quarta-feira, 5 de maio de 2021

Melo Moraes Filho (A Festa da Moagem) – 1 –

(PROVÍNCIA DO RIO)


No Norte e no Sul do Brasil, as festas do trabalho, os jubileus da lavoura tinham sobre a fronte grinal das frescas e odoríferas, enramadas ao gosto dos estilos selvagens.

Aos harpejos bárbaros da floresta, ao rumor sacrílego que acordava os ermos, os fazendeiros, em suas casas de vivenda, faziam os cálculos sobre os proventos de suas plantações e consideravam no dia da inauguração da moagem, traçando planos alegres e realizáveis.

No Rio Bonito, em Capivari, na Boa Esperança, em Macacu e em toda a província do Rio de Janeiro, a começar de abril, alguma coisa de estranho se passava nas fazendas, desusada atividade punha em alvoroço foreiros e escravos.

A gente da redondeza, convidada ou não, dispunha-se a comparecer à festa anual agrícola do mês de maio, época em que todos os engenhos principiavam a funcionar.

Abandonando por toda a duração da moagem as suas magníficas e confortáveis moradias, alguns senhores, acompanhados por vezes da família, vinham residir nos engenhos, fiscalizando diretamente o trabalho. Desde maio, porém, as enxadas e as foices dos escravos lampejavam ao sol, procedendo-se à capina geral do terreiro e de suas proximidades, que abrangiam o inteiro perímetro, o quadrilátero extenso ocupado pelas construções principais e rústicas da grande propriedade.

A casa de vivenda, a do engenho, os paióis e depósitos, as senzalas extensas eram caiadas e limpas; a escravatura recebia timões de baeta azul e roupa de algodão para o gasto do ano; e, de oito a quinze dias antes da moagem, procedia-se ao corte das canas, que chegavam em carros de bois e ficavam sob os alpendres ou em depósitos especiais. Quem passava então pela estrada desfrutava um espetáculo aprazível, encantava-se diante de uma paisagem larga e pitoresca, própria do nosso clima e do nosso meio, e de acordo com o desenvolvimento relativo dos nossos proprietários rurais.

Aninhada debaixo de um céu sem névoas e quente de esplendores, a bela casa de vivenda do fazendeiro opulento dominava em uma eminência, elegante e avarandada, sobre um terreno amplo, arborizado e varrido.

À curta distância, a fábrica do açúcar levantava-se vasta, da altura de dois andares comumente, com suas varandas compridas, com seus alpendres contornantes. Os paióis e as senzalas, em planos variáveis, acentuavam o tom característico desses núcleos agrícolas, outrora tão florescentes e hoje quase infecundos.

Pontes atravessando córregos, rebanhos e bois nas pastagens, casinhas de sapé, ranchos dispersos, e uma ou outra senzala de cujo teto um esteio rompente se abria em ramas e flores – eis mais ou menos um quadro das nossas antigas fazendas, monótonas até ao enfado, à força de serem semelhantes.

Desde escura madrugada, entretanto, a vida nelas se reanimava, especialmente no tempo da moagem e da safra.

Os escravos, saudados pelo cântico das aves, pelo murmúrio dos rios, pelo espadanar das cascatas, surpreendiam as auroras do sol que os encontravam no eito; os carreiros seguiam à frente dos tardos bois, ao guincho dos carros; e os cantos dos negros em turmas eram acompanhados em surdina pelo cicio dos canaviais às virações do amanhecer:

’Sta va na praia escrevendo
Quando o vapô apitou:
Foi os olhos mais bonitos
Que as ondas do mar levou!...

Minha senhora, me venda,
Aproveite seu dinheiro;
Depois não venha dizendo
Qu’eu fugi do cativeiro.


Eram os pobres escravos do Norte que carpiam as suas saudades!

Era um pensamento talvez de suicídio, uma ideia de morte tarjando de luto a esplêndida aquarela da natureza!...

Mas o dia da festa estava marcado, e com antecedência ultimavam-se os aprestos. De véspera, a casa do engenho e as mais construções adornavam-se, interna e externamente, de troféus, de pendões vegetais entremeados de flores selvagens, de ramagens e palmas, de festões e arcadas de folhagens; no terreiro, as bandeiras, colocadas de distância em distância, flutuavam na extremidade dos bambus flexíveis e verdes; e aqui e ali os moleques e negrinhas, saltando e brincando, olhando espantados, chusmavam em algazarra, aqueles com a camisa aberta no peito, mostrando ao colo uma figurinha suspensa, um bentinho ou um rosário de devoção materna.

Matava-se um boi para o banquete dos senhores e ração dos escravos, carneiros, galinhas, etc., incumbindo-se a dona da casa, a família do agricultor, da direção das escravas doceiras, das que arranjavam o necessário para os convidados e hóspedes.

De véspera também, já se achavam na fazenda os compadres e os amigos do estimado senhor e que tinham vindo de longe com suas famílias.

Os foreiros ajudavam os escravos nos preparativos, a música se achava avisada, e os foguetes, comprados na cidade, enchiam o recanto de um aposento, para a ocasião oportuna.

As moças românticas, impressionáveis e meigas, sonhavam com os primos bacharéis; os coronéis da Guarda Nacional conversariam sobre eleições; e as influências locais não perderiam a vasa para a cabala, para apresentar o seu candidato ao futuro pleito eleitoral.

No dia da moagem, apenas a luz da manhã estava em casa de Cristo, lá vinham convidados a cavalo, famílias em carros de bois com toldos de esteiras ou de chitão lavrado, indivíduos de toda a casta, muitos dos quais descalços, trazendo às costas sapatos enfiados no ipê.

No dia da moagem...
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Continua…

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

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