segunda-feira, 24 de maio de 2021

Carolina Ramos (Santinha)

Faminto de asfalto o carro engolia quilômetros com voracidade insaciável. A vontade de chegar levava a moça a pisar firme, incentivando a gula da máquina. Sentiu a boca seca.

O último povoado ficara para trás, não muito longe. Arrependia-se de ter seguido as determinações da pressa, não parando sequer para um refrigerante. Partira para um fim de semana campestre, ameno e repousante, flecha disparada em rumo certo, sem direito a desvios, nem interrupções.

Com alívio, vislumbrou, à beira da estrada, a tabuleta convidativa. Sugestão, alentadora: - "Água potável". Diminuiu a marcha ao cruzar a ponte.

Deixou o carro no acostamento e embrenhou-se pela trilha estreita, em declive, chegando até a grota gorgolejante descoberta ao fundo, sob o frescor da ramagem. Dois ipês floridos denunciavam a chegada da primavera, atapetando o pequeno oásis com flores macias vestidas de ouro.

Perdida a pressa após matar a sede, a jovem deixou, deliciada, que a água fresca escorresse, por algum tempo, por entre os dedos, "inodora e sem sabor", como aprendera na escola, e, também, insubstituível! Que bebida, por mais saborosa e perfumada, pode substituir um gole dessa linfa pura, quando o demônio da sede ateia fogo aos sentidos?!

Ajoelhou-se novamente junto à fonte, mergulhando o rosto na concha das mãos, deleitada com a ablução refrescante. Voltou-se sem urgência e sem enxugar a face.

Foi quando descobriu a pequena cruz, adornada de flores, escondida sob a ponte. A curiosidade levou-a até lá.

Em letras rústicas, o nome - Rosalinda - atravessava os braços de madeira pintados de branco.

Uma figura agachada sob a ponte, até o momento não pressentida, movimentou-se na penumbra. Sobressaltada, a jovem recuou.

- Num carece tê medo, dona. Ninguém vai lhe molesta. Reze uma prece préla ...e num dexe de rezá uma prece prêle, tamém.

Encorajada pelo tom pacífico daquela estranha e soturna voz, a moça arriscou:

- Mas... quem é ela?… E ele, quem é?!

Um instante de silêncio, um suspiro... e a voz roufenha fez-se ouvir de novo:

- Ela é Rosalinda. Ele... é o disgraçado qui matô ela...aqui mesmo, nesse lugá onde tá a cruz! A história é cumprida... mas si a dona tivé tempo, eu posso contá.

Arrepiada até a alma, a moça levou a mão à boca, arrependida de ter feito as perguntas. Teve ímpetos de fugir, mas a curiosidade, maior que os temores, fez com que ali ficasse. Assentiu:

- Conte... Conte logo... Tenho um tempinho de sobra...

A voz do homem fez-se mais grave.. Sob o peso da emoção... ele sussurrou, como se falasse consigo mesmo:

- Rosalinda era uma rosa! Uma rosa linda de morrê...! E pur causa disso memo, é qui ela morreu! Tinha só quinze ano! Era um botão cumeçando a se abri! Os cabelo era longo... dessa cô aí dos da moça. Bem talhadinha! Pura que nem a água dessa grota! Tudo o mundo amava Rosalinda! Mas, tinha um disgraçado que amava ela mais qui tudo esse mundo junto! Era o Tião! Cabôco sacudido, já cuns trinta e pocos ano de idade.

Home feito, Tião sabia o qui quiria! Num era mau sujeito, não... mai era grossêro... i num sabia perdê!

Pra mor dos seus pecado, Tião garrô de querê Rosalinda! Querê cum locura... e de quarqué jeito! Ele sabia e seguia tudos passo que a minina dava! Chego inté a propô casamento préla. I ela se riu dele... de gargaiada! Isso doeu dimais no coração do coitado!

Tudos dia, Rosalinda, cada vez mais linda, vinha, muntada num burrico, buscá um garrafão de água nesse memo corguinho. Tião sabia disso! Naquele dia, ele chegô bem in antes dela... i ficô amoitado bem aí, onde ocê tá agora.

Presa da emoção, a moça ouvia sem coragem de interromper o narrador, que prosseguia, em voz arrastada:

– Daquela veiz, a minina chegô alegrinha!... Vinha cantando baxinho... sem suspeitá o que ia acuntecê. I aí mêmo, onde tá fincada essa cruiz, Tião matô ela! Matô in disispêro pruquê ela nun quis sê dele! Matô... i fugiu, cubrindo a cara cô' as mão! Adispois, foi preso... mó di pagá... i amargá seu pecado entre as grade!

Trêmula, a moça conscientizou-se de que estava bem no meio do palco onde uma tragédia, há algum tempo, se consumara entre dois protagonistas - um homem e uma mulher... E que essa tragédia poderia bem ser repetida, a qualquer momento!

Tentou amenizar a gravidade da situação, simulando calma:

- O senhor conhecia Rosalinda?

- Mai é craro que sim! Tudo o mundo cunhecia ela! Rosalinda era uma santinha! Pur isso, dona, é qui eu sempre trago frô aqui onde ela drumiu pra sempre!

O adeus apressado não deixava dúvidas quanto à urgência da moça em se retirar de cena. Assim mesmo, apesar da penumbra, pôde notar que o maltrapilho tinha aspecto desagradável, possuindo apenas um olho, o que lhe tomava a aparência ainda menos atrativa.

De volta à rodovia, a amena temperatura do ocaso devolveu-lhe parte da tranquilidade. Baixou a janela do carro, deixando que as mãos finas da brisa penteassem para trás seus cabelos castanhos... da cor dos de Rosalinda - estremeceu com a lembrança!

Pouco depois, chegava à fazenda, onde era esperada. Só então, entre perplexa e estarrecida, tomou conhecimento da história completa.

A tragédia acontecera há quase vinte anos, Rosalinda fora morta exatamente como lhe contara o homem amoitado sob a ponte. Era mesmo, Tião, o nome do assassino - Tião Caolho! Preso porque, na mão fechada da vítima, fora encontrado o seu olho, arrancado na luta pelas unhas e pelo desespero da moça!

Dizia-se que, depois de muitos anos de confinamento, Tião, há pouco, fora posto em liberdade. Todos os dias levava flores para a menina morta! Um pobre coitado roído pelo remorso! Espécie de alma penada, que nem mais chegava a assustar!

Ninguém sabia dizer onde... e nem do quê o pobre vivia! O mais certo é que morasse lá mesmo, debaixo daquela ponte. Ninguém o via pedir esmolas... ou qualquer ajuda. Tião só pedia flores e rezas! Flores para enfeitar a cruz de Rosalinda. Rezas para aguentar a consciência pesada... na esperança de um dia (quem sabe?) conseguir o perdão de Deus... e o da sua Santinha!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). 
Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. 
conto integrante do capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais. p. 253.
Livro enviado pela autora.

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