A culpa não era dele, mas o patrão não quis ouvir explicações.
- Está despedido!
Isto foi há três meses. Daí pra cá, tentou o que pôde uma nova colocação. Comprava o jornal às cinco e saía tentando uma vaga de motorista. Sempre chegava depois do lugar já tomado. Quando não, exigiam referências que não tinha.
Usou o dinheiro da caderneta de poupança e vendeu o relógio, para alimentar a família. Heloísa estimulava-o.
— Quem sabe amanhã.. .
Amanhã era igual. Quantos amanhãs teria que esperar? Estava desesperado, quando o convidaram para dirigir o automóvel. Sabia do erro, do perigo, das possibilidades de prisão, mas aceitou. Viu aí a saída do beco.
— Eu te aviso no dia.
Passou a ter, em casa, comportamento diferente. Ficou nervoso, excitado, sem conseguir a naturalidade antiga.
— Que é que você tem?
— Eu?
— É. Está nervoso.
— Nada. Não tenho nada.
E saía da sala para cortar o assunto no nascedouro.
O carro era um Volkswagen verde, como milhares. A bala da polícia o atingiu no estômago.
— Pé embaixo.
Achou que voava, quando partiu da porta do banco à procura da estrada. O abdômen queimava, um suor frio banhava-lhe a testa.
— Acho que não aguento...
— Pé embaixo e cala a boca. Quem mandou descer do carro?
Com ele, mais três. Tinham-lhe prometido a quarta parte do dinheiro. Queria poder calcular a quanto iria a sua parcela, mas as dores eram grandes demais, a cara parecia torrar. Sentiu sangue na boca. Achou que explodiria.
— Não posso continuar.
Entravam na Rio—São Paulo. Antes de Nova Iguaçu parou o carro no acostamento.
— Que ideia é essa?
— Não aguento... não aguento...
Jogaram-no do carro e sumiram.
Tinha chovido e o asfalto molhou sua cara. Sentiu grande conforto no frio que a água lhe pôs no rosto. Sabia que podia levantar, mas preferiu ficar deitado, cara no chão, onde um rio de sangue começava a nascer, caindo na terra depois do acostamento.
Roncavam forte os motores que passavam. Ele dava as costas para a estrada como dera as costas para a vida desde o momento em que aceitara o convite.
— Vinte e cinco por cento.
— Você vai apenas dirigir: o carro, deixa comigo que eu puxo um, no dia.
— Não saia do carro.
— Não saia do carro.
— Não saia.
— Fique no carro, com o motor ligado.
O guarda que apareceu na esquina foi que o fez saltar. Achou que poderia haver problemas com a chegada da polícia. Se não fosse aquele guarda...
Apertou a barriga e achou que sentiu o contato da bala sob a pele. Cuspiu vermelho. Arrastou-se para o mato e deitou de cara na terra. Doía muito, doía tudo. Admitiu morrer ali e quase desejou que assim fosse. Com esforço, levantou a cabeça e viu gente entrando na padaria 300 metros à frente. A mão se confundia com a camisa, com o sangue. Quis levantar-se mas as pernas não obedeceram.
— Quem sabe amanhã...
O otimismo da esposa chegou-lhe para aumentar o desespero. Considerou que lhe tinha faltado paciência.
— Quem sabe amanhã...
Rezou. Pediu a Deus que lhe desse um amanhã. Um, pelo menos. Chegou à conclusão de que nada mais lhe restava que hoje. Hoje. Hoje, apenas. A dormência da perna preocupou-o ainda mais. Escutou risadas. Eram meninos que passavam à procura de um campo de futebol. Teve vontade de gritar por socorro. Prendeu a respiração para que não dessem conta de que ali havia um homem. Encolhendo-se, comprimindo o estômago. Assim ficou até o anoitecer total. Apoiou-se num poste de luz e cobriu com o paletó a camisa encarnada de sangue. Juntou o resto das forças, simulando uma naturalidade impossível de ser conseguida.
— Um táxi. Preciso de um táxi...
Andou cambaleante para o lado oposto à estrada. Via as coisas com dificuldade. Como se lhe tivessem posto uma cortina de plástico à frente.
Passou um soldado abraçado à mulata. Abaixou-se, fingindo abotoar o sapato. Não foi notado. Levantou-se com esforço sobre-humano e caminhou o que calculou terem sido 100 metros. Na boca, um gosto acre, uma coisa pegajosa que o incomodava mais do que a bala no bucho. Não tinha destino. Como não tinha futuro — adivinhava.
Deu numa rua de casas de porta e janela. Conseguiu passar despercebido. A bala que o pegara parecia crescer pelo ardor que provocava. O sangue agora já manchava o paletó cinzento; mas era noite, ninguém notaria. Um cinema anunciava Giuliano Gema. Pensou em entrar, mas a dor aumentava. Doía-lhe a barriga, fervia-lhe a cabeça, ardia-lhe o peito, desagradava aquela coisa quente que lhe enchia a boca, de minuto a minuto. Ele cuspia.
— Quem sabe amanhã...
E eles, onde estariam? Em Aparecida do Norte, como tinham planejado, ou já teriam tido a sorte de terem sido apanhados?
— Preciso de um carro...
E aí? Para onde iria? Que explicação daria no hospital? A mulher o imaginava procurando emprego.
Escorou-se no portão de uma casa verde. Percebeu que o sangue corria pelas pernas, tingia os sapatos. Limpou-os na calça o que foi possível. Era uma dor de enlouquecer. Tivesse uma faca e arrancaria o estômago, com bala, com tudo.
Na esquina avistou o carro. Apertou os olhos, procurando descobrir que carro era aquele. Era um carro preto e branco, com uma luz vermelha na capota. Mesmo assim, ele gritou.
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
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