o orno, etc., indispensáveis ao fabrico de açúcar e da aguardente.
O vigário, de batina, sobrepeliz e estola, tendo ao lado o sacristão, abria o livro sagrado, ao passo que muitos dos circunstantes recebiam tochas enfeitadas e acesas. As moças e as matronas, em fileiras sucessivas, com seu séquito de belas mucamas, assistiam igualmente ao ato vestidas à moda, sobressaindo em suas vestimentas e nos cabelos lacinhos de fitas verdes e amarelas, flores nativas. E o vigário começava a bênção do engenho, finda a qual fechava o livro e afastava-se, cedendo espaço à cerimônia da inauguração.
A música, em desafinação constante, atroadora a fazer despertar um cataléptico, passava-se da celebração religiosa para a festa profana, ao estouro dos foguetes que se atacavam lá fora, das girândolas que sibilavam intermitentes até a conclusão da cerimônia.
Nesta ocasião, muitos dos circunstantes, homens, senhoras e crianças, subiam para as varandas interiores, aparatosamente ornadas, e dali gozavam da festa da moagem, propriamente dita, da inauguração anual dos trabalhos da fábrica, segundo o ritual observado por nossos lavradores...
E as moças aos cochichos, às risadinhas, nos requebros desconfiados, adiantavam-se para a almanjarra, passando a cada uma delas sua vistosa mucama um feixinho de canas raspadas, presas por laços de fitas, que eram delicada e cuidadosamente colocadas por suas senhoras dentro dos cilindros da moenda.
A música atordoava ainda mais, as palmas choviam, e um molequinho, de roupa bonita e chapéu entremeado de folhas e flores, trepava na boleia fixa a uma das hastes do triângulo da almanjarra, tocava a parelha de burros, fazendo girar todo o maquinismo.
Os escravos empregados nesse trabalho debandavam, cada qual para seu mister especial, com grandes escumadeiras e outros utensílios da indústria.
Então o vigário, o fazendeiro, o madamismo e mais circunstantes, que presidiam a inauguração, reuniam-se aos convidados, que se achavam nas varandas, seguindo todos em ruidosa folia para a casa de vivenda, onde lauta refeição, opípara merenda era servida, trocando-se brindes calorosos, entusiásticos.
E o engenho moía ativíssimo, esgotado o primeiro caldo, lavados os condutores. Em seguida, em riquíssimos bules de prata, levavam as escravas saboroso caldo de cana, geralmente apreciado, sobretudo por ser o da primeira moagem.
Toda a escravatura, os foreiros em tropa e os conhecidos destes, apreciavam, no terreiro e na fábrica, o caldo que se distribuía a granel, em cuias de cabaço amargoso, ao uso da roça.
Nesse dia, à exceção da gente do engenho, ninguém mais trabalhava: os escravos batucavam depois do jantar; os foreiros dançavam e cantavam; os senhores moços presenteavam as crioulas e as mulatas de estimação com belos cortes de vestidos de chita e de cassa, fios de corais, brincos de ouro, etc.
Desde o anoitecer a música preludiava o baile, que começava às nove horas e findava de manhã.
Aos que haviam assistido à inauguração era de costume mandar-se potes de melado e rapaduras, como lembrança da festa.
E enquanto o baile estuava nos salões dos senhores, enquanto a sorte coroava de bens a opulência, à luz fumarenta dos candeeiros do muro externo das senzalas, ao fogo de pequenas fogueiras que ardiam tímidas, os escravos dançavam as suas danças, cantavam as suas toadas, aos tinidos das violas, dos urucungos e das marimbas, tangidas na solidão:
A vida do preto escravo
É um pendão de penar:
Trabalhando todo dia
Sem noite pra descansar.
É um pendão de penar:
Trabalhando todo dia
Sem noite pra descansar.
E um morador, sapateando na chula animada e fervente:
A cachaça é moça branca
Filha de pardo trigueiro:
Quem bebe muita cachaça
Não pode ajuntar dinheiro...
Cana verde, cana verde,
Cana do ca navial,
Eu já fui mestre d’açúcar,
Hoje sou oficial.
Filha de pardo trigueiro:
Quem bebe muita cachaça
Não pode ajuntar dinheiro...
Cana verde, cana verde,
Cana do ca navial,
Eu já fui mestre d’açúcar,
Hoje sou oficial.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma semana mais tarde tudo estava mudado. A fazenda, adormecida à meia-noite, tomava um aspecto sinistro e aterrador. Os vaga-lumes faiscavam no campo e nos tetos das senzalas; a fornalha do engenho, como o olho esbraseado de um demônio, golfejava chamas nas trevas que fugiam espavoridas; e o silêncio, pesado como uma mortalha, caía sobre a planície e a colina.
De espaço a espaço, porém, uma melodia em voz rouca, monótona e cadenciada como o coaxar dos remos na travessia das canoas, feria o ar, despertando os ecos dos ermos... Era um velho africano, sonolento e alquebrado, que, sentado na almanjarra, tocava os animais que a rodeavam lerdos e fatigados:
Uma semana mais tarde tudo estava mudado. A fazenda, adormecida à meia-noite, tomava um aspecto sinistro e aterrador. Os vaga-lumes faiscavam no campo e nos tetos das senzalas; a fornalha do engenho, como o olho esbraseado de um demônio, golfejava chamas nas trevas que fugiam espavoridas; e o silêncio, pesado como uma mortalha, caía sobre a planície e a colina.
De espaço a espaço, porém, uma melodia em voz rouca, monótona e cadenciada como o coaxar dos remos na travessia das canoas, feria o ar, despertando os ecos dos ermos... Era um velho africano, sonolento e alquebrado, que, sentado na almanjarra, tocava os animais que a rodeavam lerdos e fatigados:
Eh-bango!
Bango-eh!
Caxinguelê...
Come coco no cocá...
Tango, arirá...
Tango, arirá...
Bango-eh!
Caxinguelê...
Come coco no cocá...
Tango, arirá...
Tango, arirá...
E o chicote estalava, completando a onomatopeia desta toada que terminava silábica, pausada, admirativa e estacando de súbito:
Eh – ah!...
Uma vez inaugurada a moagem, os escravos trabalhavam dia e noite, em turmas alternadas, mas sem parar.
O tempo da safra durava por meses.
Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil.
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.
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