O carro começou a ratear. Levei-o ao Pepe, ali na oficina da Rua Francisco Otaviano:
- Pepe, o carro está rateando.
Pepe piscou um olho:
- Entupimento na tubulação. Só pode ser.
Deixei o carro lá. À tarde fui buscar.
- Eu não dizia? Defeito na bomba de gasolina.
- Você dizia entupimento na tubulação.
- Botei um diafragma novo, mudei as válvulas. Estendeu-me a conta: de meter medo. Mas paguei.
- O carro não vai me deixar na mão? Tenho de fazer uma viagem.
- Pode ir sem susto, que agora está o fino.
Fui sem susto, a caminho de Itaquatiara. O fino! Nem bem chegara a Tribobó o carro engasgou, tossiu e morreu. Sorte a minha: mesmo em frente ao letreiro de "Gastão, o Eletricista".
- Que diafragma coisa nenhuma, quem lhe disse isso? - e Gastão, o Eletricista, um mulatão sorridente que consegui retirar das entranhas de um caminhão, ficou olhando o carro, mãos na cintura:
- O senhor mexeu na bomba à toa: é o dínamo que está esquentando.
Molhou uma flanela e envolveu o dínamo carinhosamente, como a uma criança.
- Se tornar a falhar é só molhar o bichinho. Vai por mim, que aqui no Tribobó quem entende disso sou eu.
Nem no Tribobó: o carro não pegava de jeito nenhum.
- Então esse dínamo já deu o prego, tem de trocar por outro. Não pega de jeito nenhum.
Para desmenti-lo, o motor subitamente começou a funcionar.
- Vai morrer de novo - augurou ele, - e voltou a aninhar-se no seu caminhão.
Resolvi regressar a Niterói. À entrada da cidade a profecia do capadócio se realizou: morreu de novo. Um chofer de caminhão me recomendou o mecânico Mundial, especialista em carburadores - ali mesmo, a dois quarteirões. Fui até lá e em pouco voltava seguido do Mundial, um velho compenetrado arrastando a perna e as idéias:
- Pelo jeito, é o carburador.
Olhou o interior do carro, deu uma risadinha irônica:
- É lógico que não pega! O dínamo está molhado!
Enxugou o dínamo com uma estopa: o carro pegou.
- Eu se fosse o senhor mandava fazer uma limpeza nesse carburador - insistiu ainda. - Vamos até lá na oficina...
Preferi ir embora. Perguntei quanto era.
- O senhor paga quanto quiser.
Já que eu insistia, houve por bem cobrar-me quanto ele quis.
Cheguei ao Rio e fui direto ao Haroldo, no Leblon, que me haviam dito ser um monstro no assunto:
- Carburador? - e o Haroldo não quis saber de conversa. - Isso é o platinado, vai por mim.
Cutucou o platinado com um ferrinho. Fui-me embora e o carro continuava se arrastando aos solavancos.
- O platinado está bom - me disse o Lourival, lá da Gávea. - Mas alguém andou mexendo aqui, o condensador não dá mais nada. O senhor tem de mudar o condensador.
Mudou o condensador e disse que não cobrava nada pelo serviço. Só pelo condensador.
No dia seguinte o carro se recusou a sair da garagem.
- Não é o diafragma, não é o carburador, não é o dínamo, não é o platinado, não é o condensador - queixei-me, deitando erudição na roda de amigos. Todos procuravam confortar-me:
- Então só pode ser a distribuição. O meu estava assim...
- Você já examinou a entrada de ar?
- Para mim você está com vela suja.
E recomendavam mecânicos de sua preferência:
- Tem uma oficina ali na rua Bambina, de um velho amigo meu.
- Lá em São Cristóvão, procure o Borracha, diga que fui eu que mandei.
- O Urubu, ali do “Posto 6”, dá logo um jeito nisso.
Não procurei o Urubu, nem o Borracha, nem o Zé Pára-Lama, nem o Caolho dos Arcos, nem o Manquitola do Rio Comprido, nem o Manivela de Voluntários, nem o Belzebu dos Infernos, esqueci o automóvel e fui dormir. Pela minha imaginação desfilava um lúgubre cortejo de tipos grotescos, sujos de graxa, caolhos, pernetas, manetas, desdentados, encardidos, toda essa fauna de mecânicos improvisados que já tive de enfrentar, cuja perícia obedece apenas à instigação da curiosidade ou à inspiração do palpite, que é a mais brasileira das instituições.
Mas pela manhã me lembrei de um curso que se anuncia aconselhando: "Aprenda a sujar as mãos para não limpar o bolso". Resolvi candidatar-me - e quem tiver ouvidos para ouvir, ouça, quem tiver carro para guiar, entenda. Fui à garagem, abri o capô, e fiquei a olhar intensamente o motor do carro, fria e silenciosa esfinge que me desafiava com seu mistério: decifra-me, ou devoro-te. Havia um fio solto, coloquei-o no lugar que me pareceu adequado. Mas não podia ser tão simples...
Era. Desde então, o carro passou a funcionar perfeitamente…
Fonte:
SABINO, Fernando. As melhores crônicas de Fernando Sabino. 2.ed. RJ: Bestbolso, 2008.
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