segunda-feira, 17 de maio de 2021

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Escoteiro

Ainda revejo nitidamente aquele escoteirinho que entrou hoje no bonde pela mão do venerando papai. Um feixinho de ossos, olhos brancos, lábio pendente, postura curva e bamba de aluno de catecismo. Retrato ideal do menino dócil e bem comportado.

Se o inflexível progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso, sorriso frágil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos de animalzinho perfeitamente domesticado.

O pai, sem dúvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso, tão automático na obediência e na penúria de vida. O pequeno chamava-lhe papai. Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor.

Progenitor é o nome que na verdade calha a esta espécie de autores de vidas alheias. Impiedosamente solícitos, eles parasitam as suas misérrimas criaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito de ser senhores de almas. Estão cheios da crença surda de que o melhor que podem fazer a seus filhos é formá-los à sua semelhança.

Parecem orgulhosos de ter mudado o empirismo da paternidade numa especialização técnica. Têm o ar de pais de família diplomados.

Já não lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religião, da Medicina, da Gramática e do don't. Renovas achegas até na Sociologia. A Psicologia vai-se-lhes impondo como um evangelho (tanto mais cômodo quanto se pode abrir em qualquer lugar e ler de corrida ou salteado). Creio que a heráldica e o cálculo integral também têm que ver com a matéria.

Progenitores! progenitores! homens respeitáveis, sapientes e pendentes, sagazes e tenazes. Tenazes sobretudo. Tenazes de ferro! Só lhes falta um pouco de bom senso e um pouco do senso de humanidade. E apenas perdem o direito a esse nome simples, vivo, saboroso e místico de pai.

Pai! Palavra elementar e profunda irmã de ar, água, pão, sol, dor, alegria, esperança, coisas fundamentais e essenciais, belas e terríveis como tudo quanto nos supera, tudo quanto nos vivifica, nos vê passar, e continua. Palavra de ressonâncias externas, com barulhos de lágrimas e anseios de amor, de melancolia e de piedade.

Mas também isso tende a desaparecer sob a capa de chumbo do cientificismo, do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas que vão devorando todas as boas coisas deste mundo triste, como aquelas vacas que devoravam vacas, no sonho do faraó.

Os persas, de há dois mil anos, segundo o testemunho de Heródoto, não queriam que seus filhos aprendessem nada mais que três coisas: montar a cavalo, manejar o arco e dizer a verdade. Era um programa completo de educação individual e geral, utilitária e idealista, física e psíquica, individual e social.

Montar a cavalo - eis a primeira necessidade. Todos temos de ser cavaleiros, de guiar uma besta e de nos servir dela. Manejar o arco - arma franca, simples e forte, ato de habilidade, de sangue frio, de coragem viril e leal, abertamente praticado à luz do sol, em cima do cavalo. Dizer a verdade - condensação última e por feita de todos os deveres, dos mais sérios, mais ásperos, mais agoniantes e esporeantes deveres da vida comum, da atividade intelectual que quer pairar no alto e ser fecunda, da sublimação moral que pretende chegar à retidão, à simplicidade e ao fulgor definitivo.

Mas estas sínteses divinatórias se vão tornando impossíveis. Tudo é sabença, é técnica, é pedantologia, é complicação.

Diante daquele pai e daquele filho, fiquei a pensar na sorte das belas ideias e no irônico destino dos inventores.

O escotismo nasceu do exemplo dado pelos boys sul-africanos na guerra contra os ingleses. Ágeis e robustos, trepando às árvores como serelepes, arrastando-se por chãos e pedregais como lagartixas, varando lagoas como filhotes de hipopótamos, espertos e pândegos como gorilazinhos, prudentes como tartarugas, teimosos como porcos do mato, eram ótimos exploradores e espias de campanha.

Num contato combinado com a áspera natureza e a necessidade multiforme e imperiosa, ganhavam uma força de paciência, de coragem e de desprendimento, uma flexibilidade e rapidez de senso prático, uma destreza de espírito, que, em suma, constituíam uma bela moralidade agreste e saudável, natural como a respiração ou como as funções digestivas.

Desconheciam as intemperanças da paz e da praça, o beberete, o estupefaciente, a literatura desalmada, a gula, o dinheiro, o luxo, o mercantilismo, a cabotinagem, a intriga, a maledicência, o espírito, o hermetismo sentimental e sexual. Sóbrios, tácitos, incisivos. Da civilização, só assimilavam a fina flor; da barbárie, a masculinidade sadia, generosa e jovial.

Um general britânico viu isso, franziu impressionado o sobrolho, curvou a cabeça, parafusou. Por que não transplantar essa espontânea florescência da casualidade viva para os domínios da educação social?

Voltando à Inglaterra, criou o escotismo. Era o remédio indicado para sanear várias fontes de podridão, que iam minando a fibra do old Tom.

O mundo todo pegou a fórmula e aplicou-a. Mas, geralmente, a fórmula só. O eterno prestigio das receitas não podia falhar: a receita pareceu esplêndida. Bela receita! E a receita voou para todos os cantos do mundo, como a última descoberta para limpar chapéus de palha, para curar defluxos ou para compor obras de arte geniais e vendáveis.

O resultado ei-lo aí: uma quantidade de coelhinhos guardanacionalizados; uma escola de virilidade, de independência, de self control e de ânimo benfazejo, mudada numa triste e gélida pedagogia, regular, burocrática, higiênica, ginástica, homenageativa, sob programazinhos variados que são sempre a mesma coisa. E tudo comandado a toques de apito, entremeado de discursos e - supremo horror! - tudo meticulosamente, implacavelmente mecanizado pela sapiência mensuradora dos técnicos.

Ah! os terríveis técnicos, os tenebrosos técnicos, iscados até à medula por esse flagelo do século, o tecnicismo antisséptico, esterilizador de toda bactéria de entusiasmos e instintividades turbulentas e regenerativas!

Essa, a marcha inevitável de todas as altas ideias quando descem ao campo da realização, que é o da degradação. Esse, o irônico destino que aguarda os sonhos de todos os inventores, concepções luminosas cujo arcabouço lógico se transmite e se propaga, mas cuja alma lírica e divinatória permanece no altiplano das possibilidades incompreendidas.

Esta alma é incomunicável, como a alma do Vesúvio é estranha aos hábeis artistas que cá por baixo, colhem a lava resfriada para talhar nela as suas eternas, invariáveis figurinhas.

Fonte:
Amadeu Amaral. Memorial de um passageiro de bonde. 1927.

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