Narizinho e o príncipe, de braços dados, percorriam o sítio. Já haviam visitado o chiqueirinho de Rabicó. Estavam agora sentados na grama, à espera da Emília para irem ver a vaca mocha. O príncipe não fazia a menor idéia do que fosse uma vaca e mostrava-se impaciente por ser apresentado àquela.
— A vaca mocha — ia explicando a menina — é a senhora mais importante aqui do sítio — depois de vovó e tia Nastácia. Muito bondosa, incapaz de fazer mal a um mosquito.
— Mas como então devorou o pai, a mãe e todos os parentes do senhor Visconde de Sabugosa?
— É que eles eram sabugos e sendo sabugo a mocha não perdoa mesmo. Agarra e vai mascando. Mas para gente como nós, gente de carne, ela não faz nada. Vaca não come carne, sabe? Nem minhoca! Pedrinho já fez a experiência. Pôs-lhe uma gorda minhoca no cocho. Sabe o que ela fez? Virou a cara de lado e cuspiu de nojo.
O príncipe lá no seu íntimo achou que a vaca devia ser uma criatura de muito mau gosto. Comer sabugo e ter nojo de minhoca era para ele a coisa mais absurda do mundo. Nisto chegou Emília.
— Que demora! — disse Narizinho. — Estamos aqui à sua espera faz um século. Que esteve fazendo?
— Ajudando dona Aranha a remendar suas meias, sabe? Oh, como dona Aranha remenda bem! Cerze com a maior perfeição. Se eu fosse você não deixaria dona Aranha voltar para o reino.
E dirigindo-se ao príncipe:
— Por que não dá dona Aranha para Narizinho? Apesar de ser princesa, Narizinho anda sempre de meias furadas por falta duma boa aranha aqui no sítio.
— Começam as inconveniências! — advertiu a menina fazendo carranca. — Anda com meias furadas o seu nariz. Vamos visitar a vaca mocha que é o melhor.
Foram em direção à cocheira. Assim que o príncipe deu com a vaca, estacou, de olhinhos muito arregalados. Nunca supôs que houvesse um bicho tão fora de propósito.
— Pois é esta a mocha, príncipe — disse a menina. — Veja que respeitável senhora é, que pêlo macio, que pontudos chifres. Mocha quer dizer sem chifres. Esta é a única exceção que há no mundo, isto é, aqui no sítio.
O príncipe olhava, olhava, sem entender muito bem. Depois entrou com perguntas.
— E que é isto que ela tem pendurado aqui embaixo?
— São as tetas — explicou a menina. — Teta quer dizer torneirinha de leite. Tia Nastácia espreme essas tetas para tirar uma água branca chamada leite. Todas as manhãs eu tomo um copo desse leite bem quentinho e espumante, tirado justamente dessas torneirinhas.
— E isto aqui ? — perguntou o príncipe — apontando com o cetro para a cauda.
— Isso é o espantador de moscas. Serve para espantar as moscas que vêm brincar em cima dela.
Querendo também mostrar sua ciência, Emília acrescentou:
— Esse espantador foi pregado aí por tia Nastácia. Quando a mocha nasceu não tinha nada atrás.
— Não acredite, príncipe! Emília está bobeando você. Todas as vacas já nascem de espantador, como todos os peixes já nascem de cauda.
Tão interessante achou o príncipe aquele comprido apêndice movediço com mecha de cabelo na ponta, que se declarou disposto a adotar a moda no reino. Depois examinou atentamente os chifres.
— Também são espantadores de moscas? — perguntou.
— Não! — respondeu a menina. — Isso aí são espantadores de gente. Chamam-se chifres e servem para chifrar.
— Chifrar? Que é chifrar? — indagou ele, de carranquinha.
A menina deu uma risada gostosa.
— Chifrar, príncipe, é dar chifradas, entende? dar uma cabeçada com os dois espetos tortos na testa. Mas não tenha medo. A mocha não chifra ninguém — só cachorro que vem latir perto dela.
— E estas quatro estacas? — perguntou o príncipe apontando para as pernas da mocha.
Narizinho deu outra risada ainda mais gostosa.
— Como é burrinho este meu maridinho! Pois não vê que são as pernas? Sem isso, como poderiam as vacas ficar de pé e andar?
Emília meteu o bedelho.
— Essa é boa! Quantos bichos não há sem pernas e que andam muito bem?
— Diga um, vamos!...
— O relógio de dona Benta. Não tem pernas e ela diz sempre: “Este relógio, apesar de ser mais velho do que eu, anda muito bem.”
A menina olhou para Emília com cara de dó.
— Que pena! — disse. — Tão “inteligente” e não aprende nunca a diferenciar as criaturas vivas das coisas inanimadas...
O príncipe não tirava os olhos da vaca, sempre admirado. Quis saber como é que ela fabricava o leite.
— Está aí uma coisa que não sei — respondeu a menina. – A mocha come capim, come abóbora, come sabugo, mastiga tudo muito bem, engole — e sai leite do outro lado pelas torneirinhas. Tudo quanto come vira em leite. Se comer o Visconde, vira-o em leite também. É um mistério que não entendo.
— Pois eu entendo! — gritou Emília. — É que a mocha todos os dias come mandioca. Leite, na minha opinião, é mandioca líquida.
— Que sandice, Emília! Que bobagem! Pois não vê que Rabicó também come mandioca e não dá leite?
— Isso é porque Rabicó não tem torneirinhas. Se tia Nastácia pusesse nele quatro torneirinhas, juro que saía leite.
— Desculpe, príncipe — disse a menina voltando-se para ele.
— Esta nossa amiga marquesa possui uma torneirinha de asneiras.
Quando a abre, ninguém pode com a vida dela.
Mas Escamado não ouvia. Continuava de olhos pregados na mocha. Por fim mostrou desejos de levá-la para o reino.
— Impossível, príncipe! — respondeu Narizinho muito pesarosa. — Em primeiro lugar, mocha é de vovó e vovó não deixa; em segundo lugar, beberia pelo caminho tanta água do oceano que o leite ficaria salgado.
— Que pena! Esta senhora faria um grande sucesso na minha corte.
Emília meteu o bedelho outra vez.
— Aposto que dona Benta deixa! — berrou ela. — Aposto que se o príncipe der uma boa baleia em troca, dona Benta deixa. As baleias também dão leite.
A menina pôs as mãos na cintura.
— E onde iria vovó botar essa baleia? — perguntou ela muito séria.
— Aqui na cocheira, ora essa! Se a mocha pode morar aqui por que não o poderia a baleia? Em que a tal baleia é melhor que a mocha, diga?
Narizinho enjoou-se da burrice da Emília e enfiou-a de cabeça para baixo no bolso do avental. Justamente nesse instante a vaca deu um mugido. O príncipe, que não esperava por aquilo, caiu para trás com o susto.
— Coitadinho do meu maridinho !— exclamou a menina precipitando-se para erguê-lo. — Não precisa assustar-se assim, bobo. A mocha dá esses berros só de brincadeira — e ajudou-o a compor diversas escamas que haviam saído do lugar.
O príncipe, entretanto, não quis mais saber de histórias. Pálido ainda do susto, tratou de voltar para casa.
— Sofro do coração — explicou — e se esta senhora berra outra vez, sou capaz de cair em desmaio. Vamos embora...
––––––––
Continua... Aventura do Príncipe – VII – O Desastre
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
— A vaca mocha — ia explicando a menina — é a senhora mais importante aqui do sítio — depois de vovó e tia Nastácia. Muito bondosa, incapaz de fazer mal a um mosquito.
— Mas como então devorou o pai, a mãe e todos os parentes do senhor Visconde de Sabugosa?
— É que eles eram sabugos e sendo sabugo a mocha não perdoa mesmo. Agarra e vai mascando. Mas para gente como nós, gente de carne, ela não faz nada. Vaca não come carne, sabe? Nem minhoca! Pedrinho já fez a experiência. Pôs-lhe uma gorda minhoca no cocho. Sabe o que ela fez? Virou a cara de lado e cuspiu de nojo.
O príncipe lá no seu íntimo achou que a vaca devia ser uma criatura de muito mau gosto. Comer sabugo e ter nojo de minhoca era para ele a coisa mais absurda do mundo. Nisto chegou Emília.
— Que demora! — disse Narizinho. — Estamos aqui à sua espera faz um século. Que esteve fazendo?
— Ajudando dona Aranha a remendar suas meias, sabe? Oh, como dona Aranha remenda bem! Cerze com a maior perfeição. Se eu fosse você não deixaria dona Aranha voltar para o reino.
E dirigindo-se ao príncipe:
— Por que não dá dona Aranha para Narizinho? Apesar de ser princesa, Narizinho anda sempre de meias furadas por falta duma boa aranha aqui no sítio.
— Começam as inconveniências! — advertiu a menina fazendo carranca. — Anda com meias furadas o seu nariz. Vamos visitar a vaca mocha que é o melhor.
Foram em direção à cocheira. Assim que o príncipe deu com a vaca, estacou, de olhinhos muito arregalados. Nunca supôs que houvesse um bicho tão fora de propósito.
— Pois é esta a mocha, príncipe — disse a menina. — Veja que respeitável senhora é, que pêlo macio, que pontudos chifres. Mocha quer dizer sem chifres. Esta é a única exceção que há no mundo, isto é, aqui no sítio.
O príncipe olhava, olhava, sem entender muito bem. Depois entrou com perguntas.
— E que é isto que ela tem pendurado aqui embaixo?
— São as tetas — explicou a menina. — Teta quer dizer torneirinha de leite. Tia Nastácia espreme essas tetas para tirar uma água branca chamada leite. Todas as manhãs eu tomo um copo desse leite bem quentinho e espumante, tirado justamente dessas torneirinhas.
— E isto aqui ? — perguntou o príncipe — apontando com o cetro para a cauda.
— Isso é o espantador de moscas. Serve para espantar as moscas que vêm brincar em cima dela.
Querendo também mostrar sua ciência, Emília acrescentou:
— Esse espantador foi pregado aí por tia Nastácia. Quando a mocha nasceu não tinha nada atrás.
— Não acredite, príncipe! Emília está bobeando você. Todas as vacas já nascem de espantador, como todos os peixes já nascem de cauda.
Tão interessante achou o príncipe aquele comprido apêndice movediço com mecha de cabelo na ponta, que se declarou disposto a adotar a moda no reino. Depois examinou atentamente os chifres.
— Também são espantadores de moscas? — perguntou.
— Não! — respondeu a menina. — Isso aí são espantadores de gente. Chamam-se chifres e servem para chifrar.
— Chifrar? Que é chifrar? — indagou ele, de carranquinha.
A menina deu uma risada gostosa.
— Chifrar, príncipe, é dar chifradas, entende? dar uma cabeçada com os dois espetos tortos na testa. Mas não tenha medo. A mocha não chifra ninguém — só cachorro que vem latir perto dela.
— E estas quatro estacas? — perguntou o príncipe apontando para as pernas da mocha.
Narizinho deu outra risada ainda mais gostosa.
— Como é burrinho este meu maridinho! Pois não vê que são as pernas? Sem isso, como poderiam as vacas ficar de pé e andar?
Emília meteu o bedelho.
— Essa é boa! Quantos bichos não há sem pernas e que andam muito bem?
— Diga um, vamos!...
— O relógio de dona Benta. Não tem pernas e ela diz sempre: “Este relógio, apesar de ser mais velho do que eu, anda muito bem.”
A menina olhou para Emília com cara de dó.
— Que pena! — disse. — Tão “inteligente” e não aprende nunca a diferenciar as criaturas vivas das coisas inanimadas...
O príncipe não tirava os olhos da vaca, sempre admirado. Quis saber como é que ela fabricava o leite.
— Está aí uma coisa que não sei — respondeu a menina. – A mocha come capim, come abóbora, come sabugo, mastiga tudo muito bem, engole — e sai leite do outro lado pelas torneirinhas. Tudo quanto come vira em leite. Se comer o Visconde, vira-o em leite também. É um mistério que não entendo.
— Pois eu entendo! — gritou Emília. — É que a mocha todos os dias come mandioca. Leite, na minha opinião, é mandioca líquida.
— Que sandice, Emília! Que bobagem! Pois não vê que Rabicó também come mandioca e não dá leite?
— Isso é porque Rabicó não tem torneirinhas. Se tia Nastácia pusesse nele quatro torneirinhas, juro que saía leite.
— Desculpe, príncipe — disse a menina voltando-se para ele.
— Esta nossa amiga marquesa possui uma torneirinha de asneiras.
Quando a abre, ninguém pode com a vida dela.
Mas Escamado não ouvia. Continuava de olhos pregados na mocha. Por fim mostrou desejos de levá-la para o reino.
— Impossível, príncipe! — respondeu Narizinho muito pesarosa. — Em primeiro lugar, mocha é de vovó e vovó não deixa; em segundo lugar, beberia pelo caminho tanta água do oceano que o leite ficaria salgado.
— Que pena! Esta senhora faria um grande sucesso na minha corte.
Emília meteu o bedelho outra vez.
— Aposto que dona Benta deixa! — berrou ela. — Aposto que se o príncipe der uma boa baleia em troca, dona Benta deixa. As baleias também dão leite.
A menina pôs as mãos na cintura.
— E onde iria vovó botar essa baleia? — perguntou ela muito séria.
— Aqui na cocheira, ora essa! Se a mocha pode morar aqui por que não o poderia a baleia? Em que a tal baleia é melhor que a mocha, diga?
Narizinho enjoou-se da burrice da Emília e enfiou-a de cabeça para baixo no bolso do avental. Justamente nesse instante a vaca deu um mugido. O príncipe, que não esperava por aquilo, caiu para trás com o susto.
— Coitadinho do meu maridinho !— exclamou a menina precipitando-se para erguê-lo. — Não precisa assustar-se assim, bobo. A mocha dá esses berros só de brincadeira — e ajudou-o a compor diversas escamas que haviam saído do lugar.
O príncipe, entretanto, não quis mais saber de histórias. Pálido ainda do susto, tratou de voltar para casa.
— Sofro do coração — explicou — e se esta senhora berra outra vez, sou capaz de cair em desmaio. Vamos embora...
––––––––
Continua... Aventura do Príncipe – VII – O Desastre
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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