TRISTEZA
Ao Alves de Farias
Era de tarde. Estava aqui sozinho,
A mão por sob a face, a mão assim,
Quando, me vendo do alto, um passarinho
Pensou que eu era um ramo, e veio a mim.
Veio. Desceu. Porém tão de repente,
Tão sutilmente, tão suave – que eu,
Se já não fora um coração descrente,
Pensava que do céu é que desceu...
Veio. Pousou aqui, trêmulo e brando,
Aqui por sobre mim, neste lugar,
Neste meu coração quase chorando,
E logo que pousou, pôs-se a cantar...
Findou-se a tarde. Anoiteceu. A Lua,
Toda lavada em rosas de prazer,
Vinha como de um banho, vinha nua,
Vinha prateada e límpida a escorrer...
Eu nunca ouvi cantiga mais amena,
De uma melancolia mais ideal;
Era de tal brandura, de tal pena,
De tal doçura que fazia mal!
Deixava-me no ouvido aquela trova
Não sei que sonho doido de embriaguez:
Era como se alguém me abrisse a cova,
E enterrasse-me vivo de uma vez...
Caía-me aqui dentro, aqui no seio,
Como uma grande luz crepuscular,
Sem que eu soubesse d’onde foi que veio,
De que sombria região polar.
Eu era como um monge, um pobre monge,
Dentro da minha desesperação,
Que caminhasse para muito longe,
Para o exílio, para a solidão...
E tão inquieto eu ia, tão enfermo,
Tão desolado, que fazia dó:
O caminho era fúnebre e era ermo,
E eu ia, eu ia horrivelmente só!
Era tamanha aquela doida mágoa,
Que eu não podia, não podia mais,
Os meus olhos se anuviavam d’água,
Vendo passar meus próprios funerais!
Sobre o meu coração, fria, gelada,
Descia a névoa de uma dor sem fim,
Como se fosse a mão que brande a espada,
Mão terrível e triste sobre mim...
Quanta desilusão que ela me trouxe!
Quanta amargura, quanto horror cruel!
Nesse gorjeio doce, muito doce,
Havia travos de veneno e fel.
Pungia tanto o meu pesar ardente,
Era tão mudo e despedaçador,
Que soluçando torrencialmente,
Não aliviaria a minha dor...
Eu sentia que havia no meu rosto
Essa esquisita cor feita de cal,
Esse mármore frio do desgosto,
Esse palor, esse palor mortal!
E a noite toda, o alegre passarinho
Cantou, cantou, falou com a sua voz,
Ora veludo e seda, ouro e arminho,
Ora nervos e dor, violenta e atroz.
Falou de tudo quanto sucedera,
Com acentos nervosos e febris;
Era macia a voz, era de cera,
Mas como me tornava um infeliz!
Como essa voz tinha ferocidades,
Como era esfomeada e era voraz;
Eu lhe rogava em meio de ansiedades,
Que me deixasse, me deixasse em paz.
E que caminhos tristes! Que avenidas
Longas! E que silêncio tumular!
É por aqui que passam os suicidas,
Quando vão para o ermo se enforcar.
E que sombrios álamos, que choro,
Que desespero, que aflições brutais!
Onde me levas tu, ó mau agouro,
A que trevas e antros infernais?
E que soluço que se não acalma,
Que mágoa intensa, que furor, enfim!
Quem teria morrido na minha alma
Para que o coração chorasse assim?
Debaixo dos estigmas da tristeza,
Eu me via mais triste do que Jó,
Esse que o mundo com pavor despreza,
Mais ulcerado, mais infame, e só.
Era como se eu fosse, em noite escura,
Rio das mortes a rolar em vão,
Aquelas minhas águas de amargura,
Tintas do sangue da inquietação.
E ele a cantar! E eu ansiado: quando
Há de esta ave partir, há de voar,
Há de deixar-me a paz, o sono brando,
O sono leve, que perfuma o ar?
Quando me hás de deixar, música langue,
Ó veneno sutil, ó embriaguez,
Tu que me estás bebendo todo o sangue,
Nervosissimamente, de uma vez?
Mas de repente, assim como de um ninho,
Ei-lo a fugir de mim! Mal eu dei fé,
Já me havia deixado aqui sozinho,
E triste, triste, inda mais triste até!
Raiara enfim o rosicler d’aurora,
Esse cândido albor: olhei p’ra lá,
Para as bandas, por onde fora embora,
E ó que saudade! Quando voltará?
DURANTE UMA ENFERMIDADE
Ao Rocha Pombo
Quem poderá saber? quem sabe lá
D’onde viria aquele sabiá?
Quem poderá saber o que ele tem,
E o que lhe dói, que o faz cantar tão bem?
Que penas serão essas dentro da alma,
Que por mais que ele as diga, não se acalma?
Seria um rei o pobre, ou uma rainha,
Que de uma vez perdeu tudo o que tinha,
E não sabendo mais onde o ganhar,
Pôs-se a chorar, quero dizer, cantar?
Quem poderá saber? Apenas sei,
Quer seja uma rainha, quer um rei,
Que ele é bem como alguém, coitado, quando
Sofre, não se contém, e vai falando...
Chegou a hora triste, a hora santa,
Aperta-lhe a saudade e ele canta...
Eu que conheço a hora do pesar:
Venho, sento-me aqui, fico a escutar...
E de tanto que já o tenho ouvido,
Entendo o que ele diz pelo sentido.
Ora, são esses bosques ideais,
Essa frescura e não acaba mais...
Ora, os campos em flor, e aquela mágoa,
E aquela fonte com soluço d’água...
Às vezes, a saudade e a embriaguez
Desses caminhos que ele um dia fez,
Dessas corridas, desses voos doidos,
Dessas loucuras que fazemos todos,
No meio dos silêncios mais sombrios,
Dos grandes ermos, dos profundos rios...
Ora, aquela dolência, penso eu,
Que só de imaginar que já morreu...
Que em sua terra, todo o mundo agora
Até seu próprio nome já ignora...
Já não se lembra dele mais ninguém,
Nem para o maldizer, nem dizer bem...
Durante o tempo em que eu estive doente,
Foi um amigo, verdadeiramente.
Tão bem me traduziu o coração,
Que foi mais que um amigo, foi irmão.
E ó que irmão que ele foi, como não há,
Eu a sofrer d’aqui, ele de lá!
Até me pareceu que adivinhava:
Quando eu estava triste é que cantava.
E eu por triste que fosse, quando o ouvia,
Era com arrepios de alegria.
É que ele, à semelhança d’um poeta,
Mesmo cantando a mágoa mais secreta,
Tinha sempre o seu modo de a dizer,
Que em vez de magoar, dava prazer...
Eu sei, porém, eu sei que o pensamento
Inda é mais leve do que o próprio vento,
Mais leve do que a luz e do que som;
Sei que me vendo inteiramente bom
Hei de esquecer-te, coração querido,
Como de resto tenho-me esquecido
De tanto sonho bom, por esse mundo,
De tanto sonho que dormiu no fundo,
Bem lá no fundo virgem do meu ser,
Sem que o pudesse mais tornar a ver:
Tal que se fosse a minha própria imagem,
Que eu, em caminho, um dia, de passagem,
Deixasse por aí a refletir
Nesses lagos de pérolas d’Ofir,
Nesses profundos lagos de cristal,
De uma cintilação quase ideal,
De uma cintilação maravilhosa,
Como se fossem lagos cor de rosa,
– Melancólica, assim, cheia de mágoa,
Longa e perdida lá no fundo d’água...
Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
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