Ainda revejo nitidamente aquele escoteirinho que entrou hoje no bonde pela mão do venerando papai. Um feixinho de ossos, olhos brancos, lábio pendente, postura curva e bamba de aluno de catecismo. Retrato ideal do menino dócil e bem comportado.
Se o inflexível progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso, sorriso frágil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos de animalzinho perfeitamente domesticado.
O pai, sem dúvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso, tão automático na obediência e na penúria de vida. O pequeno chamava-lhe papai. Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor.
Progenitor é o nome que na verdade calha a esta espécie de autores de vidas alheias. Impiedosamente solícitos, eles parasitam as suas misérrimas criaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito de ser senhores de almas. Estão cheios da crença surda de que o melhor que podem fazer a seus filhos é formá-los à sua semelhança.
Parecem orgulhosos de ter mudado o empirismo da paternidade numa especialização técnica. Têm o ar de pais de família diplomados.
Já não lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religião, da Medicina, da Gramática e do don't. Renovas achegas até na Sociologia. A Psicologia vai-se-lhes impondo como um evangelho (tanto mais cômodo quanto se pode abrir em qualquer lugar e ler de corrida ou salteado). Creio que a heráldica e o cálculo integral também têm que ver com a matéria.
Progenitores! progenitores! homens respeitáveis, sapientes e pendentes, sagazes e tenazes. Tenazes sobretudo. Tenazes de ferro! Só lhes falta um pouco de bom senso e um pouco do senso de humanidade. E apenas perdem o direito a esse nome simples, vivo, saboroso e místico de pai.
Pai! Palavra elementar e profunda irmã de ar, água, pão, sol, dor, alegria, esperança, coisas fundamentais e essenciais, belas e terríveis como tudo quanto nos supera, tudo quanto nos vivifica, nos vê passar, e continua. Palavra de ressonâncias externas, com barulhos de lágrimas e anseios de amor, de melancolia e de piedade.
Mas também isso tende a desaparecer sob a capa de chumbo do cientificismo, do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas que vão devorando todas as boas coisas deste mundo triste, como aquelas vacas que devoravam vacas, no sonho do faraó.
Os persas, de há dois mil anos, segundo o testemunho de Heródoto, não queriam que seus filhos aprendessem nada mais que três coisas: montar a cavalo, manejar o arco e dizer a verdade. Era um programa completo de educação individual e geral, utilitária e idealista, física e psíquica, individual e social.
Montar a cavalo - eis a primeira necessidade. Todos temos de ser cavaleiros, de guiar uma besta e de nos servir dela. Manejar o arco - arma franca, simples e forte, ato de habilidade, de sangue frio, de coragem viril e leal, abertamente praticado à luz do sol, em cima do cavalo. Dizer a verdade - condensação última e por feita de todos os deveres, dos mais sérios, mais ásperos, mais agoniantes e esporeantes deveres da vida comum, da atividade intelectual que quer pairar no alto e ser fecunda, da sublimação moral que pretende chegar à retidão, à simplicidade e ao fulgor definitivo.
Mas estas sínteses divinatórias se vão tornando impossíveis. Tudo é sabença, é técnica, é pedantologia, é complicação.
Diante daquele pai e daquele filho, fiquei a pensar na sorte das belas ideias e no irônico destino dos inventores.
O escotismo nasceu do exemplo dado pelos boys sul-africanos na guerra contra os ingleses. Ágeis e robustos, trepando às árvores como serelepes, arrastando-se por chãos e pedregais como lagartixas, varando lagoas como filhotes de hipopótamos, espertos e pândegos como gorilazinhos, prudentes como tartarugas, teimosos como porcos do mato, eram ótimos exploradores e espias de campanha.
Num contato combinado com a áspera natureza e a necessidade multiforme e imperiosa, ganhavam uma força de paciência, de coragem e de desprendimento, uma flexibilidade e rapidez de senso prático, uma destreza de espírito, que, em suma, constituíam uma bela moralidade agreste e saudável, natural como a respiração ou como as funções digestivas.
Desconheciam as intemperanças da paz e da praça, o beberete, o estupefaciente, a literatura desalmada, a gula, o dinheiro, o luxo, o mercantilismo, a cabotinagem, a intriga, a maledicência, o espírito, o hermetismo sentimental e sexual. Sóbrios, tácitos, incisivos. Da civilização, só assimilavam a fina flor; da barbárie, a masculinidade sadia, generosa e jovial.
Um general britânico viu isso, franziu impressionado o sobrolho, curvou a cabeça, parafusou. Por que não transplantar essa espontânea florescência da casualidade viva para os domínios da educação social?
Voltando à Inglaterra, criou o escotismo. Era o remédio indicado para sanear várias fontes de podridão, que iam minando a fibra do old Tom.
O mundo todo pegou a fórmula e aplicou-a. Mas, geralmente, a fórmula só. O eterno prestigio das receitas não podia falhar: a receita pareceu esplêndida. Bela receita! E a receita voou para todos os cantos do mundo, como a última descoberta para limpar chapéus de palha, para curar defluxos ou para compor obras de arte geniais e vendáveis.
O resultado ei-lo aí: uma quantidade de coelhinhos guardanacionalizados; uma escola de virilidade, de independência, de self control e de ânimo benfazejo, mudada numa triste e gélida pedagogia, regular, burocrática, higiênica, ginástica, homenageativa, sob programazinhos variados que são sempre a mesma coisa. E tudo comandado a toques de apito, entremeado de discursos e - supremo horror! - tudo meticulosamente, implacavelmente mecanizado pela sapiência mensuradora dos técnicos.
Ah! os terríveis técnicos, os tenebrosos técnicos, iscados até à medula por esse flagelo do século, o tecnicismo antisséptico, esterilizador de toda bactéria de entusiasmos e instintividades turbulentas e regenerativas!
Essa, a marcha inevitável de todas as altas ideias quando descem ao campo da realização, que é o da degradação. Esse, o irônico destino que aguarda os sonhos de todos os inventores, concepções luminosas cujo arcabouço lógico se transmite e se propaga, mas cuja alma lírica e divinatória permanece no altiplano das possibilidades incompreendidas.
Esta alma é incomunicável, como a alma do Vesúvio é estranha aos hábeis artistas que cá por baixo, colhem a lava resfriada para talhar nela as suas eternas, invariáveis figurinhas.
Se o inflexível progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso, sorriso frágil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos de animalzinho perfeitamente domesticado.
O pai, sem dúvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso, tão automático na obediência e na penúria de vida. O pequeno chamava-lhe papai. Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor.
Progenitor é o nome que na verdade calha a esta espécie de autores de vidas alheias. Impiedosamente solícitos, eles parasitam as suas misérrimas criaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito de ser senhores de almas. Estão cheios da crença surda de que o melhor que podem fazer a seus filhos é formá-los à sua semelhança.
Parecem orgulhosos de ter mudado o empirismo da paternidade numa especialização técnica. Têm o ar de pais de família diplomados.
Já não lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religião, da Medicina, da Gramática e do don't. Renovas achegas até na Sociologia. A Psicologia vai-se-lhes impondo como um evangelho (tanto mais cômodo quanto se pode abrir em qualquer lugar e ler de corrida ou salteado). Creio que a heráldica e o cálculo integral também têm que ver com a matéria.
Progenitores! progenitores! homens respeitáveis, sapientes e pendentes, sagazes e tenazes. Tenazes sobretudo. Tenazes de ferro! Só lhes falta um pouco de bom senso e um pouco do senso de humanidade. E apenas perdem o direito a esse nome simples, vivo, saboroso e místico de pai.
Pai! Palavra elementar e profunda irmã de ar, água, pão, sol, dor, alegria, esperança, coisas fundamentais e essenciais, belas e terríveis como tudo quanto nos supera, tudo quanto nos vivifica, nos vê passar, e continua. Palavra de ressonâncias externas, com barulhos de lágrimas e anseios de amor, de melancolia e de piedade.
Mas também isso tende a desaparecer sob a capa de chumbo do cientificismo, do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas que vão devorando todas as boas coisas deste mundo triste, como aquelas vacas que devoravam vacas, no sonho do faraó.
Os persas, de há dois mil anos, segundo o testemunho de Heródoto, não queriam que seus filhos aprendessem nada mais que três coisas: montar a cavalo, manejar o arco e dizer a verdade. Era um programa completo de educação individual e geral, utilitária e idealista, física e psíquica, individual e social.
Montar a cavalo - eis a primeira necessidade. Todos temos de ser cavaleiros, de guiar uma besta e de nos servir dela. Manejar o arco - arma franca, simples e forte, ato de habilidade, de sangue frio, de coragem viril e leal, abertamente praticado à luz do sol, em cima do cavalo. Dizer a verdade - condensação última e por feita de todos os deveres, dos mais sérios, mais ásperos, mais agoniantes e esporeantes deveres da vida comum, da atividade intelectual que quer pairar no alto e ser fecunda, da sublimação moral que pretende chegar à retidão, à simplicidade e ao fulgor definitivo.
Mas estas sínteses divinatórias se vão tornando impossíveis. Tudo é sabença, é técnica, é pedantologia, é complicação.
Diante daquele pai e daquele filho, fiquei a pensar na sorte das belas ideias e no irônico destino dos inventores.
O escotismo nasceu do exemplo dado pelos boys sul-africanos na guerra contra os ingleses. Ágeis e robustos, trepando às árvores como serelepes, arrastando-se por chãos e pedregais como lagartixas, varando lagoas como filhotes de hipopótamos, espertos e pândegos como gorilazinhos, prudentes como tartarugas, teimosos como porcos do mato, eram ótimos exploradores e espias de campanha.
Num contato combinado com a áspera natureza e a necessidade multiforme e imperiosa, ganhavam uma força de paciência, de coragem e de desprendimento, uma flexibilidade e rapidez de senso prático, uma destreza de espírito, que, em suma, constituíam uma bela moralidade agreste e saudável, natural como a respiração ou como as funções digestivas.
Desconheciam as intemperanças da paz e da praça, o beberete, o estupefaciente, a literatura desalmada, a gula, o dinheiro, o luxo, o mercantilismo, a cabotinagem, a intriga, a maledicência, o espírito, o hermetismo sentimental e sexual. Sóbrios, tácitos, incisivos. Da civilização, só assimilavam a fina flor; da barbárie, a masculinidade sadia, generosa e jovial.
Um general britânico viu isso, franziu impressionado o sobrolho, curvou a cabeça, parafusou. Por que não transplantar essa espontânea florescência da casualidade viva para os domínios da educação social?
Voltando à Inglaterra, criou o escotismo. Era o remédio indicado para sanear várias fontes de podridão, que iam minando a fibra do old Tom.
O mundo todo pegou a fórmula e aplicou-a. Mas, geralmente, a fórmula só. O eterno prestigio das receitas não podia falhar: a receita pareceu esplêndida. Bela receita! E a receita voou para todos os cantos do mundo, como a última descoberta para limpar chapéus de palha, para curar defluxos ou para compor obras de arte geniais e vendáveis.
O resultado ei-lo aí: uma quantidade de coelhinhos guardanacionalizados; uma escola de virilidade, de independência, de self control e de ânimo benfazejo, mudada numa triste e gélida pedagogia, regular, burocrática, higiênica, ginástica, homenageativa, sob programazinhos variados que são sempre a mesma coisa. E tudo comandado a toques de apito, entremeado de discursos e - supremo horror! - tudo meticulosamente, implacavelmente mecanizado pela sapiência mensuradora dos técnicos.
Ah! os terríveis técnicos, os tenebrosos técnicos, iscados até à medula por esse flagelo do século, o tecnicismo antisséptico, esterilizador de toda bactéria de entusiasmos e instintividades turbulentas e regenerativas!
Essa, a marcha inevitável de todas as altas ideias quando descem ao campo da realização, que é o da degradação. Esse, o irônico destino que aguarda os sonhos de todos os inventores, concepções luminosas cujo arcabouço lógico se transmite e se propaga, mas cuja alma lírica e divinatória permanece no altiplano das possibilidades incompreendidas.
Esta alma é incomunicável, como a alma do Vesúvio é estranha aos hábeis artistas que cá por baixo, colhem a lava resfriada para talhar nela as suas eternas, invariáveis figurinhas.
Fonte:
Amadeu Amaral. Memorial de um passageiro de bonde. 1927.
Amadeu Amaral. Memorial de um passageiro de bonde. 1927.
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