domingo, 16 de maio de 2021

Rachel de Queiroz (O Cometa)

Anuncia-se a aparição de um cometa nos céus do nosso mundo; durante dez dias, no espaço de tempo compreendido entre 10 e 20 de janeiro de 1974, passará mais perto de nós o astro vagabundo, cujo nome estranho é o do astrônomo tcheco que o descobriu — Kohoutec — e cuja luz é cinco vezes mais forte que a da estrela Sírius, a mais brilhante do nosso firmamento.

Mas aqui, na América do Sul, o cometa Kohoutec se exibirá desde antes. E justamente na véspera do Natal, quando já será perfeitamente visível em céus sul-americanos, a sua aparição vai coincidir com um eclipse do Sol, previsto para o mesmo dia. Imagino como não será lindo, lindo de matar, o espetáculo celeste; o Sol escondido, mostrando apenas a sua corona de fogo e, no céu diurno mas em crepúsculo, o astro singular com a sua imensa cauda luminosa.

Vai haver muito medo. Dizem que na aparição do cometa de Halley, em 1910, a gente humilde se ajoelhava pelos terreiros, pedindo demência a Deus e a todos os santos. Pois cometas são o sinal de epidemias e calamidades; a peste, a fome, a guerra e a morte, os quatro cavaleiros do Apocalipse, são tidos como acompanhantes da cauda de um cometa. Faz mal olhar para ele com a cabeça descoberta; nem se deve fitá-lo muito tempo sem baixar a vista: o resultado pode ser a gota serena.

Se os meninos nascidos sob a luz de um cometa serão fortes, astutos e violentos, as crianças geradas no tempo da sua aparição serão movidas, de ossos fracos, com tendência à loucura e à melancolia. O melhor portanto é evitar a prática do amor nessa fase perigosa Também quem já foi mordido de cachorro doído, cuidado — pode sair uivando feito lobisomem e ai de quem cruzar o seu caminho. Igualmente quem já foi picado de cobra venenosa: a peçonha que já estava cristalizada em algum recanto do corpo, forma bolsa debaixo da língua, vaza na saliva e pode matar o próprio paciente ou qualquer outra pessoa que o padecente morder, arranhar — ou beijar.

As ninhadas de ovos goram nos ninhos; passarinho de voo noturno permanece escondido e não se arrisca a sair, pois sabe que ficaria encandeado com a luz estranha e cairia no chão como ferido de bala.

Por falar em bala, quem costuma andar armado é melhor deixar a faca em casa, se acaso sair em noite de cometa. Porque o aço é atraído pela força do astro e parece até que salta da mão do portador. Já nas cargas dos cartuchos, o chumbo, sendo metal venenoso, não sofre influência e, nesse caso, o que acontece é não se acertar um tiro.

Mas tudo isso tem um parecer contrário. Porque muita gente opina que o cometa aparecendo a 24 de dezembro, é astro propício; quem sabe até não é a mesma estrela caminhante que guiou os reis magos à gruta de Belém. Então, dela só se devem esperar benefícios e bons eflúvios; em vez dos temidos malefícios, sobre nós irão cair as graças e prazeres que a vinda do Menino Deus significa para o mundo.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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